Sobre o Fascismo: breves apontamentos
O Fascismo é uma ideologia. Toda ideologia se assenta em premissas que, para se fortalecer, necessitam de narrativas que coloquem seu oposto, seu alvo, em perspectiva. Assim se constrói o inimigo. O inimigo, esse ser sem nome, porém, cheio de características, é tudo ou todos que se elege como o alvo. Nesse sentido, duas frentes - em primeiro plano - se estabelecem de maneira inicialmente superficial. Num primeiro momento, o ataque se direciona à ideia ou às ideias que "advém" do inimigo. Tudo que ele emana, isto é, qualquer ato ou palavra devem ser recodificadas em elementos que sugerem uma disputa de força, ou seja, deve-se atribuir – lhe façanhas que denotem intenções de posse, de mando, de superioridade. Constrói-se a narrativa de que Ele (ou Eles) é (ou são) contra Nós. Assim, só resta a defesa. Em seguida e, ainda apoiada na narrativa, o fascismo mira o Corpo. O corpo do inimigo passa ser desejado e atacado. A eliminação física, embora, negada - de imediato - , e depois assumida, segue amparada na necessidade de se buscar uma melhor conformação do indivíduo às posturas que atendem aos princípios de Família, Tradição, Nação, Virilidade e Dominação.
Falar em narrativa torna imperioso falar em linguagem. Noutras palavras, uma ideologia só o é se, e somente se, vir respalda na linguagem; somente assim se constrói a narrativa. O espaço do discurso, enquanto território de disputa de ideias, não pode ser negligenciado; ao contrário. O espaço discursivo deve ser buscado como se dele dependesse a sobrevivência do grupo “ameaçado”. Todavia, a narrativa só se efetiva se alcançar àqueles a quem, por identificação ou fraqueza emocional, fraqueza essa reafirmada, e ressignificada, a todo momento, para que a mensagem não encontre resistência. Nesse aspecto, saber qual público se busca atingir será a garantia de se conseguir “soldados” para a luta que se travará. Será, então, de suma importância, calibrar cada palavra, cada frase para que o discurso se efetive em ação.
Dito isso, pode-se destacar algumas (aqui, em destaque as 6, que julgamos, mais relevantes, embora, claro, ciente de que há outras) características do fascismo:
1 Desumanizar seguimentos da população. Esse seguimento pode ser religioso, étnico, de tendência sexual diversa, geográfico, enfim, qualquer seguimento que se quer atingir. Foi assim no nazismo quando os grupos eram os judeus, os comunistas, os não arianos, os gays, os ciganos, ou seja, o importante é fazer chegar à população, para dela obter apoio, tudo o que possa ser identificado como uma "inscrição" negativa do grupo-alvo. Assim, os judeus eram classificados como avarentos, que sugavam a riqueza da Alemanha. Os comunistas são aqueles que roubam tudo o que o Outro conquistou com esforço, ou se não roubam, querem usufruir sem ter se esforçado; normalmente são identificados como parasitas, sanguessugas. Eles não trabalham, mas querem o que é dos outros. Os Gays, eram classificados, ou, ao menos na retórica, como aqueles que renegam a Família, compostos por degenerados, uma vez que o grupo familiar consiste na união de um homem e uma mulher e sua prole. Os ciganos, os sem pátria, e, portanto, sem vínculo, um pária que não tem nação. Para todos os casos, é no discurso retórico que se desconstrói o grupo-alvo. Desconstruí-lo para construí-lo sob a roupagem negativa, sob (des) valores éticos e detentores de sentimentos dissimulados. Somente depois, isto é, somente após o discurso estar incorporado e assimilado, é que se avança para o ataque físico. Isso é importante - a assimilação e a incorporação do discurso - posto que, atingido esse estágio, o apoio às medidas segregacionistas serão mais facilmente expressados; afinal, o inimigo já foi identificado.
2 Aniquilar, isso mesmo, aniquilar o senso comum de história, o fascismo cria um passado mítico. Sem datar esse passado, apela-se a descrições que enaltecem o passado e que somente através dele é que se chegou a um tempo de glória e conformidade. Assim, a busca pelo passado, ela mesma uma tarefa baseada numa busca, representa a luta por resgatar a história descolada dos meios comprobatórios de tais descrições. O que importa é difundir a existência de um passado que precisa ser resgatado contra a ditadura de um presente que põe em risco a nação. Por esse meio, entende-se, negar toda história que possa significar ou vislumbrar contradição com o que se quer difundir, até aquele momento. Assim, qualquer vestígio que coloque em xeque o que lideranças estão a dizer, é logo ressignificado ou mesmo negado. Por exemplo, há quem negue a existência do holocausto. Para esses, trata-se de uma invenção histórica, de um mito, cujo objetivo é esconder uma conspiração perpetrada por judeus. E ainda, dizem que os milhares de judeus mortos nos campos de extermínio deram-se em consequência de uma epidemia de tifo (ressignificado) ou que os campos eram abrigos antiaéreos (negação). Acrescentam, ainda, a inexistência de uma prova concreta, de um documento escrito por Hitler dando a ordem de extermínio . Nesse jogo, e para tornar verdadeiro o que dizem, atacam-se as universidades, o sistema educacional, lançando mão de distorções da linguagem sobre a realidade. Entram, nesse mecanismo de manipulação, o anti-intelectualismo. Qualquer possibilidade de contrariar o que está sendo dito, é apresentado como um risco ao projeto fascista. Nesse sentido, e para que o que se está dizendo adquira apoio, constrói-se uma nova realidade, uma outra, e nova, narrativa. A nova realidade traz no seu núcleo narrativo a promessa de suplantar, de fazer desaparecer, a velha ordem identificada com a que degenera, a que, por muito tempo, vigeu e destruiu o sociedade nos seus pilares morais e organizativos. Para tanto, notícias falsas tomam o lugar do debate fundamentado (Como Funciona o Fascismo - Stanley, J. pg. 16)
3 A verdade, isto é, aquilo que se pauta pela comprovação documental, pelo critério científico, assentado em métodos de análise e referendado por especialistas, recebe o carimbo de organização ideológica, doutrinária e, no campo mais amplo, internacional: Globalismo. Assim, e faz sentido que assim seja, atacar de globalista (universidades e seus professores) atende ao objetivo de colocar a baixo tudo que possa representar obstáculo à nova realidade em construção, por um lado e, por outra parte, atacar o que denominam de marxismo cultural, sem, no entanto, esclarecer o que querem dizer com isso. Nesse aspecto, são duas frentes de ataque ao intelectualismo, cuja ação se insere no contexto de direcionar sua munição à difusão do conhecimento. Em resumo: matar a verdade e colocar no lugar uma outra que dê novo significado à existência da "nova ordem" se inscreve numa "lógica" que não precisa , ela mesma, seguir lógica alguma. Trata-se de reelaborar, reescrever e ressignificar estruturas cognitivas sem a necessidade de comprovação do que se está dizendo. Trata-se, em última instância, de uma questão de fé. Por outro lado, atacar a universidade, não significa que o fascismo negue a universidade pura e simples. É que o ataque se dirige àquelas que proporcionam a difusão e a pluralidade do conhecimento numa perspectiva variada de enfoque e debate. Para o fascismo, a universidade tem importância como a propagadora de um único ponto de vista dominante legítimo. Assim, e para alcançar o objetivo, o debate e a diversidade são vistos como desvios que devem ser combatidos. Então, e não é sem motivo, que qualquer manifestação que reivindique melhora do curriculum ou questione o programada acadêmico, logo é classificada como balbúrdia, desordeira, caos, etc.etc.
4 Outra característica se inscreve no ataque às questões de gênero.
Uma vez que o fascismo tem como seu baluarte fundamental a Família e, portanto, o poder baseado no poder do homem, há de se ressaltar que o fascismo é uma ideologia que se destaca pelo patriarcado.
Ao colocar em xeque tal sociedade, estudos de gênero e, particularmente, o feminismo, foram atacados como uma conspiração judaica para destruir a fertilidade das mulheres arianas. Nesses tempos modernos, os nossos tempos, atacar estudos de gênero e feminismo, em essência, não difere muito das práticas dos anos 30. Posto que, de lá para cá, esses ataques têm como premissa proteger a família baseada no poder do homem sobre sua prole. Submeter a mulher ao homem difere do que, na essência estudos de gênero propõe: igualdade de direitos, sem hierarquia.
5 Ao estabelecer a narrativa do Eles contra Nós, o fascismo também se coloca como o grupo que precisa se defender de inimigos. Nesse sentido, colocar-se como vítima de um grupo, etnia ou qualquer coisa que possa ser utilizado como Eles, dá ao fascismo elementos que autorizam a utilização de ferramentas (armas) das mais diversas.
Peguemos a transferência de renda. Parte da sociedade, ao ver que determinado grupo social - historicamente alijado da partilha dos frutos do desenvolvimento e, portanto, também historicamente, excluído da vida nacional - passa a ser protagonista nas políticas públicas, se vê preterida nos seus - tradicionalmente garantidos - direitos de privilégio. Assim, a transferência de renda significa, para essa facção da sociedade, usurpação de um direito. Noutras palavras: "Eles, estão roubando o que é nosso por direito". Esses vagabundos, parasitas.....Nós temos que nos defender. E para reforçar a narrativa, emendam com um Comunistas.
6 Outra, e talvez das mais importantes, pois, as outras só terão alcance se esta for efetivada, a propaganda é de fundamental relevância. A propaganda é o meio pelo qual a ideologia alcançar a quem se destina. Massificar a narrativa pressupõe: a) tornar acessível as ideias (não ideais) que se deseja colar no grupo social visto como Nós, b) fazer do Eles o grupo que deve ser direcionada toda a artilharia.
Por último, há que se concluir que o fascismo é uma ideologia baseada no Eles contra Nós e que se apoia na busca por um passado mítico. É uma narrativa cujo escopo é apenas a eliminação do outro identificado como o responsável pela perda, ou corrupção, de valores como Família, Nação, Hierarquia e Virilidade (patriarcado) por causa da incorporação de outros elementos trazidos pelas universidades invadidas por comunistas. É também a busca pela retomada de um passado que garantia o direito por privilégio perdido pela usurpação da renda destes por uma parcela da sociedade (de vagabundos, parasitas....) que não produz nada. Ou seja, o fascismo é uma ideologia que enaltece a sociedade vertical, patriarcal e disseminadora das diferenças. As universidades só tem relevância somente para legitimar a ordem dominante, ou seja, uma vez que traz como sua medida a retomada de um passado mítico, ela adquire, nesse particular, a suprema importância de assentar e reforçar a necessidade de busca por um passado perdido e que se faz urgente sua reincorporação no ethos social. Enfim, o fascismo é antes de tudo, a conquista de mentes e corações.