Freud

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Só acendo um cigarro. Não tenho noção há quanto tempo não durmo. Tudo está confuso. Do avesso. Pareço mergulhado numa areia. As nuvens não se mexem. O tempo parou. Olho para os pés. Admiro os pés. Eles são a verdadeira identidade de uma pessoa. Os pés são operários. Começam a reclamar se você esquece de andar no céu. Tenho a impressão já ter lido o que estava escrito na margem de um pedaço de papel: amola a faca. Não compreendi. A letra era minha. Portanto, somente eu poderia ter escrito. E se não fosse eu? Eu poderia ser dois? Mesmo corpo duas mentes? Quando um dorme o outro assume? Maluquice. Deve ser coisa da minha cabeça. Algum filme da sessão da tarde. Esse bilhete com palavras na margem era uma prova viva de que podemos ser mais de um. O bilhete era familiar. A letra era íntima. Mas o recado era estranho. Amolar a faca. Que diabos de mensagem queria dizer isso. Amolar a faca deve ser afiar. Sei lá. Não vou procurar no Google. Ando de saco cheio do Google. Metido. Enfim, vou aceitar que amolar é afiar. Fodase. Nunca fui de cuidar de facas. Não lembro. Abri a gaveta dos talheres. Havia duas facas. Uma grande sem fio e cabo de plástico preto. A outra era pequena de serrinha. Tramontina, provavelmente. Se quer sei afiar faca. Deve ser uma mensagem essa frase. Será que o meu outro eu está dando alguma pista para me guiar? Ou será o contrário, uma mensagem pra que eu me machuque? Amolar a faca deve ser: afiar para salvar ou afiar para matar ou morrer. Não sei. Não conheço meu outro eu. Será que posso confiar nele? Era melhor conversa. Mas como conversar com meu outro eu se usamos o mesmo corpo. Pois é, parece impossível. Tive uma ideia. Talvez a gente possa se corresponder por bilhetes. Como esse sobre a mesa. Ele poderia ter explicado melhor. Tem que decodificar o que ele quer. Será que meu outro eu é ele? Ou é ela? Eu posso ser ele e ela no mesmo corpo? Gozado. Será que ela sabe que sou meio tarado? Não desses que faz mal para os outros. Eu não. Sou do tipo de tarado que se maltrata. Me masturbo entre oito e dez vezes ao dia. Canso. Gosto. O corpo acostumou. Quando me masturbo penso em coisas aleatórias. Pés. Mãos. Dedos. Nuca. Muita nuca. A nuca é abrigo. Um acontecimento. Penso todo tipo de bobagem. Será que ela sabe disso tudo? Porque ela quer que eu afie a faca. Fiquei grilado. Será que ela quer me dizer algo? Será que essa mensagem tem a ver com meu pau? Não faz sentido. Muito psicanalítico. Freud iria se revirar no túmulo. Será que ele sabia que a gente poderia ser dois num mesmo corpo? Deve ser o que ele considerava como inconsciente. Duvido do Freud. Não acredito em alguém que escreveu mais de vinte livros. Devia usar cocaína. Bom. Descartei o pau. A faca não é para cortar meu pau. É burrice. E brega demais. Preciso dormir para entender. Não sei mais o que pensar. Não sei se vi o bilhete ou se pensei que vi. Agora me perdi. Tem alguém aí para me ajudar? Por favor. Preciso de ajuda. Tô vivendo neste apartamento com muita gente. E nem sei quem são. Tô com medo que eles descubram tudo sobre mim. Vai ser um vexame. Tenho vergonha de mim. Minha pele. Meus pés. Meus olhos. Minha testa. Tudo. Até do pau. Voltei para a castração. Voltei para a psicanálise. Eu sou uma explicação psicanalítica sobre Édipo Rei. Claro que sem ninguém. Nem Laio, nem Jocasta. Vou dormir. Preciso. Preciso mesmo. Comecei a me excitar com o charuto do Freud. Devo estar sonhando. Boa noite.