A Armadilha Realista: Dicotomias e Intolerância - Todo Incognoscível 39

Outro dia uma amiga (Naíse) me falou, “converso sobre tudo, menos religião e política”. Eu, pelo contrário, gosto e defendo debater qualquer tema. Por mais que cada pessoa tenha suas falhas na lógica, na argumentação, nas crenças, o debate - especialmente com quem pensa de maneira diferente - é o caminho para levar ao aperfeiçoamento mútuo. Entretanto entendo o posicionamento dela. Muitas pessoas são violentas na defesa de suas posições e é habitual o ataque ‘ad hominem’, ou seja, ao invés da avaliação crítica do que é argumentado o simples ataque a quem está argumentando. Ficou claro para mim que em regra as pessoas usam o seguinte raciocínio, “Se você não comunga a mesma linha de pensamento que eu, logo, você advoga em favor ‘dA’ outra linha de pensamento. Ou seja, você advoga pela linha daquelas pessoas mesquinhas, aquelas pessoas fracas que acreditam naquele corpo de ideias apenas porque lhes favorece.” Este é o motivo para que eu evite dicotomias (por exemplo, entre esquerda e direita). Parece exagero, mas já fui xingado de capitalista por uma pessoa (Mônica) que havia acabado de definir capitalismo nos termos mais pejorativos - é importante notar que não sou dono de meios de produção, nem sequer sou rico ou emprego alguém. Ou seja, eu seria capitalista exclusivamente porque rejeito os conceitos marxistas - logo, eu seria “do time do mal”.

Mas eu estava preparado: no mesmo instante em que fui xingado apontei este fato. Ela ficou sem graça e tentou voltar alguns passos na discussão. No começo da conversa apontei algumas características que a teoria marxista aponta que são completamente contrárias à maneira que eu percebo o mundo 1* . Nestes pontos, Mônica concordava com minhas observações. Ainda assim, preferiu manter suas definições marxistas. Então propôs, para encerrar a discussão um mínimo em que ambos poderíamos concordar: existe exploração. Ou seja, vamos recorrer ao conceito puro de exploração 2*. O que minha amiga propunha era abandonar nossas divergências em favor da Realidade do que é a exploração. Diversos filósofos apresentaram a abordagem realista, a qual considero inapropriada para entender as experiências.

Bertrand Russell achava que as coisas possuíam existência objetiva e que seria possível apontar para elas, ‘A’ Realidade seria a relação que estas coisas guardam entre si. Para Platão ‘A’ Verdade estaria no mundo das ideias e aquilo que experimentamos é uma deterioração da perfeição do mundo das ideias. Seu aluno mais famoso, Aristóteles, manteve a linha de pensamento de Platão mas inverteu a ordem. Ao invés daquilo que observamos ser uma deterioração do que é Real o que cada coisa é seria uma potência que, nas condições corretas, se realiza. Tal potência é a essência. Desta maneira a essência de uma semente, aquilo que ela realmente é, é uma árvore. Para Platão aquilo que experimentamos é uma deterioração do mundo das ideias (a perfeição é anterior à experiência). Para Aristóteles aquilo que experimentamos pode vir a se realizar plenamente no futuro, caso em que a essência (‘A’ Verdade) se revelaria.

Para Aristóteles, entender a essência de alguma coisa seria, de alguma maneira, entender a sua finalidade. Entretanto, todas as doutrinas realistas falham em reconhecer que é impossível descrever a ‘Realidade’. Afinal, para qualquer descrição é necessário recorrer a conceitos anteriores, sistemas de pensamento anteriores, fatos anteriores. E para entender cada um deles é necessário recorrer àquilo que é anterior em um segundo nível, para entender o anterior em segundo nível é necessário recorrer ao anterior em terceiro nível, isto infinitamente, naquilo que é conhecido como “regressão ao infinito” 3* . Curiosamente o próprio Aristóteles admitiu este problema, mas para ele os filósofos teriam uma “intuição” a respeito do que ‘A’ Verdade (a qual, para ele, é a essência). Infelizmente não é legítimo a um debate recorrer à intuição - uma vez que cada pessoa possui uma intuição diferente a respeito das coisas. Intuição esta que se dá de acordo com os hábitos e sistemas de crenças de cada pessoa (é subjetivo). Bertrand Russel tentou fugir do problema da regressão ao infinito apenas apontando para cada coisa que existia (aquilo que seria nominado). E cada coisa seria as relações que guardam entre si com todas as outras coisas. O que Bertrand Russel foge da regressão ao infinito da causa última (ao apontar), mas a regressão ao infinito se dá também de outras maneiras. Ao apontar ele resolve um problema da regressão ao infinito da causa, mas a própria maneira de pensar demanda uma justificação. Gottlob Frege mostrou matematicamente que nenhum sistema formal pode provar a si mesmo. Minha amiga Mônica, ao propor apenas aceitarmos a existência do conceito de ‘exploração’ está recorrendo à saída realista.

Entretanto, é impossível apelar para o ‘Real’, aquilo que cada pessoa entende como realidade corresponde apenas ao que cada pessoa está acostumada a acreditar. Na prática Marta estaria mantendo sua percepção de como a exploração se daria: seria através das relações de trabalho. Ela continuaria recorrendo ao sistema teórico marxista! Eu aceito que é possível diversas definições de exploração. Por exemplo, como forma de se valer de algum recurso e - ao fazer isto, consumi-lo. É o caso da exploração de uma mina de ferro, quanto mais a utilizamos, menos ferro ela passa a ter. Adaptando o conceito para as relações humanas, isto seria o caso de escravos que trabalham à força além do seu limite físico e que, a cada dia, se tornam mais fracos. Em relações contratuais isto também pode se dar, é o caso de uma pessoa que quanto mais trabalha pior fica, por exemplo, uma datilógrafa que desenvolve lesão por esforço repetitivo. Quanto mais ela digita, mais ela está deteriorando sua capacidade física de digitar.

Entretanto, o usual é que se dê o contrário, quanto mais uma pessoa trabalha melhor ela fica. Uma piloto com mil horas de voo é melhor do que uma com cem horas de voo. Uma cabeleireira com cinco anos de experiência é melhor do que aquela que aprendeu cortar cabelo há dois meses, uma tatuadora experiente é melhor do que a que está iniciando. Ou seja, seguindo esta definição de exploração, em regra o trabalho é o oposto de exploração, seria um cultivo em que as habilidades são potencializadas 4*.

REALISMO E A INTOLERÂNCIA

Desde que me entendo por gente sou ateu, mas quando era adolescente dei uma chance a igreja evangélica de uma amiga (Maranata). Ao sair do culto fui abordado por diversas pessoas, elas me perguntaram o que achei e se eu tinha sido tocado pelo Espírito Santo (não sei se foram estas palavras que usaram). Eu disse que tinha achado agradável, mas eu não conseguia afirmar que passei por uma experiência divina. As pessoas, no começo simpáticas, começaram a ficar impacientes. Era claro que Deus tinha entrado em contato comigo, se eu não reconhecia a falha era minha. O ‘Real’ para elas era a existência de Deus, negar isto é uma opção que depunha contra mim. Fiquei um pouco intrigado com aquele posicionamento e perguntei a respeito das pessoas no oriente médio, na Índia e na China. A resposta é que cada uma daquelas pessoas foi tocada por Deus (certamente na versão cristã em que eles acreditam) e que recusaram aquilo, portanto irão ao inferno!

Oras, este posicionamento dogmático é semelhante ao da Mônica. Para ela uma pessoa olhar um contrato de trabalho e não enxergar ‘A’ Realidade de que existe exploração é uma avaliação que depõe contra a pessoa: ela é uma capitalista que se aproveita da vulnerabilidade e ignorância alheia para roubar sua força de trabalho. Ah, mas e se ela for uma trabalhadora, uma desempregada ou de alguma maneira não se enquadrar no perfil de quem explora? Neste caso ela é uma capitalista porque ela quer ser a empregadora e ficar numa situação em que poderá roubar a mão de obra. Ah, mas a pessoa nem sequer quer abrir um negócio? Neste caso seu problema é que ela está sendo enganada pela ideologia burguesa. Ou seja, quem recusa ‘A’ Verdade marxista necessariamente incorre em uma falha pessoal: ou acredita naquilo que lhe convém (por ser uma exploradora ou por desejar se tornar uma) ou ela é incapaz de entender ‘A’ Verdade marxista.

Atualmente sigo a escola austríaca de economia. Seu maior expoente, Mises, defende uma perspectiva da economia compatível com a perspectiva cética (filosofia que sigo). Para ele (e para a escola austríaca) o valor de qualquer coisa é atribuído por cada pessoa (ou seja, subjetivamente). Oras, este posicionamento é o contrário de dizer que existe ‘A’ Realidade do que é o valor! Entretanto, mesmo nos canais que defendem a escola austríaca percebo o apelo para A Verdade e para a intolerância. Nos canais eles falam como se as pessoas que defendem a orientação oposta à do livre mercado estivesse apenas orientada por interesses escusos e mesquinhos (políticos querendo poder, servidores públicos querendo regalias).

‘A’ Verdade, nos canais austríacos, é a de que a falta de responsabilidade fiscal retira dinheiro de toda a sociedade e o transfere para quem é mais próximo ao Estado (por conta do efeito Cantillon). O mercado seria o mecanismo através do qual o valor de cada pessoa se manifesta, portanto apenas o mercado seria capaz de expressar o valor da multiplicidade de pessoas e de seus valores. Ao passo que a regulamentação imporia o valor de um determinado grupo de pessoas e favoreceria grandes empresas (cuja regulação é criada através de lobby). Neste ponto de vista ‘A’ Verdade é que o mercado favorece a sociedade e o Estado roubaria da população em geral para favorecer quem administra a máquina Estatal (servidores públicos, políticos, empresas com força política).

A intolerância de quem segue da escola austríaca se dá no juízo que se faz de quem se afasta ‘dA’ Verdade de que o livre mercado é benéfico. Servidoras defenderiam a falta de responsabilidade fiscal porque são diretamente beneficiárias dos gastos do Estado (através dos salários), deputadas e senadoras defenderiam o Estado grande porque assim acumulariam mais poder… mais uma vez, quem se afasta dA Verdade o faria por interesses mesquinhos 5*.

REALISMO -> DOGMATISMO -> INTOLERÂNCIA

O que é ser dogmático? É não dar espaço para questionamentos, daí o posicionamento de cada pessoa se torna um dogma. Embora nem sempre seja o caso, o realismo pode levar ao dogmatismo. É o caso das pessoas que defendem a existência de ‘A’ realidade de alguma coisa e a consideram como óbvia para quem quiser ver. Como mostrou Hume, esta é uma posição extremamente equivocada, pois o ‘obvio’ e o ‘real’ são estabelecidos através do próprio sistema de crenças, são próprios ao hábito. O tal do ‘senso comum’ é comum apenas a algumas pessoas, alguém certamente pode interpretar os conceitos de maneira diferente (como ilustra o caso do conceito de ‘exploração’).

É possível uma pessoa ser realista e não ser dogmática. Ela pode acreditar na existência da realidade, mas estar aberta à possibilidade de estar equivocada, ela pode estar aberta a fatos e argumentações que antes desconhecia. É contraditório uma pessoa ser cética e ser dogmática, pois o ceticismo se define por ser a abertura a questionar tudo. Entretanto, os limites da capacidade cognitiva podem tornar um cético dogmático. Neste caso a pessoa se atém a uma perspectiva não por se recusar questioná-la, mas por não conseguir entender o questionamento ou as alternativas àquele ponto de vista.

Entretanto o dogmatismo por acreditar nA Verdade e o dogmatismo por incapacidade de compreender pontos de vista alternativos tem consequências diferentes. Uma pessoa cética pode recusar uma perspectiva que não consegue entender, mas dificilmente ficará com raiva de quem defende aquele ponto de vista. Entretanto, uma pessoa que entenda que existe ‘A’ Verdade e percebe que tal verdade é óbvia acredita que a recusa daquela Verdade se dá devido à má fé e passa a dividir as pessoas em ‘nós’ (aqueles que tem boa índole de para aceitar a Verdade tal como é) e os ‘outros’ (que recusam A verdade óbvia, transparente e acessível ao senso comum).

DICOTOMIAS 5*

A dicotomia é a cegueira para a diversidade. A dicotomia quente x frio entende que existe apenas uma coisa da qual um polo se direciona para o quente e outro polo se direciona para o frio. Tal coisa tem um nome, é a temperatura. Já a dicotomia bom x mau entende que existe apenas uma coisa, cujo polo é o mau e o outro polo é o bom. Em termos humanos esta dicotomia em geral é expressa na dicotomia nós x ‘os outros’. É o caso, por exemplo, da civilização x barbárie ou dos cristãos x pagãos. Sendo, claro, que o ‘nós’ é relacionado ao que é bom, ao passo que ‘os outros’ é relacionado ao que é ruim.

Uma perspectiva diferente é a da diversidade. É o caso das cores, é possível montar um círculo de cores com infinitas cores. A partir desta perspectiva o mundo é plural, infinito. E, embora se apresentem diversas perspectivas ou grupos de pensamento que cada pessoa pode achar inadequada, é sempre possível surgir algum conceito, alguma maneira de existir, alguma cor que enriqueça nossa existência. A dicotomia reconhece a existência de apenas uma coisa (e tudo se situa em graus desta única coisa). No caso do ‘quente x frio’ é a temperatura, no caso do ‘bom x mau’ é a grau bondade, no caso do ‘civilizado x bárbaro’ é o grau de civilização, no caso da ‘esquerda x direita’ é o posicionamento político… Cada pessoa se reconhece em um espectro da dicotomia e tende a ver quem pertence ao outro pólo deste espectro com maus olhos.

Minha sugestão é que sempre tentemos ver o mundo a partir da perspectiva da outra pessoa e sempre pressupor que a pessoa tem boa vontade em sua argumentação, desta maneira, entender os argumentos e pressupostos sobre os quais sua opinião se dá e, com muita calma, desconstruí-los. Caso não seja possível… bem, talvez seja o caso de mudarmos nossa posição a respeito daquele tema.

CONCLUSÃO

Tive um debate com Mônica, nele mostrei como os conceitos marxistas são equivocados. Durante o debate, pela incapacidade de me convencer com o debate teórico Mônica me atacou pessoalmente. Comigo isto é habitual, tanto com pessoas que se identificam como ‘de esquerda’ (me xingando de capitalista ou de liberal) como com pessoas que se identificam como ‘de direita’ (me xingando de petista). Apontei a agressão que recebi (pois ela havia acabado de definir capitalista nos termos mais pesados) e Mônica percebeu que me ofendeu. Para fazer as pazes, Mônica propôs fugir do debate teórico e apelar para A Realidade - apenas admitir ‘A’ Realidade do que estava sendo discutido (sem entrar nos meandros do debate teórico). Entretanto isto é impossível, cada conceito existe apenas dentro de um sistema de crenças (seja ele formalizado em uma teoria ou não).

Foi então que esta situação paradoxal (de ser xingado por pessoas de esquerda com ofensas que atribuem a pessoas de direita e de ser xingado por pessoas de direita com ofensas que atribuem a pessoas de esquerda) ganhou luz. Estas pessoas enxergam o mundo a partir do que é ‘A’ Realidade, tal realidade seria óbvia para quem fizesse o esforço de a descobrir. Assim, acreditar em qualquer perspectiva diferente se deve a uma falha pessoal, em geral uma falha moral. Uma pessoa seguidora da escola austríaca e que acredita que ‘A’ Realidade é que os mercados alocam bem os recursos acredita que quem defende o Estado o faz por motivos mesquinhos (pelo salário se for um servidor, pelo poder se for um político, pelas políticas protecionista do seu setor, se for um empresário). Uma comunista acredita que se desvia dA Verdade marxista o faz porque se beneficia do sistema de exploração.

Proponho abandonar dicotomias empobrecedoras (como esquerda x direita) nelas quem é diferente é visto como um inimigo a ser combatido. Proponho enxergar o mundo colorido em que as diferenças de concepções e entendimentos sejam percebidas como uma riqueza a ser festejada!

1* Por que o marxismo é um sistema de pensamentos que confunde ao invés de esclarecer

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7319138

2* Curiosamente em uma discussão há muitos anos tive uma discussão em que um amigo a respeito da existência da gravidade e um ele propôs uma saída muito semelhante. Na época eu defendia a posição cética de que qualquer conceito existe apenas em um sistema de ideias. Ele defendia a visão realista de que as coisas tem existência objetiva. Ele defendeu que a gravidade existia mesmo sem que fosse definida. Então ele pegou uma pedra e a soltou no ar e disse “isto existe”. Entretanto, chamei a atenção dele, ele estava recorrendo ao conceito de gravidade (ainda que não usasse a palavra “gravidade”). É interessante notar que é possível outras explicações para o fenômeno da queda de alguma coisa. Aristóteles apresentava uma explicação completamente diferente da gravidade, e ninguém garante que o conceito de gravidade ainda existirá daqui a mil anos.

3* Regressão ao infinito:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7062763

David Hume já havia apontado ao mostrar que qualquer justificativa de um conhecimento também demanda uma justificativa - o que leva à regressão ao infinito da justificativa, ao invés da regressão ao infinito da causa. Em ensaio futuro defenderei que é impossível infinitas regressões ao infinito diferentes.

4* Outra maneira de entender o conceito de exploração, fazendo um esforço para me aproximar do uso comum, seria entender em termos relativos. A exploração não seria a diminuição da capacidade devido ao uso, mas a diminuição da capacidade relativamente ao que a pessoa poderia estar fazendo. No meu caso, ao invés de eu vender minha força de trabalho diariamente eu poderia dedicar meu tempo a estudar e a praticar minhas habilidades, caso em que eu estaria muito, muito mais proficiente em diversas habilidades. Se eu tivesse esta disciplina em poucos anos estaria dominando programação, algumas línguas e já tocaria violão!

5* A falácia do terceiro excluído:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7193342

6* Tenho lido 'Sociedade abertas e seus inimigos', de Popper, tenho clareza de que este ensaio é fortemente influenciado por este livro.