Ciência e a falácia científica - Todo Incognoscível 37

O QUE É CIÊNCIA

Pouca gente se interessa pela reflexão a respeito do pensamento em geral, quando digo para alguém que sou apaixonado por epistemologia (ramo da filosofia que estuda o conhecimento), me perguntam o que é isto. Mas nem é necessário ser tão específico, as pessoas nem sequer têm ideia do que a ciência é ou o seu papel. Me marcou muito no primeiro grau quando um professor de religião fez uma apresentação completamente distorcida da teoria da evolução de Darwin, ele disse, “Se você estiver em uma sala, sair e quando voltar ela estiver mais arrumada certamente é porque alguém a arrumou. A casa nunca estará melhor do que estava quando a última pessoa saiu. A mesma coisa com a evolução, sem uma inteligência por trás as espécies não podem evoluir!” O professor simplesmente apresentou a evolução ignorando a teoria que a embasa!!!! Isso em uma escola! Entretanto, em minha infância, mesmo que ninguém tivesse ideia do que a ciência é, havia uma certa reverência por ela, um certo respeito. Se ‘A’ Ciência dizia que a vacina previne casos de determinada doença e faz com que, mesmo quem a pegue, tenha sintomas mais leves, as pessoas não protestavam contra a vacinação. Mas o que é ciência? O que é entendimento? Como é possível conhecer qualquer coisa?

Uma maneira comum de entender o conhecimento é o de que aprendemos através da observação. Uma criança que coloque o dedo em uma brasa e o queima, passará a evitar o contato com brasas. Mesmo uma vaca que passe por uma experiência como esta passará a evitar brasas. Este é um mecanismo de aprendizagem instintivo e que torna nossa vida possível. A partir dele, seria de se imaginar que ao usarmos nossos sentidos para colecionar diversas propriedades do mundo teríamos acesso à Verdade do que cada coisa é, por exemplo, o que é O Fogo. Entretanto este mecanismo (atribuir uma generalização a partir do conhecimento) pode ser enganador.

Imagine que num determinado dia você viajou, mandou as roupas para lavar e acabou esquecendo de separar meias para vestir. Neste dia você assiste à final da Libertadores da América e o seu time, o Bangu, vence! Certamente você pode atribuir uma causa (estar sem meias) a uma consequência (Bangu vence). Logo, a partir de agora, você só verá os jogos do Bangu sem meias! O problema de atribuir uma consequência a uma causa é conhecido como ‘problema da conexão necessária’, devido à maneira que David Hume o apresentou no livro Ensaio Sobre o Entendimento Humano: é impossível provar que determinada consequência decorreu de determinada causa!

Para atribuir uma causa a uma consequência a observação não é suficiente. Portanto uma explicação àquela causa/consequência se faz necessária. Mas por que esta explicação se aplica àquela causa/consequência? Para saber isto é necessário uma nova explicação. Assim até o infinito! Este é o motivo pelo qual qualquer teoria incorre necessariamente em uma das duas opções, 1) tem premissas, crenças que a própria teoria não consegue embasar, para a teoria ser aceita devemos aceitar as premissas. 2) a própria teoria se embasa, embasa a si mesma. Ambos os casos são problemáticos, no caso das premissas necessariamente chegaremos a um ponto que teremos que aceitá-la ou recusá-la sem apelar para sua veracidade. No segundo caso a teoria demonstrar a si mesmo, a própria teoria é uma falácia, um erro de argumentação. Pois se permitirmos que a teoria prove a si mesma, qualquer pessoa pode provar qualquer coisa a partir da argumentação (tornando o próprio pensamento irrelevante).

Pelos motivos elencados acima Popper reconhece que é impossível a qualquer teoria provar que alcançou ‘A’ Verdade (com ‘V’ maiúsculo me refiro a uma verdade objetiva e definitiva)2*. O que traz um problema terrível! Os positivistas lógicos 3* defendiam que uma hipótese seria confirmada com base em suas evidências. Uma vez que a confirmação de qualquer hipótese é impossível, como é possível afirmar qualquer coisa a respeito das experiências que observamos? Primeiro, o campo do pensamento que fala a respeito daquilo que observamos é a ciência. Outros campos do pensamento tem outros temas, aqueles que falam a respeito da Verdade percebida pela fé é a teologia, aquele que fala a respeito das implicações lógicas de determinadas regras são a matemática, a lógica… mas quanto o que uma teoria científica diz a respeito do mundo? A este respeito Popper foi genial!

Suponhamos uma teoria que contemple tudo. Por exemplo, “as coisas são como Deus quer”. Esta teoria não proíbe absolutamente nada e, por isto, tal teoria não diz nada a respeito de qualquer observação que façamos. Não há um evento que, caso ocorra, falseia a teoria. Já uma teoria que diga: “caso duas pessoas façam sexo antes do casamento, ambas vão virar sapos”, é uma teoria cietífica, pois há algo que caso ocorra nega a teoria: se duas pessoas transarem antes do casamento e alguma delas não virar sapo a teoria está negada. Neste sentido, quanto mais uma teoria proíbe, mas ela diz a respeito do mundo. Caso a física clássica (de Newton) preveja que uma pedra jogada faça uma parábola e pare a dez metros tal previsão proíbe qualquer outro movimento. Caso a pedra seja jogada e ela ande em zig-zague ou se ela parar a 10 km a teoria estará negada 5*. Uma previsão é uma proibição dentro de um contexto. Naquele contexto específico qualquer resultado diferente daquela previsão é uma evidência de que a teoria está incorreta! Quanto mais acurada a previsão, mais ela proíbe e mais a teoria nos diz algo a respeito das experiências observáveis. Entretanto, quanto mais proíbe, mais oportunidade dá para que alguma observação a negue! Ou seja, quanto mais a teoria diz a respeito do mundo, mais falseável ela é!

A capacidade aparentemente mágica de possibilitar previsões, de prover soluções a problemas antigos dá uma aura de Verdade à teoria. Entretanto, como demonstrado acima, é impossível provar que chegamos a qualquer Verdade objetiva e definitiva. Por mais incrível que seja uma teoria, sempre pode vir outra que a negue. E é assim que se dá a evolução do conhecimento científico, a partir da criação de hipóteses que digam algo a respeito das experiências. As hipóteses aceitas são aquelas que 1) façam previsões corretas em casos em que as hipóteses concorrentes façam hipóteses equivocadas ou 2) conseguem fazer previsões em situações que as hipóteses rivais não conseguem (ou seja, teorias que proíbem mais e que, portanto, dizem mais a respeito das observações).

A FALÁCIA CIENTÍFICA 6*

Mostrei no começo do ensaio que aferir uma causa de uma consequência a partir de uma série de observações faz parte da vida, é um instinto, uma “programação” com a qual nascemos e que possibilita nossas vidas. Entretanto, aferir a certeza da Verdade a partir da série de observações é um equívoco. Se eu assisto cinco jogos do Bangu sem usar meias, está provado que o Bangu vence devido a eu estar sem meias? Quantos jogos o Bangu precisa vencer para provar que eu assistir sem meias dá a vitória ao time pelo qual estou torcendo?

A falácia positivista consiste em atribuir uma Verdade a partir de uma série de observações. A falácia científica repete o erro, além de atribuir ‘A’ Verdade à ciência ela generaliza dizendo que toda ciência é Verdade: o celular funciona, portanto a Verdade da relatividade está provada. Um químico consegue sintetizar uma substância, portanto a Verdade da tabela periódica está provada, um médico fornece um remédio que cura uma doença, logo a Medicina está provada. Assim sendo, toda a ciência é uma porta para as Verdades e os cientistas são seus oráculos, seres iluminados com acesso à Verdade.

A falácia científica chama a legitimidade de um campo do conhecimento para o outro. Oras, se você aceita a ressonância magnética e a prescrição de uma médica (embasadas na ciência) também deve aceitar a prescrição de uma economista! Caso recuse as últimas descobertas científicas no campo econômico (que provam que imprimir dinheiro traz prosperidade à sociedade caso o Banco Central controle direitinho para onde o dinheiro vai) você está indo contra a ciência e seus oráculos! E caso você discorde você está indo contra ‘A’ Ciência, seu herege!

O RESPEITO À CIÊNCIA

Por que havia um respeito à ciência, por parte de pessoas que não tinham a menor ideia do que este campo do pensamento é, em minha infância? É um respeito de autoridade, semelhante à quem respeito os clérigos de sua religião. Entendo uma pessoa como o Olavo de Carvalho dizer que ninguém sabe o formato da Terra - apesar de toda a navegação aeroespacial e toda a comunicação por satélites serem baseadas em uma Terra redonda 7*. Como exigir que pessoas que tenham um entendimento completamente equivocado do que é ciência e do que é cada teoria científica acreditem nela? Exigimos que elas obedeçam por fé? Uma vez que as teorias e a própria filosofia são tão mal explicadas, é de se esperar que venha alguém que a questione. O fato de tantas pessoas aceitarem questionamento com bases tão equivocadas mostra o quanto a população em geral está equivocada quanto ao que à ciência e ao seu papel.

CONCLUSÃO

Sou um cético, escrevi este ensaio com base nesta filosofia e sei que poucas pessoas estão dispostas a embarcar nesta perspectiva de entender as experiências. Mas não é necessário ser uma pessoa cética para defender que a ciência deve sua grandeza à sua compreensão e à possibilidade de fazer críticas às suas teorias. O que observamos nos debates públicos, entretanto, são pessoas (como Olavo de Carvalho) fazendo pouco caso da ciência, e outras pessoas chamando à sua legitimidade, sem, entretanto, permitir qualquer crítica à sua autoridade. Pelo lado de quem chama a sua legitimidade: tais pessoas incorrem na falácia científica. Defendo que a legitimidade venha da força das ideias, nunca da autoridade de quem as defende.

FALÁCIA CIENTÍFICA

Generalização da falácia positivista

Generalização da crença de que diversos campos científicos alcançam ‘A’ verdade.

Exemplo:

Eletromagnetismo é ciência, portanto Verdade.

Tabela periódica é ciência, portanto Verdade

Teoria da evolução é ciência, portanto Verdade

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Logo

Teoria Monetária Moderna é ciência, portanto Verdade.

FALÁCIA POSITIVISTA

Aferir de diversas evidências positivas (observadas) uma Verdade.

Exemplo:

Ganso Branco

Ganso Branco

Ganso Branco

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Logo

Todos os gansos são brancos.

1* A inevitabilidade de que a prova de qualquer conhecimento incorra em premissas arbitrárias ou que incorra na falácia da definição circular é a base do meu ceticismo. Caso este alguém me convença da falha destes argumentos ficarei feliz em rever meus posicionamentos.

2* Se pararmos para pensar com calma, esta conclusão (de que é impossível alcançar uma Verdade) é consistente com o aprimoramento do conhecimento. Se fosse possível alcançar ‘A’ verdade, será que ela já não teria sido descoberta há 100 anos? Ou a 500 anos? Ou a 2.500 anos?

3* Círculo de Viena, grupo de pessoas com quem Popper disputava a maneira de ver o conhecimento.

4* A ciência diz algo a respeito do que observamos, mas não necessariamente através dos nossos olhos, pode ser a partir de uma luneta, um microscópio, um microfone. Uma teoria científica necessariamente fala a respeito de algum dado que de alguma maneira pode ser registrado. Segundo este critério, falar a respeito de algo que não pode ser registrado (por exemplo, falar das características necessárias de um conjunto de regras) é tarefa para outros campos do conhecimento, como a lógica, a matemática e a filosofia. Desta maneira a demonstração de David Hume de que é impossível provar qualquer conhecimento é um assunto da filosofia, pois não é necessário nenhuma observação para chegar a esta conclusão, mas meramente a interpretação das regras do conhecimento.

5* O que nos trás a um ponto interessantíssimo: qual a magnitude do desvio entre o que teoria previu e aquilo que foi observado que permite dizer que uma previsão foi falseada? A magnitude é proporcional aos instrumentos que usamos. Caso a previsão for apenas um milímetro de diferença, mas os instrumentos sejam muito, muito precisos e muito confiáveis, tal desvio já permite falsear a teoria.

6* Vi uma entrevista do Taleb em que um proeminente economista, coitado, chama a a ciência para legitimar a economia. Mal sabia ele que Taleb é um voraz crítico das “ciências” econômicas. A ‘falácia científica’ é inspirada neste vídeo - o qual nunca mais encontrei no youtube. Talvez o economista tenha ficado com vergonha e tenha pedido para retirá-lo.

7* O formato da Terra é descrito com muita precisão, não é exatamente redondo. A propósito, pode - se dizer que a própria existência da forma ‘redondo’ depende da precisão dos nossos instrumentos. Pois se formos suficientemente acurados qualquer bola que achemos terá algum desvio de sua redondice (mesmo que do tamanho de uma molécula).