Precisamos “politizar” a fome na mídia!

A história da alimentação, em parte, só pode ser compreendida através da luta diária contra o drama da fome. Desde tempos remotos, foram registrados inúmeros surtos e crises alimentares presentes em diversas partes do mundo. Em períodos sombrios assolados por guerras, pestes e catástrofes climáticas, ocorreram níveis alarmantes de escassez alimentar que marcaram profundamente as memórias dos povos (CARNEIRO, 2003). Mas a fome não faz parte do passado, ela está no presente; e a mídia, essa importante instituição social mediadora e denunciadora em uma sociedade democrática de direitos, tem abordado como o assunto fome nos últimos tempos diante das escolhas políticas do atual governo?

No Brasil, especialmente a partir do avanço da pandemia do novo coronavírus em 2020, a fome tem sido noticiada por veículos de imprensa de diversas maneiras. Alguns chegam a informar à população a partir de uma abordagem mais técnica, tomando para si a pretensão da objetividade impossível, visão há muito criticada por diferentes autores da área jornalística, a exemplo de Luiz Gonzaga Motta (2013), Genro Filho (1996) e Schudson (2010); outros agem de forma sensacionalista e há também aqueles que abordam essa temática formulando argumentos pautados na questão política.

O flagelo da fome e a insegurança alimentar e nutricional não é um acidente natural, ou um castigo divino, ela é, em grande parte, resultado de escolhas e não escolhas feitas por governantes de um país. O intelectual e cientista pernambucano, Josué de Castro, a partir da obra Geografia da Fome (1946), já denunciava que o fenômeno da fome não era exclusivamente biológico, mas possuía um caráter multidimensional: sociocultural, político e econômico. O autor defendia que a fome, em toda a sua complexidade, deve ser combatida de maneira sistêmica e de forma permanente, através de diversas frentes e conforme as especificidades de cada contexto socioeconômico.

O fato é que a tematização midiática em torno da fome, especialmente do jornalismo local, muitas vezes, é abordada como algo circunstancial e passível de ser resolvida apenas com ações de solidariedade, diferentemente do que propunha Castro (1946). Não que tais ações não sejam importantes, especialmente quando se observa um completo abandono do Estado às pessoas que passam fome. E “quem tem fome, tem pressa”, como diria Herbert de Souza, o Betinho. A questão é que a fome deve ser enfrentada através das lutas e reivindicações de setores da sociedade civil de forma que garantam, por meio da implementação de políticas públicas, o acesso pleno à alimentação adequada e justa; e a mídia tem um papel fundamental nessa mobilização social.

Nesse sentido, não há como ser “objetivo” diante da falta de acesso à alimentação, um direito presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e garantido pela Constituição Federal de 1988, também não se pode encará-lo de forma superficial. Esse é um direito básico e está relacionado a ter acesso, regular e permanente, a uma alimentação quantitativa e qualitativa de um povo, garantindo uma vida plena e satisfatória, livre de problemas causados pela escassez de alimentos (ZIEGLER, 2013).

A fome, portanto, não deve ser encarada por um viés meramente técnico, superficial ou sensacionalista, mas político; porque o direito à alimentação adequada e justa da população não está assegurado, pelo contrário, está sendo ainda mais comprometido com o aprofundamento dos efeitos perversos da pandemia. A fome oculta e invisível (desnutrição) gera prejuízos incalculáveis para todos os que não têm acesso mínimo ou satisfatório a uma alimentação regular e de qualidade. E essa é uma situação de calamidade pública que atinge tanto aqueles que vivem na cidade como no campo, sobretudo mulheres; pessoas sem renda mínima, a população negra, além das famílias rurais com acesso precário à terra, as comunidades quilombolas, ribeirinhas e as populações indígenas.

Por a fome ser política, em 2014, o Brasil atingiu um avanço considerável no combate à mesma com cobertura abrangente de programas como o Bolsa Família e saiu do mapa mundial da fome (levantamento realizado pela ONU, Organização das Nações Unidas, para identificar a carência alimentar nos países). O Ipea, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, verificou que em 15 anos, de 2001 a 2017, o Bolsa Família conseguiu diminuir a pobreza em 15% e a pobreza extrema em 27% (LIMA, 2021). Não à-toa, em 2013, o referido país obteve o maior alcance de segurança alimentar e nutricional e a alimentação de 77,4% dos lares “podia ser considerada como plena e regular” (SILVEIRA, 2021).

Diferentemente de governos anteriores, o (des) governo de Jair Bolsonaro demonstra não possuir compromisso algum com a fome dos brasileiros, a exemplo da extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), no âmbito federal; a diminuição do PAA, Programa de Aquisição de Alimentos e redução do Pnae, Programa Nacional de Alimentação Escolar, além do fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário que fomentava diversos subsídios para a agricultura familiar. Recentemente, ainda vetou quase integralmente os itens da Lei Assis Carvalho (PL 735/2020), aprovada pelo Congresso Nacional, que iria garantir às trabalhadoras e trabalhadores rurais acesso à crédito, cisternas, auxílio emergencial, entre outros benefícios. Alterado e novamente aprovado em 9 de junho de 2021 pela Câmara, o projeto segue agora para o Senado.

Não é demais repetir que a fome possui um caráter político, social e econômico. No final de 2020, enquanto 19 milhões de pessoas passavam fome, assistia-se a uma “comoditização” dos alimentos. Nesse período, o agronegócio comemorava o “recorde de grãos e crescimento de 5,7% em relação à safra anterior” (CIMA et al, 2021). O Brasil é o segundo maior exportador de alimentos do mundo, segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), mas 75% dos domicílios do campo viviam em situação de insegurança alimentar no segundo semestre de 2020, de acordo com um estudo da Universidade Livre de Berlim. Desses, 27% passavam por insegurança alimentar grave, caracterizada quando “há redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores do domicílio. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no lar” (SILVEIRA, 2021).

A comida existe, mas não é devidamente distribuída. “A produção dos alimentos e a sua disponibilidade social têm obedecido a uma dinâmica milenar de desigualdades distributivas de crises alimentares. As fomes assolam o passado e o presente da humanidade” (CARNEIRO, 2003, p. 24). As inseguranças alimentares leve, moderada e grave se devem, inclusive, a escolhas econômicas associadas ao “fenômeno exportação”, a exemplo do aumento da inflação em 6,7 %, no último ano, segundo o IPCA, Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. Itens da cesta básica como óleo de soja e arroz obtiveram um acréscimo de 80% e 60%, em média, respectivamente (CARRANÇA, 2021).

O jornalismo precisa “politizar” a fome! Não é uma opção não se indignar com esse cenário, é um compromisso cidadão, humano e moral. Não é possível se observar com “distanciamento necessário” pessoas em situação de insegurança alimentar e retratar a sua realidade de forma “objetiva”, espelhada, ou se aproveitar de sua condição para explorar sua vida de forma sensacionalista, nem abordar esse assunto como se ele fosse obra do acaso. Diferentemente do que setores da grande mídia propagam, a fome não é um problema exclusivamente natural e/ou uma mera fatalidade por causa da propagação da Covid-19. Ela é uma expressão biológica de um problema político, econômico e social (ADAS, 1988). E é assim que deve ser amplamente denunciada e combatida, ao propor não apenas soluções assistencialistas e de curto prazo, mas através de transformações estruturais e profundas, que contribuam para que toda a população brasileira possa ter uma vida mais digna e plena, sem esse flagelo que assola o mundo durante longos períodos na história da humanidade.

Referências

ADAS, Melhem. A fome: crise ou escândalo?. São Paulo: Moderna, 1988.

CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2003.

CARRANÇA, Thais. 3 em cada 4 famílias do campo comem mal ou passam fome no Brasil. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/06/02/exportacao-recorde-alimentos-seca-pandemia-fome-campo.htm. Acesso em: 10 jun. 2021.

CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro do pão e aço. Rio de Janeiro: Antares /Achiamé, 1980.

CIMA, Justina et al. Camponesas denunciam: além da covid 19, Bolsonaro espalha a pandemia da fome da fome. 2021. Disponível em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2021/06/camponesas-denunciam-alem-da-covid-19-bolsonaro-espalha-a-pandemia-da-fome/. Acesso em: 10 jun. 2021.

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. In: Revista da Fenaj. Brasília, Fenaj. ano I, n.1. maio 1996.

LIMA, Mário Sérgio. Inflação e pandemia podem empurrar Brasil de volta ao Mapa da Fome. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/04/01/inflacao-e-pandemia-podem-empurrar-brasil-de-volta-ao-mapa-da-fome. Acesso em: 10 jun. 2021.

MOTTA, L. G. Análise Crítica da Narrativa. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2013. 254 p.

SILVEIRA, Daniel. Fome no Brasil: em 5 anos, cresce em 3 milhões o nº de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, diz ibge. em 5 anos, cresce em 3 milhões o nº de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, diz IBGE. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/09/17/fome-no-brasil- em-5-anos-cresce-em-3-milhoes-o-no-de-pessoas-em-situacao-de-inseguranca-alimentar-grave-diz-ibge.ghtml. Acesso em: 10 jun. 2021.

SCHUDSON, Michael. Descobrindo a notícia: Uma história social dos jornais nos Estados Unidos. Trad. Denise Jardim Duarte. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: Geopolítica da fome. São Paulo: Cortez Editora, 2013.

Fonte:

https://marginaliasocial.wordpress.com/2021/08/04/precisamos-politizar-a-fome-na-midia/

Inã Cândido e Karolina Calado
Enviado por Inã Cândido em 11/08/2021
Reeditado em 11/08/2021
Código do texto: T7318336
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