TRABALHO E IDENTIDADE SOCIAL DO TRABALHADOR

TRABALHO E IDENTIDADE SOCIAL DO

TRABALHADOR

Em certo sentido, o trabalho é suporte de valor, por isso é identificado de diversas maneiras, dependendo do ponto de vista de quem analisa, e de quem é agraciado por ele. O trabalho pode ser valorizado como digno ou indigno, lícito ou ilícito, formal ou informal, seguro ou perigoso, e assim sucessivamente (JARDIM, 1997, pg. 83).

A análise que aqui se propõe, recai sobre o trabalho digno. Trabalho que, sendo uma das categorias de maior relevância social, transforma simultaneamente o sujeito e a sociedade. Todavia, se considerarmos a dinâmica do capitalismo, sobretudo ao final do século XX e início do século XXI, constataremos a fragilização do valor trabalho e de seu significado mais fundamental de construção da identidade, seja considerada a identidade individual, seja considerada a identidade social do individuo (DELGADO, 2006, pg. 142).

Nesse sentido, Tereza Gosdal (2007, pg. 105), destaca que “sob o capitalismo, o trabalho concreto particular é vendido como trabalho abstrato, reduzido a uma unidade formal. O trabalho humano passa a constituir meio de produção de valores de troca, de bens esvaziados de sua qualidade de utilidade, considerados apenas por sua equivalência com outras mercadorias e com o dinheiro. O trabalho abstrato é a força criadora do valor, sendo o valor das mercadorias proporcional á quantidade de trabalho incorporada, o que só é possível num sistema econômico que generaliza a troca de mercadorias, como o capitalismo. No valor das mercadorias não está contido apenas o trabalho humano vivo imediato, mas também o trabalho cristalizado nos meios de produção e envolvido na circulação das mercadorias”.

Para Karl Marx (1818-1883) o trabalho humano é integrante da estrutura da vida em sociedade. Segundo o pensamento marxista, os homens necessitam do trabalho para a produção de objetos materiais e de alimentos no seu cotidiano. Tais objetos e alimentos são produtos do trabalho dos homens sob a natureza, mas nenhum homem trabalha em solidão ou vive apartado da natureza (DELGADO, 2006, pg. 127).

O trabalho humano para Marx é um trabalho socialmente necessário. Nesse processo as pessoas passam a depender umas das outras e criam as denominadas relações sociais de produção. Nessa dinâmica, o trabalho individual integra-se ao trabalho social. E assim, o valor trabalho relaciona-se ao valor social do trabalho produzido, ou seja, á capacidade de satisfação das necessidades humanas com o fruto do trabalho realizado. Constitui-se assim, o “ser social”.

Logo, “os indivíduos só podem ser explicados pelas relações sociais que mantêm, isto é, pela organização social a que pertencem e que os constitui como eles são. Cada modo social de produção criaria os indivíduos de que necessita. Não haveria um homem universal, mas o concretamente produzido pelo conjunto das relações sociais de produção” (REIS, 2004, pg. 54).

Percebe-se, portanto, que o ser pensado por Marx é fruto das relações concretas de produção, organizado para a produção e dependente dela. O trabalho presente na dinâmica da produção econômica possui, no pensamento marxista, valor inerente a si mesmo. É valor integrado às necessidades de sobrevivência das sociedades que, como fator essencial ao processo produtivo, impulsiona as transformações das sociedades nas quais se realiza (DELGADO, 2006, pg. 132).

Mas, no diversificado campo da teoria marxista, destaca-se o processo de construção da identidade social do trabalhador. Segundo Marilda Villela Iamamoto (2001, pgs. 37/38), para Marx, a constituição social do homem apresenta-se quando ele procura implementar projetos na vida social, inserindo-se no contexto da produção por meio do trabalho. O pressuposto, conforme assevera a autora, é que a pessoa se insira no conjunto das relações sociais, promovendo, com determinismo e liberdade, projetos de desenvolvimento social. É por isso, que na constituição da essência humana, deve revelar-se, inevitavelmente, o indivíduo social.

Na compreensão da identidade social da pessoa, é indissociável o conceito de trabalho humano, já que o ser social se revela potencialmente pelo trabalho. “Identificar o homem trabalhador enquanto indivíduo social é garantir-lhe espaço de relação com outros homens que também disponham da força de trabalho. Dessa maneira, é concedida ao homem a possibilidade de formação de sua identidade, pelo trabalho” (DELGADO, 2006, pg. 134).

No momento em que a pessoa se identifica como trabalhadora de um determinado segmento, ela passa a criar vínculo com os seus semelhantes, incorporando à sua vida privada os valores absorvidos no seu ambiente de trabalho. O trabalhador espelha o seu modo de ser ao executar as funções e recebe do espaço social tanto resultados materiais (para sua sobrevivência enquanto espécie), como imateriais (na produção de sua identidade).

É nesse sentido que Iamamoto (2001, pgs. 39/40) descreve o trabalho como a “condição da vida humana, atividade existencial do homem, sua atividade livre e consciente”, já que “o pressuposto é o homem, criatura natural, dotado de uma base orgânica, em que se encontram inscritas infinitas capacidades e possibilidades. Para prover suas necessidades interage com objetos de natureza orgânica e inorgânica. Ainda que parte da natureza, suas atividades vitais diferenciam-se, pelo trabalho, dos demais seres naturais, que se limitam a consumir diretamente os objetos dados no meio natural. Sendo o trabalho a atividade vital específica do homem, ele mediatiza a satisfação de suas necessidades pela transformação prévia da realidade material, modificando a sua forma natural, produzindo os valores de uso. O homem é um agente ativo, capaz de dar respostas prático-conscientes aos seus carecimentos, através da atividade laborativa. Como agente ativo amplia incessantemente o círculo de objetos que podem servir á atividade vital humana, seja para seu consumo direto, seja como meio de trabalho. Vive em um universo humanizado, ele mesmo produto da atividade humana de gerações precedentes: de objetivações de suas experiências, faculdades e necessidades”. (Grifos da autora)

Ou seja: é característica do trabalho sua capacidade de se revelar como produção objetiva e subjetiva. Objetivamente, o trabalho possibilita processos de criação e transformação da natureza em bens materiais, para que o ser humano possa sobreviver no habitat artificial por ele mesmo criado. Subjetivamente, o trabalho deve contribuir para o desenvolvimento do próprio trabalhador, aperfeiçoando suas potencialidades, revelando aptidões e gerando novas necessidades.

O trabalho constitui uma atividade vital para o ser humano, que pode fazê-la de forma livre e consciente, distinguindo-se dos demais animais. Ao homem é possibilitado produzir e ser livre diante do produto do seu trabalho. Essa relação se inverte diante do trabalho alienado, em que o trabalhador transforma a sua atividade vital, o seu ser, em simples meio de sua existência. Ao retirar do trabalhador o produto do trabalho, o trabalho alienado também lhe retira a vida genérica.

Para que se possa ter da dignidade do trabalhador uma visão crítica é preciso partir da análise do conceito de trabalho abstrato para se chegar à ideia de trabalho decente. O trabalho abstrato se caracteriza pela abstração das formas concretas de trabalho. Encontra expressão na forma de valor contida na mercadoria, sopesada pelo tempo socialmente despendido para a sua produção. Gosdal (2007, pg. 106), afirma que, na economia de mercado, o indivíduo precisa participar das relações de troca para obter os bens necessários para a sua subsistência, e cada indivíduo pode participar dessa relação, como proprietário dos meios de produção, ou como proprietário da força de trabalho. O proprietário da força de trabalho, ou, trabalhador, é livre para vender o seu produto, mas quando o faz, sujeita-se à lei do mercado, e à ordem jurídica objetiva, trabalhista e previdenciária.

Segundo Marx, é a quantidade de homens no mercado de trabalho que irá regular a produção desses mesmos homens, como ocorre com qualquer outra mercadoria, sendo que o excesso de trabalhadores à disponibilidade das empresas irá fadar alguns desses mesmos trabalhadores à miséria. “O trabalhador transformou-se em mercadoria e terá muita sorte se encontrar um comprador.” (MARX, 2004, pg. 67).

Vê-se cotidianamente os doutrinadores da área juslaboral dizer que o trabalhador não se vende por meio de contrato, porque não é mercadoria, já que é dotado de dignidade. No entanto, é forçoso concordar com aqueles que referem que esta assertiva não passa de uma ficção jurídica, já que não é possível, de fato, separar o homem de sua força de trabalho ou atividade. E mais: a realidade das relações trabalhistas parece não se importar com a teoria.

Havendo excesso na mão-de-obra no mercado de trabalho, há redução salarial, há incremento das práticas discriminatórias na admissão e manutenção do emprego, há superexploração do emprego. A ficção da separação entre a força de trabalho e o trabalhador, a hipótese do trabalhador vender tão somente a sua força de trabalho e, não a si mesmo, não se apresenta de maneira clara nas relações cotidianas de trabalho.

O trabalhador como um todo comparece à empresa para realizar a jornada contratada, todo ele se submete ao poder diretivo do empregador e às condições de trabalho por ele impostas, todo o ser do trabalhador depende da contraprestação salarial. “E o trabalho é considerado mero custo da produção, a ser reduzido ao mínimo possível de qualquer maneira. Esta impossibilidade de cisão real interfere na tutela da dignidade nas relações de trabalho” (GOSDAL, 2007, pg. 108).

A dignidade do trabalhador deve ser encarada como fator limitador ao exercício da livre iniciativa e ao direito de propriedade do empregador, que deve observá-la no exercício de seu poder diretivo e na tutela de seu patrimônio, criando o dever de realizar a utilidade social do empreendimento e de promover no ambiente de trabalho os direitos fundamentais dos trabalhadores. É sabido que o trabalho humano pode ser definido e analisado pelas mais diversas ciências. Todavia, para que seja assegurada a dignidade no trabalho, é imperioso que se realize a análise do trabalho pelo enfoque da ética.

O trabalho é essencial à vida humana, porém, para ser ético, deve ser condizente com a moral e a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, Bataglia (1958, pg. 23) esclarece que “é preciso repelir por isso uma prática de trabalho mecânica ou fisiologicamente comprovada se, como entende o pensamento ético, a moral se sente lesiva à dignidade humana; uma sistematização produtora ideada pela técnica, proclamada útil pela economia, se diminui certas exigências da liberdade, não deve de modo algum executar-se. A motivação moral é superior a toda outra motivação. O trabalho da mecânica, da física, da fisiologia, da técnica, da economia, deve ser sempre trabalho do homem que a moral aprove, pois importa ao homem, já que é fim do homem (não aquele trabalho mas o trabalho; aquele trabalho que é o trabalho do homem)”.

Bataglia (1958, pg. 288) explica ainda que, no trabalho há a descrição da personalidade humana na liberdade, “pois que o trabalho é a atividade consciente do homem que se faz pessoa e que, numa escolha espontânea de meios e de fins, procede livremente”, sendo que, apesar de ser uma liberdade, o trabalho também se apresenta como uma obrigatoriedade ou um dever moral.

Assim, se do trabalho decorre um dever moral, este deve ser compreendido enquanto a própria moralidade. Isto é, para que um trabalho seja moral é imprescindível que por meio dele, o homem, sujeito livre e consciente estabeleça planos e exercite o seu querer.

É por intermédio do trabalho que o impulso instintivo das vontades humanas se transforma em um fim. O trabalho é a oportunidade exclusiva, através da qual o homem adquire consciência de si como ser inteligente e como vontade, constitui-se e eleva-se verdadeiramente à ordem moral. O trabalho valoriza o homem, assegurando a sua mais ampla sociabilidade.

Há uma “ética social no trabalho”. “No trabalho, ou melhor, na atividade, o homem sai de si próprio; a satisfação de si próprio o induz a invadir e a procurar, pois, as coisas, e, mais do que as coisas, os outros. Os outros ele reconhece na mesma dignidade de que se encontra investido, reconhece-os como sujeitos na ordem ética. Se reconhece os outros, exige ser reconhecido conforme a uma exigência de paridade e de reciprocidade. Sente, em conclusão, e reconhece a si e aos outros associados, dá sentido, numa relação que é forma transcendental, ao mesmo tempo de convivência e de colaboração” (BATAGLIA, 1958, pg. 297).

Há, pois, uma relação direta entre o trabalho enquanto instrumento de constituição do sujeito ético e enquanto instrumento de inserção social. Quanto maior for a inserção social do sujeito pelo trabalho, mais plena tornar-se-á sua constituição ética.

A dignidade sob o enfoque do direito do trabalho pode ser entendida de acordo com a noção de trabalho decente. O trabalho decente não é um conceito adaptável a qualquer interpretação, por isso, pode ser bastante útil na delimitação do conteúdo da dignidade no âmbito das relações de trabalho.

Há de se ressaltar que, atualmente, diante do fenômeno da globalização econômica, o Estado, ao promulgar suas leis, preocupa-se cada vez mais com o cenário internacional, a fim de saber o que, efetivamente pode regular e quais serão as normas efetivamente respeitadas. Adotam-se as polêmicas estratégias da descentralização, desformalização, deslegalização e desconstitucionalização no mundo inteiro, paralelamente aos programas de privatização dos monopólios públicos e à substituição dos mecanismos estatais de seguridade social, por seguros privados, ampliando assim o pluralismo de ordens normativas. “Não resta ao legislador do Estado-nação outra alternativa para preservar sua autoridade funcional que não seja aquela de menos intervir e menos disciplinar, pois, quanto menos disciplinar e intervir menor será o risco de ser desmoralizado pela ineficácia de seu instrumental regulatório”. (GOMES, 2005, pg. 89).

As empresas buscam hoje mais a criatividade, o conhecimento geral, o saber multifacetado. O trabalho material, no entanto, continua sendo extremamente importante na maior parte do mundo em termos quantitativos; porém a tecnologia da informação vem se tornando cada vez mais o foco da economia global. Em outras palavras, o papel central, antes ocupado pela força de trabalho de operários de fábrica na produção de mais-valia, está sendo hoje preenchido, progressivamente, pela força de trabalho intelectual, imaterial e comunicativa.

Essas mudanças trazem consigo novas formas de exploração humana, com o aumento do trabalho precário, a agravar a pobreza, ao mesmo tempo em que põe a intelectualidade do trabalhador vivo e cooperante no centro da valorização econômica e social. A exclusão social aumenta na medida em que os ganhos da produtividade são obtidos à custa da degradação salarial, da informatização da produção e do conseqüente fechamento dos postos de trabalho. Nesse quadro, o cidadão-trabalhador, quando não excluído e condenado ao universo da informalidade, é integrado e submetido á lógica avassaladora do capital transnacionalizado. (GOMES, 2005, pg. 90).

Em verdade, as imposições advindas do neoliberalismo e da globalização trazem como resultado, o amargo retorno à pré-modernadade, o que evidencia a volta da barbárie, ou mais precisamente, impõe uma nova forma de regulação feudal, a ignorar completamente o longo percurso das conquistas dos direitos dos trabalhadores.

Neste cenário, é imprescindível que se ressalte o valor do trabalho decente. Trabalho decente é aquele desenvolvido com justa remuneração e que se exerce em condições de liberdade, eqüidade, seguridade e respeito à dignidade da pessoa humana.

O trabalho decente está voltado à promoção do progresso social, à redução da pobreza e a um desenvolvimento eqüitativo e integrador, em face da crescente situação de interdependência dos países na atualidade. O trabalho decente não se coaduna com as reformas trabalhistas fortemente sentidas a partir de 2007 e que visam tão somente à flexibilização de direitos.

A conjectura de trabalho decente como trabalho justamente remunerado, significa que a remuneração deve possibilitar a satisfação das necessidades vitais mínimas do trabalhador, retribuindo devidamente a contribuição do trabalhador para a produção de riquezas.

No mais, dizer que o trabalho decente pretende ocorrer em condições de liberdade significa dizer que a liberdade de associação e o direito á negociação coletiva devem encontrar condições favoráveis ao seu desenvolvimento.

O trabalho decente é aquele que ocorre em condições de equidade, tanto nas questões de gênero e raça, nas questões relativas ao culto religioso, de convicções políticas, idade, e vários outros critérios discriminatórios.

Há, ainda, a necessidade de se assegurar segurança básica e emprego, protegendo-se o obreiro contra vulnerabilidades no trabalho, como doenças, velhices e desemprego. Todos esses fatores constituem condições de respeito à dignidade do ser humano.

Por tal razão é que se entende que, ao menos, os direitos alçados a qualidade de indisponibilidade absoluta, devem estar assegurados a todo e qualquer trabalhador. Isto é, se existe um direito fundamental, deve também existir um dever fundamental de proteção. A proteção jurídica social do homem deve ser a diretriz do Direito do Trabalho. Deve-se privilegiar a valorização e tutela da pessoa do trabalhador, ao invés de focalizarmos a proteção jurídica tão somente no trabalho.

O trabalho deve ser reconhecido em sua significação ética e, através dele, o homem deverá realizar-se e revelar-se em sua identidade social. “O significado do trabalho na realidade contemporânea não se prende às amarras de uma limitação meramente reprodutiva ou econômica e encerra um outro sentido, próprio de uma sociedade solidária – sociedade em que a exclusão é concebida como desvio social, que exige correção pelos seus próprios membros e instituições. Nessa compreensão, de corte histórico-axiológico e humanístico, o trabalho eleva-se como uma das fórmulas de inserção social, como meio que deve ser assegurado à pessoa, desempenhar um papel em sua comunidade”. ( NASCIMENTO, 2006, pg. 236)

A identidade social do trabalhador somente será assegurada se o seu labor for digno, se o trabalho for prestado em condições decentes. Ora, se o trabalhador é mal remunerado, se não existem condições mínimas de higiene e segurança do trabalho, por exemplo, não há espaço para a concretização da dignidade. O Direito será mera abstração. Compreender o trabalhador enquanto mero instrumento para a realização de determinado serviço, compromete o entendimento de que o homem deve ser fim em si mesmo.

Para que a pessoa possa efetivamente ser considerada um fim em si mesmo, é necessário que o Estado garanta a efetividade do direito ao trabalho decente por meios de práticas sociais de caráter interno e externo.

O sentido de trabalho decente está diretamente ligado ao desenvolvimento da liberdade a permitir ao ser humano, a sua ampla formação enquanto ser racional. É preciso, portanto, assegurar o estado de liberdade, para que o trabalho cumpra o sentido ético indispensável à formação da identidade humana.

CRISTINA BENEDITTIE
Enviado por ALMA GRANDE em 18/07/2021
Código do texto: T7302296
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