Genealogia do invisível

Parte 1

O personagem tem medo de sumir. Procura seu nome no Google. Nada consta. Escreve o nome da mãe. Nada consta. Do pai. A mesma coisa. Sua família desapareceu. Ninguém viveu. Todos foram apagados. Ele continua aqui. Se estava aqui, existia. Se existia, não sabia quem seria. Procurou pelos documentos. Nada. Foi em frente ao espelho. Parecia idêntico a ontem. Parecia o mesmo. Mas sabia que havia sumido. Arregalou os olhos. Procurava uma resposta. Só viu que estava com a braguilha aberta. Fechou envergonhado. Sempre achou que a braguilha fosse um item desnecessário para a vestimenta. Ele se sente uma braguilha. Nem sabe mais se já existiu. Desconfia que pode estar morto. Lembra da sua arma. O peso. O frio do metal. Segura na mão. Não teria coragem de atirar. Guarda a ideia.

Parte 2

Abre o Instagram. Mas não sabe o que procurar. Vê fotos aleatórias. Não acha nada. Não sabia quem eram as pessoas nas fotos. Abre gavetas. Abre portas. Abre torneiras. Vasculha como um cão farejador. Cada canto da casa. Tudo em silêncio. Percebe que está sozinho. Sente medo. Lembra quando tinha medo de dormir. Adormecia esgotado. Acordava assustado. Nunca lembrava dos sonhos. Duvida da existência dos sonhos. Sonhos são como previsões de horóscopo. Todo mundo tem os seus, mas ninguém conclui nada. Pensou em procurar por uma cigana. Ler sua mão. Isso poderia ser uma peça chave para saber se ainda existia. Abriu o Google. Sites. Anúncios. Propaganda. Avaliações. Wikipedia. Pronto. Achou uma. Atende à domiciliar. Exceto segundas. Não sabia que dia da semana era. Ligou. Caixa postal. Deve ser um sinal. Deixe seu recado. Disse a moça da empresa. A voz dela está cada vez mais suave. Nada fala. Só a voz da secretaria. Volta a ter medo. Não sabe se consegue falar. Abre a boca. Tenta um grito. Acha exagerado. Sussurra. Escuta o som. Era sua voz contra o silêncio da sala. Logo volta o silêncio. Não sabe a quantos dias não dorme. Sonha não dormir.

Parte 3

Acorda assustado. Noite. Será que dormiu o dia todo? Fora de casa tudo está calmo. Acende um cigarro. Fuma. Parece mais calmo. Olha para baixo. A braguilha está fechada. Fuma mais um pouco. Queria uma distração. Mas não tem televisão. Abre o Google. Digita: doxa. Não sabe de onde veio aquela palavra em sua cabeça. O Google responde. Depois não sabe o que digitar. Olha a tela. Vê o cursor piscar. Incansável. Constante. Certeiro. À espera de uma palavra. Deseja ser um cursor. Acende outro cigarro. Espera uma palavra chegar. Acorda. Era dia.

Parte 4

Está com a mesma roupa. Se olha no espelho. Parece velho. Velho desconhecido. Queria saber se era parecido com seu pai. Não lembra dele. Olha ao redor. Tudo igual. Resolve não levantar do sofá. Olha as mãos. Confere seus detalhes. Esfrega as digitais. Pensa. Posso ter uma ficha corrida. Liga para delegacia. Cancela a ligação. Não sabe o que perguntar. O que quer saber não está na polícia. Pensa. No obituário. Abre o Google. Mesma questão. O que procurar. Não sabe por onde começar. Escrever o que se não sabe por quem procura. Escreve obituário. Clica em imagens. Dezenas de imagens de obituários. 5 minutos. Esqueceu o que procurava. Acende um cigarro. Percebe que não tem falado com ninguém. Aumenta o medo de estar morto. Ou nem mesmo ter existido. Pensa no purgatório. Volta a dormir.

Parte 5

Quase meio dia. Está com outras roupas. A casa está limpa. Pensa. Alguém esteve aqui. Se alguém apareceu é um bom sinal. Ele realmente deve existir. Procura um bilhete. Nada. Abre o Google. Digita nomes. Abrem diversos ícones. Nomes para bebês. Famosos e seus nomes. Merchandising. Anúncios. Clica. Uma lista de nomes. Lourenço. Marcelino. Paulo. Daniel. Gosta de todos. Segue sem saber seu nome. O cursor segue piscando.