Notas sobre padrão de consumo, modo de vida, comportamento anticíclico, amparo social e justiça
Notas sobre padrão de consumo, modo de vida, comportamento anticíclico, amparo social e justiça
Numa sociedade justa e afluente, independentemente se o tempo é de vacas gordas ou magras, o padrão de vida de todas as pessoas é superior àquele estabelecido pelo patamar da mera sobrevivência.
Alexandre Santos *
Ao longo do tempo, quaisquer que sejam as circunstâncias, as pessoas e as comunidades se adaptam às disponibilidades e ao poder aquisitivo desfrutado na ocasião e estabelecem padrões de consumo específicos, definindo 'modos de vida' que, naturalmente, são influenciados e influenciam os valores culturais por elas cultivados. Na linguagem popular, de alguma forma, esta situação é traduzida pela visão inversa do adágio segundo o qual 'Deus dá o frio conforme o cobertor'.
Nesta perspectiva, grandes consumidores de bens de comodidade e de futilidade, os ricos costumam ser refinados e gordos e, em contraponto, restritos aos bens de necessidade, os pobres costumam ser 'sem estilo' e magros. Ao invés do pão com margarina e café, tão comuns nas mesas dos pobres, os ricos desfrutam desjejuns sortidos, com frutas, sucos, leites e achocolatados, chá ou café, vários tipos de pão, embutidos defumados, queijos, manteiga e geleias, iogurtes, cereais, ovos e tudo o mais, servido em mesa forrada com toalhas de linho, louças, talheres e guardanapos finos, além da assistência de serviçais. A diferença é enorme e se verifica, não apenas nas refeições, mas, também, no modo como elas se comportam, [no modo] como se vestem, como falam e conversam, como se locomovem, como e para onde viajam, como se divertem, enfim, no modo como vivem. A julgar por seus padrões de consumo, ricos e pobres vivem em mundos diferentes.
Naturalmente, o padrão de consumo das pessoas e das comunidades se modifica em função das variações ocorridas ou impostas às suas disponibilidades e ao seu poder aquisitivo, assumindo posições intermediárias, ganhando sofisticação quantitativa e qualitativa nos momentos de afluência e, inversamente, ganhando austeridade nos momentos de pobreza e ruina. Assim, o padrão de consumo será tanto mais opulento quanto mais rica for a pessoa ou comunidade e, na ponta inversa, tanto mais espartano quanto mais pobre ela ficar.
Entre as posições extremas, há uma série enorme de posições intermediárias, as quais, naturalmente, refletem as disponibilidades e/ou o poder aquisitivo da ocasião. De fato, à medida que enriquece ou empobrece, a pessoa ou comunidade se adapta às novas condições e modifica seu 'modo de vida', adotando novos padrões de consumo, incorporando ou, conforme o caso, dispensando bens de comodidade e de futilidade. As que enriquecem perdem a preocupação com a sobrevivência e passam a sonhar com a renovação do guarda roupa, com a viagem de férias, [com] a compra da lancha, [com] a troca do automóvel e coisas assim, tendo o céu como limite. Enquanto isso, as que empobrecem reprimem o interesse pelos bens de futilidade e de comodidade e, acumulando progressivamente maiores lotes de demandas reprimidas e tendo a sobrevivência (com a dignidade possível) como meta, concentram o interesse nos bens de necessidade.
Naturalmente, o padrão de consumo (ou o modo de vida) apresenta limites.
Na faixa superior, a opulência cresce quantitativa e qualitativamente junto com a afluência dos envolvidos, atingindo ponto máximo quando o padrão de consumo da pessoa ou comunidade não sofre alteração significativa em função de incremento na disponibilidade ou no poder aquisitivo. Ou seja, no limite superior, o padrão de consumo é contido pela satisfação plena das pessoas e comunidades. Esta situação ocorre quando, uma vez satisfeita em seus desejos e necessidades - a pessoa come todas as comidas que quer (ou pode), tem todas as roupas que quer, tem todos os carros que quer, tem todas as joias que quer, etc. - , por mais que procure, [a pessoa ou comunidade] não encontra mais aplicação para o dinheiro que lhes sobra e, para não perder definitivamente o interesse pela vida, se empenha em frivolidades de todas as naturezas, inclusive nos jogos de ganhar-mais-dinheiro. Assim, há uma renda [máxima] a partir qual, por mais que abuse do consumo de futilidades, mesmo se entregando ao mais desvairado desperdício, a pessoa não tem mais como ampliar o seu padrão de consumo. A partir deste ponto, todo centavo adicional na sua renda se destina integralmente à poupança (pois ela já tem muito de tudo), uma situação referida pelos economistas como o ponto máximo da propensão à poupança.
Em contraponto àquilo que ocorre com os super abastados, na faixa inferior do espectro econômico, um padrão de consumo mínimo é estabelecido pelos requisitos básicos exigidos pela sobrevivência. Este padrão de consumo é aquele praticado pelos que vivem no patamar da sobrevivência. É o padrão de consumo praticado pelos muito pobres e pelos miseráveis. Nos ambientes mercantis, esta condição é vivida pelas pessoas que, por não disporem de meios suficientes para a aquisição dos bens indispensáveis ao atendimento das carências basais, precisam completar a renda mínima necessária através da caridade alheia ou da prática de atitudes famélicas. É o que acontece com os mendigos e com os ditos 'ladrões-de-galinha'. Naturalmente, as pessoas e comunidades que precisam adotar este padrão de consumo mínimo são marcadas pelas demandas reprimidas. Assim, como lhes falta de tudo, [elas, essas pessoas e comunidades], são, potencialmente, excelentes consumidoras - todo tostão que entra nos seus bolsos sai imediatamente para a aquisição de algo que lhes falta, estabelecendo, no dizer dos economistas, o ponto máximo da propensão ao consumo, uma situação que, naturalmente, diminui com o crescimento da renda, em função da superação de demandas reprimidas.
As mudanças no padrão de consumo (ou no modo de vida), no entanto, não ocorrem de forma automática. De fato, nos casos em que há redução da renda ou das disponibilidades, as pessoas resistem em depreciar o padrão de consumo, recorrendo ao uso de eventuais poupanças ou, mesmo, ao endividamento. Inversamente, nos casos em que há aumento das rendas ou das disponibilidades, as pessoas e comunidades não refinam e elevam o padrão de consumo de imediato, pois, de modo geral, requerem certo tempo para acomodações culturais.
Em outras palavras, [isto indica que] as eventuais flutuações nas rendas e nas disponibilidades não implicam, necessariamente, em variações automáticas no padrão de consumo. Aliás, a possibilidade do uso de reservas por ocasião das necessidades aponta caminhos e recomenda a adoção da parcimônia em tempos de afluência como forma de viabilizar um comportamento anticíclico capaz de amortecer as alterações dos padrões de consumo decorrentes de variações nas rendas e nas disponibilidades. De fato, as reservas acumuladas em função da parcimônia nos momentos de afluência podem sustentar um comportamento anticíclico de compensação das variações nas rendas e nas disponibilidades, contribuindo, assim, para manter certa uniformidade no padrão de consumo ou no modo de vida ao longo do tempo. A parcimônia poderia, então, ser considerada como elemento estratégico capaz de viabilizar políticas anticíclicas para minimizar o efeito da redução da renda e das disponibilidades no padrão de consumo das pessoas e das comunidades. Do ponto de vista objetivo, em aplicação direta do adágio popular segundo o qual 'sabendo usar, não vai faltar', as políticas anticíclicas significam a formação de poupança nos momentos de abundância para garantir a existência de uma reserva a ser consumida nos momentos de escassez e, assim, manter o padrão de consumo, pelo menos durante certo tempo. Objetivamente, as políticas anticíclicas dizem que, na época das vacas gordas, ao invés de sofisticar o padrão de consumo pari-pasu com a elevação das rendas, as pessoas e comunidades devem separar um pouco da disponibilidade adicional para formar um estoque regulador a ser usado nos tempos das vacas magras.
Vale observar que, infelizmente, nem todos podem adotar posturas anticíclicas, pois só pessoas e comunidades sujeitas a períodos de abundância podem exercer a poupança como forma de prover tempos de escassez. As pessoas e comunidades que experimentam contínuos estados de penúria, vivendo permanentemente abaixo da linha de sobrevivência, não têm a chance formar poupança para uso futuro. Tudo aquilo que elas ganham é usado para o consumo imediato de ítens indispensáveis à vida. Estas pessoas e comunidades não têm sequer a possibilidade de planejar o curto prazo, pois, tendo em vista as restrições extremas nas quais vivem, não conseguem vislumbrar qualquer coisa além da próxima refeição. Impedidas de poupar e de planejar pela deficiência no poder aquisitivo, estas pessoas e comunidades formam um contingente especial sobre o qual a coletividade tem responsabilidades. De fato, considerando o direito universal à vida condigna, a dificuldade das pessoas e comunidades excluídas do mercado por deficiências na renda faz surgir a necessidade de elas serem contempladas com políticas públicas capazes de garantir-lhes o patamar mínimo de consumo. Assim, de modo a evitar que alguns precisem recorrer a mendicância ou ao desespero famélico para garantir a vida, as sociedades minimamente avançadas devem garantir o desfrute de um patamar mínimo de consumo para todos. Naturalmente, a adoção de um padrão mínimo para todos implica no uso de parte das poupanças formadas no curso das práticas anticíclicas e, claro, pode requerer o sacrifício de quantuns variáveis de sofisticação nos padrões de consumo das demais pessoas (que, claro, costumam resistir à ideia).
Aliás, a existência de mecanismos de amparo social para possibilitar que todos atendam aos padrões mínimos de consumo exigidos para a realização do direito universal à vida digna e erradicação da miséria é postura própria das sociedades avançadas e serve como indicador do nível civilizatório por elas alcançado. Numa visada inversa, em certa perspectiva, poder-se-ia afirmar que as sociedades efetivamente avançadas são justas e afluentes. Na realidade, um dos principais indicadores de desenvolvimento e de prosperidade de uma sociedade é a quantidade de pessoas e de comunidades que necessitam apoio para alcançar a linha da sobrevivência. Quanto menor for o número de dependentes do amparo social para elevar artificialmente o seu padrão de consumo, mais avançada é a sociedade.
Do ponto de vista concreto, pode-se conhecer o patamar de desenvolvimento econômico e social desfrutado por uma sociedade pelo padrão de consumo geral por ela praticado, pela diferença dos modos de vida dos ricos e dos pobres e pelo número de pessoas que precisa recorrer à mendicância, às práticas famélicas ou ao auxílio social para alcançar o consumo mínimo necessário à vida. Uma sociedade que apresenta muitos pobres não pode ser considerada rica. Com efeito, nas sociedades avançadas, pouco importando se o tempo é de vacas gordas ou de vacas magras, o padrão de consumo das pessoas, além de [ser] superior àquele estabelecido pelo patamar mínimo da sobrevivência, [o padrão de consumo] varia apenas em função das preferências culturais (e, não em função de aspectos relacionados às rendas e às disponibilidades, como ocorre nas sociedades pobres). Afinal de contas, nas sociedades avançadas, a diferença entre ricos e pobres não é apurada por aquilo que falta a uns, pois todas as pessoas vivem acima do patamar mínimo, mas, sim, por aquilo que sobra àqueles situados no topo das faixas de consumo.
De qualquer forma, enquanto não alcançam estágios de afluência capazes de garantir o desfrute dos padrões mínimos de consumo para todos, as sociedades podem (e devem) lançar mão de políticas anticíclicas de gestão de meios como forma de dispor de reservas para uso nos momentos de escassez e, assim, com o emprego de recursos acumulados nos momentos de fartura, compensar insuficiências e garantir um padrão de vida minimamente aceitável para todos durante todo o tempo.
(*) Alexandre Santos é ex presidente da UBE, presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural