Cidades para se caminhar

Este escrito não é um manifesto. Está mais para um simples registro e/ou desabafo. É que nesse difícil momento de avanço da pandemia da Covid-19, continuo isolado e apreensivo, esperando esse pesadelo coletivo acabar. Mesmo tendo o privilégio de ficar recluso e de me proteger para realizar as atividades em home-office, o cotidiano se tornou deveras cansativo, pois o vírus nos trancou em casa. De maneira quixotesca, em busca do ócio criativo tento resistir e quebrar um pouco a rotina, de alguma forma.

Mas, como isso tem sido feito? Simples: fazendo um ato corriqueiro e quase universal — a boa e velha caminhada — e tomando cuidado ao seguir às medidas de segurança, como o uso da máscara. Há muito tempo, como uma espécie de flâneur – ou talvez com uma ridícula pretensão a ser um – circulo pelas ruas e lugares urbanos, muitas vezes sem destino, imerso em meus pensamentos e aberto a novas experiências sensoriais.

Só que o passeio a pé, às vezes, se torna frustrante. O drama, que obviamente não é só meu, é que as calçadas e ruas da minha cidade em Recife estão numa situação muito degradante, tornando o trajeto da caminhada uma experiência desagradável. A falta de acessibilidade, a poluição visual e sonora, a falta segurança viária e de conservação das calçadas, entre tantos outros problemas fazem parte daqueles que se aventuraram a se deslocar a pé.

Tenho forte impressão de que essa situação é quase que generalizado. O que muda é que, enquanto alguns lugares estão em uma condição de maior atratividade, outros estão quase que completamente desassistidos, para não dizer abandonados. Em muitos espaços é extremamente complicado para uma parcela da população realizar atividades físicas de maneira satisfatória. Sem contar que vários pedestres não se deslocam apenas por lazer, mas por causa das demandas do dia-dia.

Recorrentes são os casos de pessoas idosas e/ou com limitações físicas, — com deficiências motoras e de visão — ou temporárias — que precisam se deslocar e têm maiores chances de sofrer graves contusões e/ou passar por uma série de inconvenientes. Sem esquecer das formas de violências cotidianas de gênero e/ou raça em um determinado território que atingem amplamente grupos vulneráveis, sujeitos a vários tipos riscos ao transitarem por vias, ruas e lugares ermos.

As complicadas condições de mobilidade urbana não surgiram do nada. Mas, como isso de fato ocorreu? A grosso modo, durante o processo de planejamento urbano, pode-se dizer que nas últimas décadas, as formas mais simples de deslocamento — a pé e de bicicleta — apesar de sua relevância socioeconômica, foram constantemente escamoteadas. Há mais de um século, vivemos em uma sociedade que nitidamente foi planejada para acomodar e privilegiar os automóveis em detrimento das pessoas.

A questão da caminhabilidade (proveniente do inglês walkability) precisa ser cada vez mais debatido em nossas democracias contemporâneas. Entre os temas emergentes no século XXI, talvez um dos mais relevantes e estratégicos para a promoção de qualidade de vida nas cidades é o de pensar e colocar em prática formas de valorizar os ciclistas e pedestres. Em algumas cidades do mundo, setores da sociedade estão mais consciente da importância de se valorizar a mobilidade em sua dimensão humana, afim de que os lugares sejam mais atrativos, isto é, frequentados, seguros, sustentáveis e saudáveis.

No Brasil, diversas lutas reivindicam que os espaços públicos sejam mais atrativos, seguros e caminháveis, de maneira que o pedestre não seja tratado como um cidadão de segunda categoria. Por mais que seja clichê o que vou dizer, creio que as cidades para os pedestres deveriam ser planejadas de maneira mais sistemática, eficaz e estratégica — por pessoas e para pessoas, proporcionando condições de vida mais dignas para todas e todos. Mas, isso se torna muito difícil a curto prazo — para não dizer quase utópico — especialmente, em uma sociedade com desigualdades socioeconômicas e problemas estruturais ainda mais agudizados pela pandemia da Covid-19.

Em defesa do direito à cidade, políticas de mobilidade efetivas e inclusivas precisam, de fato, colocar os pedestres no centro de suas ações. E tais propostas emergentes devem tentar ser mais ousadas e inovadoras. O ato de caminhar não pode, de forma alguma, ser entendido como banal e sem importância. Isso é algo crucial para que as pessoas possam transitar minimamente pelos diversos espaços urbanos, além de ser importante para o desenvolvimento da economia, da saúde coletiva, do meio ambiente e do bem estar da população em geral.