DESMANTELO
Por Ramon Bismarck
PRÓLOGO
Todo homem é sangue e poesia, quando finda a poesia, fica a carne. Sangrando impiedosamente sob a luz do sol, sem prumo, sem mastro, afogando, pulverizando o amor, enquanto a poesia voa diante do insustentável peso do ser. Quando finda a poesia o homem afunda e sufoca até o desequilíbrio sórdido universal.
DESENVOLVIMENTO
Foi numa clara e quente manhã de quarta feira que eu saí da minha casa e tropecei num rato morto na porta, afastei o bicho sem prestar atenção e atravessei o terreiro, quando cheguei na rua eu vi com esses olhos que a terra há de mastigar, dezenas de ratos grandes mortos jogados numa cesta de lixo, foi então que de um arrepio que rasgou toda a minha espinha, senti o que essa descoberta tinha de apavorante. Naquela manhã toda a vizinhança só falava em ratos. Estavam em todas as partes. Nos quintais, nas escadas, nos caixotes de lixo, nas ideias, nos pensamentos, o jornal local só falava em ratos e mais ratos. E ninguém sabia suas causas e efeitos, talvez tivessem vindo de outra região, mas de onde? Já que a gente vivia num ermo maior que a terra. À medida que crescia a preocupação, mais crescia a incerteza. As fábricas e os depósitos vomitavam centenas de cadáveres de ratos. Dia após dia os ratos apareciam nos locais mais frequentes da cidade. Sair às ruas tinha se tornado um espetáculo de horrores.
Certo dia, o cinza se fez preto e as coisas foram longe demais. O tanger do sino anunciou que 2.231 ratos haviam sido encontrados em apenas um único dia. Aumentou a agitação. Era uma crescente. 2 mil, 3 mil, 5 mil ratos surgiam ao nascer do dia. Não havia ninguém para pôr a culpa, proferíamos maldições e tínhamos a certeza de que seria uma praga temporária. Quanto à prefeitura, havia determinado que o serviço de desratização recolhesse todos os ratos, que geralmente apareciam mortos, e os queimasse num enorme incinerador... e isso por si só tornou o ar extremamente letal e nossa existência uma condição. Não demorou muito para que as pessoas começassem a sentir os efeitos da crise.
Lembro que certo dia da janela de casa, eu vi um homem tinha deixado o serviço para vomitar numa cesta de lixo. Vomitava uma gosma rosada, pedaçuda e coberta de pus. Notei que seu pescoço e antebraços estavam inchados e uma enorme mancha escura surgia em um dos braços, como se estivesse podre. Aquele homem chorava, tentando se sustentar numa força além de si, até cair no chão expirando de dor. Aquele homem de sangue sentia a poesia lhe saindo pelas entranhas enquanto proferia misérias. Eu só lembro de ter fechado a janela, totalmente assustado e olhado pra o meu pai. Meu velho pai era pescador, incrivelmente falava pouco, os olhos do meu pai falavam por si, os olhos do meu pai eram pura poesia, meu pai era pura poesia.
Em pouco tempo, a surpresa se transformou em pânico. Os ratos apareciam cada vez mais violentos, 8 mil, 10 mil por dia. O pânico então se transformou em medo. O serviço de desratização já não dava mais conta! Dada a severidade do caso, a prefeitura não viu outro modo senão recorrer à abertura de valas enormes ao longe da cidade, mas para isso precisariam de muitos homens e jovens de preferência fortes e bem alimentados. Era um condenável trabalho que nos faria ficar bem longe de casa enquanto durasse essa epidemia.
Todo homem é sangue e poesia. Quando finda a poesia, resta o semblante caído, sepulcro fechado e peito jorrando, falta o ar, sobra o peso, falece o que se constitui ser humano. A poesia danada voa e goza diante da impertinência de sua necessidade. A necessidade afunda nas profundezas de todo homem que é poesia e sangue.
Precisávamos. Dezenas de homens saíam de seus lares, beijavam suas esposas, pais e filhos e partiam para cavar covas a troco de misérias, sabe-se lá por quanto tempo. Na época eu ainda era bem jovem, lembro que antes de sair de casa meu pai pôs a rede de pesca de lado e me disse algo que jamais vou esquecer.
"Meu fio, hoje você é homem adulto, toma sua decisão, mas eu quero que você saiba que enquanto tiver meu sangue nas suas veias eu vou te amar com toda minha força. Meu fio, o homem não pode voar, só pode navegar, por isso eu sou pescador, o barco salva das profundeza."
Meu velho pai era pura poesia. Se eu soubesse, teria ouvido ele e jamais teria ido. Em pouco tempo tudo na cidade paralisou. O medo dos ratos era inerente, era comum andar pela cidade e ver doentes apertando as virilhas, braços, pulsos, pernas maiores e mais inchadas que os daquele homem da janela, vomitavam, não custava muito para que seus rostos começassem a abrir abscessos como frutos podres e a ter delírios, excretavam um cheiro horrível de carne estragada que se espalhava pelo ar. Os serviços de coleta de lixo não estavam mais dando conta do trabalho e então era comum ver lixo, lodo e ratos mortos em todas as ruas. Os hospitais estavam ficando sem espaço, sem macas, sem médicos e enfermeiros para dar conta, se você tivesse com câncer ou qualquer outra doença era melhor morrer em casa. Se apresentasse manchas pelo corpo ou faltasse o ar de certo ia morrer, se morasse com alguém, possivelmente esse alguém também ia morrer. As autoridades reconheciam a catástrofe, mas não davam o braço a torcer, viviam dizendo “nada de pânico, nada de pânico! É uma febre, talvez uma febre tifoide”, vez por outra andavam às ruas sem máscaras, chutavam os ratos com sapatos lustrosos, apertavam as mãos, comiam cachorro quente. O problema não era encarado de frente, nunca foi!
O serviço de escavação das covas era intenso, caminhões e mais caminhões chegavam abarrotados de ratos. Não demorou muito para que reduzíssemos a apenas 13 trabalhadores, era um número de esperança. O restante voltava pra casa e o misto de cansaço, revolta e egoísmo começava a tomar conta da população. Muitos voltaram a abrir seus negócios, a ter opiniões porque existem idiotas que só estão dispostos a aceitar a própria verdade e ignoravam as recomendações sanitárias de isolamento, fechamento de fronteiras e uso de máscaras, enquanto os ratos se amontoavam e a doença se espalhava. Apertar a mão era proibido, abraçar uma ameaça, mas ainda assim era comum ver um ou outro caminhando de mãos dadas ou em grupos. E então quando não havia mais espaço nos cemitérios, nossos cidadãos que até então disfarçavam sua inquietação com brincadeiras, apareciam nas ruas cada vez mais abatidos e silenciosos. A doença não escolhia idade, cor, religião ou casta social. Cerca de uma semana depois mais ratos emergiam das profundezas do inferno, que inferno, era o inferno! Quanto mais ratos chegavam, mais fundo cavávamos, cavar, recolher e jogar. O sol de rachar, a água suja, o feijão racionado. Era essencial cumprir o dever. Eu estava me tornando um rato, olhava como um rato, cheirava como um rato, expurgava como uma rato, imundo e sem valor como a porra de um rato.
Constantemente eu me perguntava se nosso povo estava se acostumando com a situação, eu não queria me tornar mais um egoísta, uma multidão morrendo e eu me preocupando se ia receber a minha grana no fim do dia. Mas eu sabia que em algum lugar, meu velho pai orava por mim e o fato de saber que seu sangue corria em minhas veias me motivava tanto quanto a poesia de todos aqueles homens apegados à vida como carrapatos e alheios à presença constante daqueles urubus carrascos que só esperam um desequilíbrio moral. Torpe fraqueza, tão comum aos homens de pouca fé. Essas lembranças sempre vêm e vão.
Há dias que a vida desce goela abaixo, e justamente num anoitecer sombrio de quinta, os patrões não pagaram nosso salário. Foi devastador. Eu contemplava aquele bacanal de socos, pontapés e xingamentos. Depois daquilo cinco dos homens desistiram do serviço, sendo assim só sobraram oito. A fé ainda me mantinha naquelas covas. Teria a nossa população se acostumado a situação? Tudo mudou, a atmosfera mudou, restava saber se os corações haviam mudado. Daí quando o verão chegou e o calor se intensificou, aumentou o número de mortos. Mortes e mais mortes. Teria a nossa agora pouca população se adaptado a essa situação?
O que me lembro é que naquela altura eu sempre questionava a minha existência, acabado, humilhado, mas como voltar pra casa e ficar parado esperando as coisas melhorarem? Enquanto isso mais ratos continuavam a chegar, ratos de todas as cores e tamanhos caindo daqueles caminhões como as ondas do mar, o cheiro era perturbador, nem mil anos vão apagar o odor das minhas narinas. O mistério daqueles muros, o terror das covas, o mal estar dos campos que me causavam vertigem, cansado até pra chorar, lembrando do meu velho pai que já não via há tanto tempo, da forma brutal da qual foi afastado dos seus peixes, da rede e do mar, tentando organizar as ideias e entender como chegamos àquela situação, lembrava de todos os doentes que aguardam uma boa notícia e eram surpreendidos pelo último suspiro, observava meu próprio desmantelo e a dos poucos companheiros que me acompanhavam naquele serviço infernal. Sentindo o sabor amargo do não ser, não saber, não sentir.
Hoje ainda me pergunto o que fazíamos antes de esperar? Quem nós éramos antes de chorar? Com qual poesia nos vestíamos? Andávamos descalços ou calçados? Corríamos vestidos ou pelados? Éramos adultos ou crianças? Bebíamos água ou cachaça? Contemplávamos a rua ou apenas olhávamos para o chão? Como era sentir o aroma das coisas? O pólen das flores? O cantar do galo? Como era apertar a mão? Sentíamos todos os poros ou apenas dávamos a cara a tapa? Qual música gostava mais de ouvir? Qual árvore subíamos primeiro? Em que praça nos encontrávamos? Será que era mais assim ou mais assado? Como era observar o movimento dos carros, das pessoas, dos cães? Qual era a sensação de abraçar um desconhecido? Pegar um galho no chão e quebrá-lo com os dedos? Mover uma pedrinha de lugar com um simples chute, sem nem perguntar se ela preferia estar ali? Porque não acordávamos de manhã e agradecíamos por ir trabalhar? Qual era a sensação de levantar de madrugada e perceber que ainda tinha mais duas horas pra dormir? Porque pegávamos ônibus lotados e deixávamos a vida fluir... como se fôssemos guiados por ela... como tudo tornou-se tão distante? Como chegamos até aqui? Qual o sentido de todas as coisas? Qual o sabor da imaginação? A força das palavras? O que será dos jovens amantes? Todo homem é sangue mas também é poesia... talvez tenhamos chegamos aqui pela nossa própria miséria, nosso desamor e mesquinhez. Tinha a nossa população se acostumado à situação? O surto tinha se tornado o poder do amor e da amizade, porque o amor exige futuro, para nós só haviam instantes, pequenos instantes.
EPÍLOGO
Tinha a nossa população se acostumado à situação? Sim, tinha se acostumado porque não havia outro modo, tinha a atitude da desgraça e do sofrimento porque não mais sentiam. O vírus não morre, nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecidas nos móveis, nas roupas, esperando pacientes nos baús, nos lenços, nas papeladas, mas hoje eu sei, depois de tanto tempo, que enquanto existir dentro dos homens, para desgraça e afogamento de todos, jamais haverá libertação!
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