Falácia da Mensurabilidade - Todo Incognoscível 24

O que é algo bom? Digo, no sentido prático da pergunta, o que está dando certo? Será que a abordagem da escola é a que mais leva ao aprendizado? Determinada política pública leva ao desenvolvimento de um país? Estas são perguntas muito difíceis de serem respondidas. Na minha adolescência tinham uns pequenos shows à tarde de bandas de conhecidos, eram as cervejadas. Era comum as pessoas levarem as cervejas mais baratas e acabarem consumindo as mais caras. Entretanto um amigo me falou que no teste cego (experimentar diversas cervejas sem saber qual é qual) aquela mais barata era a que se saía melhor. Nós gostávamos de cerveja leve (creio que o paladar está muito mais diverso agora). No churrasco a pessoa bebia uma cerveja mais cara apenas por ser mais cara!

O que se dá é uma heurística. Decidir que algo (como uma cerveja) é bom é extremamente difícil. Se imagine com 17 anos abrindo um isopor num churrasco e se deparar com cinco tipos de cerveja, como decidir diante tanta variedade? Mas na hora em que estava no mercado você notou que uma delas era bem mais cara que as outras. Pronto! Ela é a melhor! Este processo de substituir um processo extremamente difícil (de formar opinião e comparar cada uma das cervejas) por um processo fácil (descobrir qual é a mais cara) é um tipo de heurística. Heurísticas são atalhos do pensamento que substituem processos de decisão difíceis por alguma solução fácil. A heurística em que decidimos que algo é melhor por ser mais caro é bem documentada e estabelecida na academia, sendo que tanto o Kahneman como Dan Ariely fizeram experimentos replicáveis mostrando este fenômeno.

Se você está numa festa e escolhe por uma cerveja que nem gosta tanto apenas por ser a mais cara você está seguindo um viés. Agora, se você acredita que a cerveja é melhor por ela ser mais cara (mesmo que no teste cego você prefira outra) você está incorrendo em um erro, uma falácia. O que defendo neste ensaio é que esta é uma falácia fundamental à nossa sociedade: confundir aquilo que pode ser medido por aquilo que se quer medir. No caso da cerveja o preço é aparente, mas o que queremos medir é o prazer que bebê-la nos proporciona. Mas o mesmo se dá no ensino, no trabalho, na economia dos países, em relacionamentos amorosos…

Como aferimos qual estudante é melhor? É quem tira as melhores notas? Ou é quem se esforça para entender os fundamentos daquilo que está sendo ensinado? Pode ter certeza, a mesma pessoa se esforçando para aprender o conteúdo profundamente ou estudando para gabaritar a prova estudaria de maneira bem diferente: o foco de aprender o conteúdo é entender aquilo que está sendo dito no material didático. Por outro lado, o foco de aprender a gabaritar a prova é entender a cabeça de quem elabora as provas. O que fica evidente em concursos públicos, caso em que o estudo se dá em função da empresa que elabora as provas. É extremamente difícil aferir com intersubjetividade o aprendizado, entretanto é relativamente fácil aferir se ele irá bem em um concurso público (como o vestibular).

E o concurso público, como é medido? Idealmente ele seria medido por selecionar aquelas pessoas que mais entenderam o conteúdo e que mais conseguem extrapolá-lo para situações diversas. Mas quem mede o aprendizado de quem entrou? O próprio concurso! De maneira que ele define o que é ser um bom aluno. Assim cada concurso tem suas próprias métricas elaboradas de acordo com o órgão que contratou a banca que irá elaborar as provas. Em geral, a maior preocupação do órgão contratante é selecionar e dar pouca margem para disputas legais. Então uma pergunta que afere o aprendizado da conteúdo pode não ser tão atraente quanto uma pergunta que está no limiar do campo do conhecimento, uma pergunta que quem responde talvez nem saiba o que está dizendo, mas que certamente será desconhecida para 90% das pessoas.

Outro exemplo em que confundimos o que está sendo medido por aquilo que queremos medir é o PIB - o principal parâmetro de sucesso de políticos no mundo inteiro. Tenho um ensaio exclusivamente sobre seus defeitos. Por exemplo, só computa o que está sendo transacionado financeiramente. Jogar futebol num gramado não entra no PIB, entretanto se o mesmo gramado for cercado e a partida for cobrada então o jogo de futebol entra no PIB (através do aluguel do campo). Se minha namorada me faz uma massagem na cabeça não entra no PIB, se eu faço um bolo não entra no PIB. Agora se eu pago pela massagem e pelo bolo eles passam a ser computados. Entretanto, neste ensaio vou me ater a outro ponto: o PIB é uma métrica relativamente fácil de aferir. Dizer se o país está melhor do que estava há quatro anos é extremamente difícil, são milhões de variáveis complexas, mas dizer que o PIB cresceu ou diminuiu é fácil.

Digamos que o Estado reduza seus impostos e aumente seus gastos, ou mesmo que simplesmente decida imprimir mais dinheiro. Muita gente passará a ter mais dinheiro do que tinha antes. Elas consumirão mais em restaurantes, em sites de compra de produtos chineses… Ao calcular o gasto a partir do consumo isto tudo é considerado crescimento do país. O que é coerente com o aumento da qualidade de vida (é excelente ter mais para gastar). Entretanto, caso a capacidade produtiva não aumente (por exemplo, com aumento em indústrias ou com produção agrícola) ele levará a uma diminuição na qualidade de vida no futuro maior do que o ganho presente. Da mesma maneira que quem pega um empréstimo deve pagar o dinheiro atual com juros, a sociedade vai pagar a bonança atual com um custo futuro maior do que o bem aferido no presente. Entretanto, para o político, é muito difícil explicar os fundamentos da economia, é muito fácil mostrar um indicador (o PIB).

Um terceiro caso da falácia da mensurabilidade é aquele em que um vendedor é avaliado exclusivamente por suas vendas. Talvez ele passe a vender mesmo às custas de esconder alguma característica do produto. Ele pode ser promovido a despeito do mal que faz a quem comprou e à própria empresa. Tal cliente pode passar o resto da vida sem consumir aquele produto ou mesmo buscar uma concorrente. Em qualquer situação em que há um índice ou um número fácil de aferir a falácia da mensurabilidade tenderá a ocorrer: confundir o preço por qualidade, confundir o PIB com a situação de um país, confundir as notas no vestibular com o aprendizado…

Por estar apontando a falácia da mensurabilidade alguém poderia supor que sou contrário aos índices. Seria o caso de abandonar o PIB, a prova do vestibular, o PISA (exame que compara o desempenho de estudantes em diversos países do mundo). Apesar das distorções que os índices fomentam (um político se preocupar com o PIB, não com o país ou um aluno querer aprender a fazer a prova, não a aprender o conteúdo) eles são um grande avanço. Sem o índice do PIB um político poderia dizer qualquer coisa em relação à economia. O ingresso no serviço público se daria mais por simpatia do servidor responsável pela nomeação (ao invés de através de critérios claros).

Meu objetivo é chamar a atenção para aquilo que fundamenta o índice. Na nossa vida pessoal podemos fazer um esforço para decidirmos o que é aquilo do qual gostamos mais (quem sabe fazer o próprio teste cego com cervejas para ver de qual gosta mais). Em relação ao Estado creio a maneira de mitigar a falácia da mensurabilidade é criar diversos índices, de maneira que através de um índice podemos perceber o erro do outro índice. Em relação a vestibular talvez fosse interessante criar um “meta índice”, imagine separar as pessoas que foram melhor em cada vestibular e botá-las em situações em que elas têm que transpor o que aprenderam para alguma situação prática (o ensino da escola é tão ruim que parece até estranho pensar que o objetivo do conhecimento é ser usado).

Sou um cético, ao longo desta série de ensaios (O Todo Incognoscível) defendo que é impossível a correspondência perfeita entre um conceito e aquilo que ele representa. Pelos mesmos motivos, entendo que é impossível um índice corresponder perfeitamente àquilo que queremos medir. O que os índices (como o PIB ou a nota do vestibular) nos permitem é uma percepção clara daquilo que está sendo medido, de maneira que a crítica se torna possível! Mesmo sem os índices desvios (entre nossos conceitos e aquilo a que se referem) ainda são cometidos. Eles apenas não são aparentes!

Entender e Significar:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7217916

Falácia da Objetividade:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7069375

Regressão ao Infinito:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7062763

Lastro do Entendimento:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7056223

Simplismo - Carta de Princípios:

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/6964259