Todo Incognoscível 20 - A Evolução dos sistemas replicativos
O MILAGRE DA EXISTÊNCIA
Tenho caminhado bastante tanto para o trabalho como, nos fins de semana, próximo a casa da minha avó. Brasília tem uma grande diversidade de plantas, tanto por um esforço do Estado através dos projetos paisagísticos de Burle Marx, como pela iniciativa de moradores que plantam fortemente influenciados pelas modas do momento. A atual é plantar orquídeas em árvores! Devido à grande variedade e à idade das plantas, diversos tipos de passarinhos se tornaram visíveis a quem tem o cuidado de olhar. Os mais comuns são bem-te-vis, joões-de-barro e periquitos. Mas tenho visto canários, pica-paus, e uma grande diversidade de psitacídeos (maracanãs, araras e periquitos pequenininhos amarelos que nunca havia visto), além claro, das caçadoras: corujas, carcarás, falcões… Me encanta a existência e a diversidade. Mas de onde ela surgiu? E qual o milagre que permite que órgãos tão complexos (como o olho) me permitam apreciá-la? Ou ainda, que milagre me permite a cognição, a capacidade de me encantar com tanta beleza?
A EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS REPLICATIVOS
Gustavo Gollo defende no livro ‘A evolução dos sistemas aplicativos’ um olhar para explicar o mundo, o olhar da seleção natural. A ideia é simples, aquilo que se multiplica a uma taxa maior do que um aumenta sua quantidade ao longo do tempo. Se a produção resultante não tem nada em comum com o que o originou nem sequer se replicou, pois algo completamente diferente não mantém nenhuma característica do seu genitor. Se aquilo que foi gerado é drasticamente diferente do original, ele é instável, há muita chance de o resultante ter uma taxa de replicação menor do que um (caso em que eventualmente será extinto). Também há a chance de ter um descendente com taxa de replicação maior do que um (caso em que a linhagem aumentará sua população). Mas, se suas cópias forem muito diferentes da original, a instabilidade se perpetuará. Até que alguma consiga gerar cópias relativamente fiéis. A característica das cópias de serem relativamente fiéis possibilita a evolução das linhagens, sem isto o acúmulo das mutações (as alterações que ocorreram em gerações passadas) são facilmente perdidas. Por outro lado, a fidedignidade (a semelhança com a geração anterior) diminui a chance de surgirem mutações que permitam a evolução da linhagem. Tais desvios (em relação ao original) podem ser ruins, neutros ou bons. ‘Ruim’, ‘neutro’ ou ‘bom’ se refere às chances de que a cópia deixe descendentes. As linhagens acumulam desvios ruins, neutros e bons, mas ao longo de muitas gerações os desvios bons e neutros tendem a se difundirem mais, ao passo que os desvios ruins tendem a serem excluídos.
EXEMPLOS DE INDIVIDUALIDADES REPLICATIVAS
O exemplo mais famoso é o de um indivíduo biológico, é o exemplo que Darwin usou na ‘Origem das Espécies’. Um exemplo anterior ao de Darwin é o das línguas: a filologia estuda as línguas a partir de uma perspectiva evolucionista, tanto que através da coincidência entre palavras é possível identificar linhagens de línguas, se uma língua tem coincidências com diversas outras, há uma grande chance dela ter dado origem a tais línguas. Um terceiro exemplo é o do mercado, economistas liberais (especialmente austríacos) defendem que o Estado deve permitir que empresas vão à falência, pois é através das falências que o mercado exclui as menos aptas (e desta maneira abre espaço para empresas mais aptas). Subjacente a este raciocínio está a ideia de que o mercado é um ambiente onde ocorre a seleção natural. Tal seleção se dá em relação a empresas, mas também a tecnologias e a boas práticas. Tudo aquilo que é copiado é replicado. Popper defende que as ideias científicas também passam por tal processo de seleção, diversos cientistas oferecem e explicações, uma explicação (uma teoria) que negue a teoria dominante passa a prevalecer, ao passo que quando são negadas (por uma próxima elaboração teórica) são descartadas. Desta maneira a capacidade de explicar se aprimora. Dawkins, no livro Gene Egoísta, apresenta a perspectiva de que os genes seriam uma unidade de seleção natural. Para Dawkins um gene pode estar inserido dentro de outro gene. Ou seja, as unidades de seleção natural se sobrepõem!
REPLICADORES DENTRO DE REPLICADORES
Desta maneira dentro de um mesmo gene é possível haver diversos genes capazes de seleção natural. A mesma ideia Dawkins propõe para a cultura. Da mesma maneira que as unidades fundamentais da seleção natural são os genes (para os seres biológicos), os memes seriam as unidades de seleção natural da cultura. Os genes podem ser constituídos de diversos genes, os memes podem ser constituídos de diversos memes. Por exemplo, a religião católica pode ser considerada um grande meme. Um de seus memes internos pode ser a crença em um Deus único. Tal meme (crença em Deus) veio de outro grande meme (o judaísmo) e foi transmitido a outro grande meme (o islamismo). Assim, uma cultura é um amontoado de memes (como a religião, a política, hábitos alimentares…). De vez em quando ouvimos que se determinada prática sobreviveu milhares de anos deve trazer algum bem.
CULTURA COMO REPOSITÓRIO DE BOAS PRÁTICAS
Nassim Nicholas Taleb diz que não acredita em crenças. Ao mesmo tempo é Cristão Hortodoxo. A defesa que faz das religiões é a de que elas são um acúmulo de práticas que não podem ser justificadas por suas próprias narrativas, mas podem ser justificadas como repositórios de boas práticas. Neste sentido uma religião (mas o raciocínio pode ser extrapolado para qualquer traço cultural) é um acúmulo de tradições, algumas das quais remontam a milênios de existência. Pensar nas tradições como sobreviventes que carregam acúmulos de práticas boas para as pessoas é pensar evolucionariamente. Taleb supõem que o motivo para tais práticas permanecerem é a de que elas trazem algum benefício para seus seguidores. Neste sentido ele chama a atenção para o fato de que todas as religiões possuem algum tipo de jejum. O fato do jejum existir por tanto tempo e em tantas religiões é, segundo Taleb, evidência de que os jejuns são favoráveis às pessoas, caso contrário, tal prática seria extinta.
SELEÇÃO DE ACORDO COM SUA PRÓPRIA DISSEMINAÇÃO
O raciocínio de Taleb é coerente. Pensemos nas bactérias que compõem a nossa microbiota, (bactérias que vivem em nosso trato digestivo, em nossa cútis e em outras partes do nosso corpo). A maior parte delas favorece a nossa saúde. Bactérias que nos fazem bem tem mais chance de se disseminarem de um indivíduo para outro e de se manterem ao longo de gerações. Agora pensemos nos ácaros em nossas peles, pelo que sabemos eles trazem um pequeno incômodo, especialmente estético, sem acarretar consequências adversas. Mesmo acarretando um pequeno malefício os ácaros estão presentes virtualmente em todo ser humano adulto. Da mesma maneira existem replicadores que são prejudiciais à nossa existência e que, ainda assim, se disseminam. É o caso, por exemplo, do vírus da gripe ou dos parasitas em geral, ou mesmo de genes que carregam doenças hereditárias, como a propensão ao câncer ou o mal de Alzheimer.
PARALELO MEME x GENE
Ou seja, o raciocínio de Taleb de que aquilo que sobrevive (por exemplo, uma tradição religiosa) é bom para as pessoas, não necessariamente é verdadeiro. A evolução do meme (como a tradição do jejum à qual Taleb se refere) se dá em favor do próprio meme. Se tal tradição favorecer unidades de seleção natural diferentes (como a religião ortodoxa ou o ser biológico) isto pode lhe dar uma vantagem indireta - da mesma maneira que a microbiota humana é beneficiada pela saúde do seu hospedeiro. De maneira inversa, prejudicar seu hospedeiro atrapalha a unidade de seleção natural (como o caso do vírus ebola, que mata uma grande porcentagem dos seus hospedeiros, isto atrapalha sua disseminação). Entretanto, exemplos do mundo biológico mostram que a evolução não garante que uma unidade replicativa beneficie seu hospedeiro.
UNIDADES DE SELEÇÃO NATURAL: INDIVÍDUOS, GENES, MEMES, NENES
Para pensar de acordo com a perspectiva evolutiva é necessário definir o que é uma unidade de seleção: é tudo aquilo que consegue produzir cópias que mantenham uma semelhança com aquilo que a originou, mas que permita uma pequena variação. É interessante notar que para esta definição não é importante pensar em quem produziu as cópias. Um vírus não se replica a si mesmo (ao invés disso ele usa as células de algum hospedeiro). Da mesma maneira religião ou uma ideia podem ser considerados replicadores, mesmo que sua reprodução se dê através de povos humanos. Ou seja, unidades de seleção natural replicadores. Tais replicadores em relação as espécies são os indivíduos, em relação ao código genético são os genes, em relação à cultura são os memes, todos eles são exemplos de replicadores. Nas palavras de Gollo, todos são nenes. Nenes são os replicadores, independentemente de onde se encontram.
SISTEMAS EXTREMAMENTE COMPLEXOS
A existência de unidades evolutivas (replicadores) produz, ao longo de gerações, sistemas extremamente complexos. Neles as unidades de seleção natural interagem entre si e produzem mudanças, tais mudanças afetam outras unidades em cadeias de causa e consequência que podem gerar diversos ciclos dinâmicos, imprevisíveis. Uma linhagem de parasitas pode, ao longo das gerações, se transformar em uma linhagem de simbiontes a seus hospedeiros. Esta é, inclusive, a hipótese para o surgimento de algumas organelas, como os cloroplastos (responsáveis pela fotossíntese) das plantas. Uma empresa que traga uma disruptura pode alterar todo o seu ecossistema (pense na Amazon). Uma boa prática que surgiu em uma empresa pode se reproduzir em outras empresas (da mesma maneira que um vírus se reproduz em pessoas). E cada alteração no ecossistema tem o potencial para afetar cada replicador que o integra, de maneira a formar diversos loops. Por isto o sistema é complexo: porque um sistema está dentro de outros sistemas, a alteração em uma ciclo altera outros, inclusive com mecanismos que se retroalimentam e se auto regulam. Taleb defende que as variáveis são muitas e elas são dinâmicas, por isto é extremamente difícil fazer previsões (através de cálculos de causa/consequência) em relação a alterações em sistemas complexos.
MILAGRE DA EXISTÊNCIA É ACÚMULO DE DESVIOS
É impressionante que aquilo que há de mais complexo possa ser explicado através da evolução. Mesmo a evolução de órgãos complexos como o olho já foram remontados por evolucionistas. Mas há algo que me encanta ainda mais do que o surgimento do olho: a inteligência, a capacidade de reagir a situações e a capacidade de aprender. Neste sentido, a narrativa que aprendi na escola é a de que a humanidade tem um traço específico que a distingue de todas as outras formas de vida. Nada mais equivocado. Até mesmo fungos unicelulares tem capacidade de uma racionalidade, foi encontrada uma espécie que pondera a qualidade da comida e a quantidade de luz (ele foge da luz e busca comida) para suas decisões. Darwin já havia observado que até minhocas têm capacidade de aprendizado. Mas o que mais pode ser explicado a partir da perspectiva da replicação?
LENDO O MUNDO A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS SISTEMAS REPLICATIVOS
Gustavo Gollo propõe ler o mundo a partir dos sistemas replicativos (dos nenes). Desta maneira algo que seja comum é um replicador. Seres humanos são comuns, logo são replicadores. Sacos plásticos são comuns, logo são replicadores. Um vírus, uma ideia e um saco plástico são exemplos de replicadores que se reproduzem através de um aparato externo a eles mesmos. Um vírus é reproduzido por uma célula, uma ideia é produzida pela cognição de outro ser e um copo plástico descartável é produzido por uma fábrica. Mas todos têm existência independente de quem os produziu em primeiro lugar, cada um deles é sujeito à sua própria seleção natural (independentemente de favorecerem seus hospedeiros). Mas será que tudo pode ser visto a partir da perspectiva dos replicadores? Entendo que a proposta de entender toda a existência a partir dos sistemas replicativos é uma perspectiva possível, excitante e fértil. Entretanto a perspectiva de Gollo, por ser tão ampla (tudo é replicador, tudo é nene) acaba enfraquecendo a capacidade explicativa do conceito. Esta perspectiva precisa ser refinada. Tarefa para a qual pretendo dedicar ao menos um ensaio futuro.
A Evolução dos Sistemas Replicativos
https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/1996639