Trigun e o pacifismo
“Bem-aventurados os pacificadores,
porque eles serão chamados filhos de Deus”.
Mateus 5:5.
Quando falavam o seu nome, os populares tremiam. Era praticamente um sinal de mal agouro. A lenda e o medo se misturavam numa demoníaca criatura: cabelos aloirados, alto e com um sobretudo vermelho. Sua mira nunca errava os alvos, e por onde passava, deixava um rastro de destruição e morte. A catástrofe encarnada. O “Tufão Humanoide”. Esse demônio tinha um nome, Vash “O Estouro da Boiada”.
Se você já entrou em contato com Trigun, com certeza você deve ter se encantando pela sua história. A obra foi criada Yasuhiro Nightow, no ano de 1995, publicado na revista Monthly Shonen Capitain, Editora Takuma Shoten, originalmente em 3 volumes, que depois foram compilados em uma bilogia. Trigun Maximun, continuação direta, foi publicado na revista Young King OURs, Editora Shonen Gahousha, compilados em 14 volumes entre os anos de 1998-2008.
O anime foi produzido pelo famoso Estúdio Madhouse, e foi veiculado no ano de 1998, contendo ao todo 26 episódios. A fabulosa trilha sonora ficou a cargo de Tsuneo Imahori, trazendo country, rock, industrial e música clássica. O anime difere em história e personagens, mas respeita a personalidade dos personagens e os objetivos do mangaká. Esse ensaio tratará especificamente do anime.
A história inicia com a chegada de duas agentes de uma empresa seguros chamada Bernardelli, a enérgica Meryl Strife e a ingênua Milly Thompson. A dupla tem uma terrível missão: encontrar Vash “O Estouro da Boiada”, e pará-lo, se possível. É uma grande surpresa quando, no primeiro episódio, me deparei com o provável Tufão Humanoide. É inevitável não se apaixonar pelo personagem.
Diferente dos cartazes de procurados e dos registros históricos, Vash é totalmente diferente. É gentil, ingênuo, mulherengo, altruísta e o mais importante, pacifista. Seu lema “Amor e Paz” é repetido em vários capítulos do anime, deixando claro que aquele sujeito jamais poderia ser o diabo que pintavam. É desconcertante ver alguém tão legal envolvido em tantos casos de violência, e o pior, ser acusado injustamente de todos os crimes.
Minha empatia pelo pistoleiro da triste figura só cresceu ao longo da série. Mas algumas coisas me fizeram desconfiar da intenção daquele sujeito: quem quer paz e amor usa armas de fogo? Porque alguém que é pacifista se envolve em tantos conflitos? Quem é a pessoa com quem Vash deseja acerta as suas contas? Esses são os questionamentos que vão movendo o protagonista e alimentando as dúvidas do expectador.
Para entendermos essa história de maneira mais profunda, é necessário apreender o contexto histórico e social, o lugar onde ocorre os eventos, e um pouco da biografia de Vash. O planeta denominado de Gunsmoke (fumaça de revólver em inglês), fica no sistema estelar binário Delta Trianguli. O planeta também é chamado Terra de Ninguém, devido ao seu alto índice de violência.
É um planeta árido, com pouca flora, fauna hostil e ondas de calor insuportável. Mas porque as pessoas vivem num planeta dessas condições? Ao longo da obra é explicado a origem dos seus habitantes. Todos descendem dos sobreviventes da Grande Queda, evento em que dezenas de naves espaciais se chocaram com o planeta Gunsmoke. Esses colonos espaciais eram participantes do Projeto Sementes.
O programa foi desenvolvido para encontrar planetas habitáveis e garantir a sobrevivência da espécie humana. Entretanto, antes de encontrar um lar semelhante ao Planeta Terra, houve uma sabotagem. E o sabotador foi, nada mais nada menos que Million Knives, irmão-gêmeo mais velho de Vash. Apesar de ambos serem humanoides, pertenciam a uma outra raça, responsável por gerar a energia dos reatores.
No anime, Million Knives sofreu abusos de um dos tripulantes da nave e se tornou um sociopata logo na infância. O seu agressor era alcoólatra e o tratava com desumanidade. Knives adquiriu um ódio mortal pela humanidade devido aos seus traumas, contraindo uma visão de mundo radicalmente utilitarista e fatalista. Para ele, os seres humanos eram uma espécie de praga que deveria ser extirpada do cosmos.
Já Vash, ingênuo e altruísta, além de muito sensível. Era muito apegada a Rem Severen, tripulante que cuidavam de dele e de Knives. Desde a infância ele absorveu integralmente a ideologia de Rem: pacifismo. O amor que Vash sentia por ela estava num estranho limiar entre um amante e um filho, simulando um complexo edipiano que iria acompanhá-lo durante toda a sua vida.
Após Knives danificar os controles das naves e matar Rem, ele e Vash — mesmo a contragosto — continuam a singrar pelos mares de areia daquele planeta desértico. A cada dia que passava, Vash ia se tornando mais consciente do perigo que Knives estava se tornando, e acabaram se dividindo após um conflito. A partir daí se tornariam inimigos mortais. Knives nunca perdoou Vash por preferir a companhia dos humanos a dele.
Esse conflito representa mais do que duas posturas idealistas, é a repetição arquetípica da luta entre Caim e Abel. No livro de Gênesis, Caim e Abel eram filhos de Adão e Eva, os primeiros. Um dia, ambos fizeram sacrifícios a Deus. Abel, irmão mais novo, ofertou uma ovelha de seu rebanho, e isso agradou ao Senhor. Já Caim, ofereceu seu plantio, e sua oferta foi rejeitada por Deus, o que acabou o tornando invejoso.
Assim, Caim mata Abel, é expulso da presença dos pais e passa a vida toda sendo perseguido pelo remorso e culpa. Embora haja outro desdobramento no anime, é nítido as referências judaico-cristãs na obra. Mas o nosso Caim, ou melhor, Knives, persegue Vash e tenta destruir a sua humanidade se utilizando de todos os recursos sórdidos. Ele até cria uma companhia de pistoleiros para persegui-lo, as Armas Gung-Ho.
Vash caminha em um mundo marcado pela violência, o que acaba se tornando um dos argumentos prediletos de seu irmão para dobrar a vontade do Tufão Humanoide. Essa violência não nasce de uma geração espontânea. Como elabora o filósofo Jean-Paul Sartre, ela nasce da luta contra a escassez, nesse caso, o fim de recursos básicos como a água e terras agricultáveis.
Dois capítulos são emblemáticos acerca desse sentido. No Ep. 2 – A Verdade do Erro, vemos uma cidade inteira que migrou para outra região após um grave desabastecimento de água. Um único homem monopolizava o comércio do líquido, lucrando com a sede de milhares de pessoas. No Ep. 14 – A Pequena Arcádia, um latifundiário se utiliza do conflito de geração em uma família para se apropriar de um vasto terreno fértil. Esses são apenas alguns exemplos.
Quando há uma violência provocada pela escassez, alguns grupos formam latifúndios e monopólios numa busca por segurança, mas ocorre uma concentração de riqueza na mão de poucos e uma vasta marginalização das camadas populares. A propriedade privada é com certeza um crime. A concentração gera e/ou acirra as desigualdades socioeconômicas.
Nesse mundo, assim como no nosso, estar alheio a violência é algo quase impossível: ou se ocupa o lugar de opressor ou de vítima. Vash caminha numa linha tênue, evitando sempre matar, e acabando sempre à beira da morte. Apesar de pacifista, anda com uma arma na cintura. Armas de fogo são feitas para matar, escudos é que são feitos para proteger. Mesmo com um revólver, ele usa sua mira quase sempre para causar o mínimo de dano possível nos seus inimigos.
Geralmente faz disparos não-letais ou imobilizadores. Nosso protagonista é reativo, ou seja, age sempre para evadir e evitar o conflito, mesmo que os tiroteios o esperem em cada esquina, em cada cidade, em cada beco. Essa atitude acaba nos levando a indagar: essa omissão não acabaria ampliando a violência? E se Vash apertasse o gatilho e matasse os seus inimigos, isso diminuiria a violência no mundo?
Como a violência precede os indivíduos e grupos sociais, não é possível estar imune a esse fenômeno. Mas como nos mostra Vash, existe outras formas de resolução de conflito que não exigem o derramamento de sangue. Pacifismo não é passividade, é parcimônia. O problema é que Vash doura a pílula. Mesmo quando a sua própria vida corre risco, hesita.
O único personagem que ele mata com as próprias mãos é o Legato Bluesummers, fiel seguidor de Knives e Arma Gung-Ho, e só o faz no último minuto quando a vida de Meryl e Milly estão em risco. Às vezes, por autodefesa ou numa situação-limite, nos tornamos um agressor para defender a nossa vida, ou de alguém que amamos. As consequências são sempre destrutivas para todos.
Vash é um protagonista que foge ao estereótipo do Homem. Mas que seria ser homem no senso comum, ora, “o homem não chora”, “o homem deve ser machão”, “homem não sente dor”, “homem não leva desaforo para casa”, “homem não conversa, dá porrada” etc. Ou seja, o ideal de masculinidade é a supressão da sensibilidade e monopólio da violência.
O protagonista é totalmente o oposto disso: é gentil; meigo; altruísta, até imaturo; é alguém que prefere ser ferido a ferir o seu semelhante; ama crianças; e o mais chocante, chora copiosamente. Sim, Vash chora em várias ocasiões. E não são lágrimas qualquer ele realmente sente a dor do outro, mesmo a de seus inimigos jurados. Não guarda mágoa ou rancor, e por vezes, é acometido de uma grande solidão.
A dublagem e a adaptação brasileira do anime ficou a cargo da Som de Vera Cruz, Rio de Janeiro. Fizeram um trabalho de excelência. O dublador do Vash foi Alexandre Moreno, ele conseguiu dar todas as nuances ao complexo personagem. Com as várias paletas de cores escuras e terrosas utilizadas pela direção de arte do Madhouse, e a ambientação perfeita da trilha sonora, obtemos todos os matizes dramáticos dessa trama.
Atormentado pelas suas escolhas, muitas vezes culminando na morte de alguém — mesmo acidental —, Vash “O Estouro da Boiada” ainda tem um papel a cumprir para encerrar a cadeia de mortes envolvendo ele e as Armas Gung-Ho. Para isso, o protagonista terá que puxar o gatilho contra o sangue do seu sangue: Million Knives. O final do anime mantém o clima melancólico.
Assim como Vash, me dei o direito de chorar em alguns episódios desse anime, afinal, ser um homem não é ser insensível a dor própria dor e ao sofrimento alheio, é ser capaz de se responsabilizar pelas suas escolhas e entender que elas interferem na sociedade. O pacifismo não é uma resposta pronta para acabar com a violência, é um dos meios. Não pode ser vista como passividade, e nunca deve se tornar omissão.