Ensaio - A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA DO BRASILEIRO
Prof. Me. Leandro Dumont
“Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quanto impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente.” (2006) O exceto não me pertence, e embora poderia tê-lo dito nos dias de hoje, o filósofo Étienne de La Boétie o fez em sua obra (Discurso Sobre a Servidão Voluntária em 1549).
A semelhança aos dias atuais é deveras gritante e me leva a algumas reflexões inexoráveis que estou a compartilhar, dizendo – por que mascaramos a liberdade em detrimento de uma servidão voluntária? Por que se sujeitar a um único homem e entregar em suas mãos seus sonhos de liberdade assim, tão contraditoriamente? Por que suportar tanto xingamento e tantas ameaças, resignadamente, sem que haja um só levante social, todavia somente um povo dividido, letárgico e curvado? E se vai um, logo outro aparece com ideias salvadoras e milagrosas, pessoas incautas e desesperadas se apegam ao “homem bom”, se escravizam, se humilham em defesa do indefensável. Nunca aprenderão com a própria história? Quantos ditadores serão necessários?
Não seria, porventura, mais fácil defender ideias, projetos, propostas democráticas e republicanas ao invés de defender o frágil caráter humano de um homem que se definha em escândalos, com a identidade do sujeito manchada em corrupção, tão logo alcance o poder soberano? E por que essa preferência doentia pela imbecilização do obscurantismo científico e político, de onde surgiram essas pessoas? Porventura, migraram da escuridão do “Santo Oficio” para combater a “bruxa” do Estado Democrático de Direito, exatamente em razão de quê? Elas já existiam e não sabíamos de sua caterva? Querem lutar a favor do devaneio da não corrupção, mas sim à ditadura militar com um civil no poder e a milícia como coadjuvante? Do armamentismo do povo nas ruas com fuzis e 600 projéteis, todos prontos para derramar sangue dos irmãos em uma guerra civil contra o fantasma do marxismo cultural, do comunismo, da escola sem partido e da fantasia da ideologia de gêneros nas escolas. Tudo em detrimento de um negacionismo, de um terraplanismo e em defesa de uma eugenia estrutural familiar? – O ridículo não tem limites, é isso?
Será que realmente esses conflitos ideológicos são merecedores de atenção e mais importantes que a fome, a miséria, a pobreza, a segurança, o desemprego, os baixos salários, o analfabetismo, a falta de escolas, a falta de moradias, a desigualdade social, a liberdade do povo brasileiro e a pandemia que vivemos no momento, com quase 370 mil mortes que nos envergonham? Ou será que esses conflitos de interesses ideológicos não passam de “pano de fundo” – máscaras de controle de dominação ideológica para deixar o povo adormecido, aplaudindo o espetáculo midiático feito focas amestradas?
De fato a alienação, realmente, deve ser muito doce e agradável às nossas consciências porque nos retira a responsabilidade e as obrigações de nós mesmos. E, se no futuro tudo der errado, sempre poderemos dizer que fomos enganados, não sabíamos de nada, a culpa é do governo. E dessa estranha condição de entrega da liberdade e luta pela igualdade, eis que surgem, das catervas, aqueles que lutam pela tirania e pela volta da tortura militar.
Isso exposto deveria provocar constrangimentos e vergonha ao ser humano civilizado, no entanto La Boétie observa que para que essa submissão aconteça com sucesso é preciso que o dominado se deixe dominar e não se enxergue como subjugado, mas como igual – esse é o pulo do gato. É preciso que o servo aceite, incondicionalmente, de joelhos, a humilhação em reuniões públicas, expostas pela mídia e venda sua liberdade e dignidade por uma condição esperançosa, a de que, um dia, transforme-se, ele mesmo, também em um tirano ou um projeto de tiranete. “Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem cúmplices das suas crueldades, companheiros dos seus prazeres, alcoviteiros suas lascívias e com ele beneficiários das rapinas.” (LA BOÉTIE, 2006).
O filósofo que me inspirou este texto viveu há mais de quinhentos anos, mesmo assim o povo ainda não aprendeu. – Eu também sou povo, mas, jamais deixarei de me indignar com a tirania humana. Há uma máxima atribuída a Voltaire que diz: “Eu discordo do que você diz, mas vou defender até a morte seu direito de o continuar dizendo". É assim que penso e me esforço em vida.
15.04.2021