CRIAR x DESCOBRIR - TODO INCOGNOSCÍVEL 25

CONCEITOS ECONÔMICOS PARA EXPLICAR EPISTEMOLOGIA

Ao longo dos meus ensaios tenho usado conceitos econômicos para ilustrar ideias epistemológicas. Em um ensaio anterior transpus o conceito de lastro, que na economia se refere à correspondência entre uma moeda e a quantidade em uma commodity (como ouro) pela qual ela pode ser convertida. Na epistemologia o conceito de lastro se dá entre um conceito e aquilo que ele corresponde. Tanto em relação à moeda quanto em relação ao entendimento o lastro é dispensável. Já a teoria do milkshake de Brent Jhonson se refere à dificuldade do mundo de mudar o padrão monetário (no caso o padrão dólar). No ensaio ‘O hábito do pensamento’ transponho o mesmo conceito para entendimento: é extremamente difícil pensar em termos alheios quando você já tem sua própria explicação. Neste ensaio vou usar a inflação para falar do conceito de ‘conceito’. Em comum ambos são completamente subjetivos, ainda assim possuem uma intersubjetividade que permitem sua comunicação. Além disso, a inflação é um exemplo de um conceito, portanto compartilha características comuns a todos os conceitos (ser criado ou ser descoberto).

INFLAÇÃO É FENÔMENO SUBJETIVO

A inflação que cada pessoa sente corresponde aos seus hábitos de consumo. Ou seja, a inflação que eu sinto depende daquilo que eu escolho consumir. Ando de carro uma ou duas vezes por semana, o preço da gasolina impacta pouco a inflação que eu sofro, mas se aumentar o preço da banana ou do melão vou sentir imediatamente (consumo estas frutas todos os dias). Outra variável importante é o lugar em que se dá meu consumo. Se um novo mercado surgir do outro lado da cidade, mesmo que os preços dos bens que eu consumo sejam bem mais baratos, isto não vai impactar a inflação que eu sinto, pois faço minhas compras a pé. Assim a inflação, entendida como “aumento generalizado de preços” é um fenômeno individual.

INFLAÇÃO COMO FENÔMENO INTERSUBJETIVO

Entretanto, pessoas que têm perfil semelhante sentem a inflação de maneira semelhante. O aumento do preço do cimento impacta pouquíssimo minha vida, e apenas de maneira indireta. Mas este aumento impacta a vida de todas as pessoas que trabalham no ramo da construção - imagino as pessoas que trabalham informalmente construindo casinhas em seus bairros. Se formos muito precisos em relação a ‘aumento generalizado de preços’ a inflação para o empreiteiro é um fenômeno subjetivo - apenas ele vai sentir exatamente aquele aumento de preços, pois aquele aumento reflete o exato consumo que ele teve. Entretanto, se relaxarmos um pouco este parâmetro observaremos que um grande grupo de pessoas (com perfil de consumo semelhante) sente a mesma inflação. Suponhamos que aceitamos uma margem de erro de 20%, então se torna possível dizer que um grupo de pessoas sentiu (dentro da margem de erro) um mesmo aumento generalizado de preços. (OBS: A partir de agora sempre que eu falar em inflação será considerando uma margem de erro). De maneira que a pergunta que se coloca é: é possível afirmar que elas sentiram a mesma inflação?

DO SUBJETIVO PARA O INTERSUBJETIVO

O ACASO

Sim, é possível definir a inflação como um mesmo aumento de preços. Neste caso ele mediria não a individual, mas a do grupo que sentiu aquele mesmo impacto do aumento de preços. Entretanto, neste caso, colocaríamos juntos pessoas que sentiram o mesmo aumento de preços devido a motivos diferentes. Um juiz e uma diarista podem sentir o mesmo aumento de preços, mas o juiz devido ao aumento do preço da faculdade de medicina que paga ao seu filho, a diarista devido ao aumento do preço do pão francês. Ou seja, a definição ‘aumento generalizado de preços’ pode incluir pessoas que sofreram um mesmo aumento de preços devido a mera flutuação estatística, mero acaso - o que diminui a relevância desta inflação em particular para entendermos as experiências que vivemos. Com o intuito de criar um conceito com poder explicativo é interessante diminuir a relevância da aleatoriedade, assim é possível usar o conceito para entender e explicar as experiências que vivemos.

CONCEITO PERTINENTE

Um conceito é tão mais pertinente quanto mais é capaz de selecionar as variáveis relevantes para entender algum fenômeno. Em outras palavras, um conceito é tão mais pertinente quanto mais ele consegue descartar informações que são irrelevantes para entender algum fenômeno. Como é possível um conceito de inflação que nos ajude a entender problemas e tomar decisões?

CONSTRUINDO UMA INFLAÇÃO PERTINENTE

Já vimos que um recorte a partir do índice de inflação vai colocar juntas pessoas que tem perfis extremamente diferentes. Ao invés disso, podemos elaborar um índice a partir das necessidades apresentadas por determinado perfil. Por exemplo, uma inflação específica para a construção civil. Mas como fazer para calcular este índice? Uma possibilidade é pegar uma amostra (cem pessoas) que trabalham na construção civil e calcular a inflação que cada uma delas viveu, daí fazemos uma média. É uma maneira possível, mas imagine que nesta amostra uma pessoa tem grandes gastos com saúde, pois ela tem câncer, já outra pessoa, embora trabalhe na construção civil, está bem pobre, então seus gastos com alimentação tem bastante impacto no índice. E uma terceira pessoa trabalha no ramo de construção civil, mas está sem contrato nenhum, então seus gastos estão relacionados a lazer. Enfim, uma inflação da construção civil que seja construída com base nos gastos das pessoas envolvidas sofreria um forte impacto de gastos que não tem relação nenhuma com a construção civil.

UM RECORTE MAIS PRECISO

Para fazer um recorte mais específico (para excluir o ruído, informações irrelevantes), podemos fazer uma inflação não com base nas pessoas, mas nos produtos. Ao invés de calcularmos a média de inflação de cada pessoa que trabalha com construção civil, vamos calcular a inflação daqueles produtos consumidos na construção civil (desta maneira vamos excluir gastos com saúde, casamento, férias…). Atualmente a Fundação Getúlio Vargas calcula um índice de inflação semelhante ao que descrevi, se chama Índice Nacional de Construção Civil (INCC). E a pergunta que coloco neste texto é: tal índice é uma invenção ou é uma descoberta?

A INFLAÇÃO COMO UMA DESCOBERTA

A inflação é um conceito informativo fundamental para entender diversos fenômenos econômicos, seja para avaliar a rentabilidade de uma empresa, a significância do aumento do seu salário ou mesmo para projetar os custos de um projeto é necessário levar em conta a inflação. A partir desta perspectiva é defensável que ela possui existência objetiva, deste modo a inflação calculada apenas revelaria aquilo que já existiria (independentemente de qualquer observação). A inflação seria como uma ilha no mar conceitual. Sua descoberta se daria mesma maneira que um viajante incauto descobre uma ilha. A imprecisão na descrição da inflação seria equivalente à imprecisão de um cartógrafo ao mapear a ilha.

CORRESPONDISTAS

A esta perspectiva dou o nome de ‘correspondismo’ (acredita que cada Verdade é fundamentada em alguma correspondência a algo de existência objetiva). Quem é adepto a esta perspectiva chamo de ‘crentes’. Desta maneira boto juntos tanto aqueles que costumam ser chamados realistas (como Bertrand Russell) como aqueles que são chamados de idealistas (como Platão)1. Contrária à perspectiva correspondista defendo o ceticismo criterioso, perspectiva através da qual cada conceito pode ser entendido como uma invenção.

A INFLAÇÃO COMO UMA INVENÇÃO

Contrária à visão de que a inflação é um conceito ligado a um ente de existência objetiva defendo a perspectiva de que a inflação possui existência subjetiva cujo significado se atribui ao longo do seu uso. Já o significado intersubjetivo também se dá através do uso, mas na medida em que conversamos, escrevemos e lemos o significado é construído intersubjetivamente. Cada pessoa atribui seu significado particular dentro de um intervalo permitido intersubjetivamente. Desta maneira a atribuição de significado tem muito em comum com a atribuição do valor monetário a um bem (segundo a escola austríaca).

VALOR x SIGNIFICADO

Para a escola austríaca de economia o valor de cada produto é atribuído subjetivamente, já os preços são atribuídos intersubjetivamente. É importante salientar que Mises usa a palavra “objetivo” para se referir ao valor atribuído a commodities. Mas quando ele descreve como se dá tal atribuição (através da ponderação subjetiva de cada uma das pessoas) fica bem claro que este ‘objetivo’ é exatamente a descrição que Popper dá de ‘intersubjetivo’. Da mesma maneira que o preço no mercado é dado intersubjetivamente (mesmo em commodities, que aparentemente possuem valor objetivo) o significado de um conceito é atribuído intersubjetivamente (mesmo em conceitos extremamente comuns, caso em que a familiaridade confere a sensação de que o conceito é objetivo, real, natural). Mas que diferença faz um conceito ser construído ou ser descoberto?

DESCOBRIR UM CONCEITO

O uso das palavras ‘descobrir’ ou ‘inventar’ mostram a maneira com que cada pessoa interpreta as experiências pelas quais passa. Se para ela o conceito foi descoberto, ela acredita que havia um ente de existência objetiva envolto envolto pela neblina da ignorância e que ao iluminar tal ente ele pode ser descrito perfeitamente, assim o conceito corresponderia com seu ente metafísico. De acordo com esta perspetiva, é possível alcançar uma Verdade e estar certo atemporalmente, independentemente de qualquer contexto. Já quem usa a palavra ‘inventar’ tem uma percepção completamente distinta das suas experiências.

INVENTAR UM CONCEITO

Quem inventa é não está preso a uma Verdade, por esta perspectiva seria alguém bem mais livre. Entretanto, da mesma maneira que quem inventa um barco, sua invenção está sujeita a restrições. Se o barco for mais denso que a água vai afundar. Nem sempre um conceito, entretanto, pode ser tão facilmente testado quanto o é um barco. É possível que um conceito seja popular não pelo motivo que imaginamos, mas por algum motivo que favorece a reprodução do próprio conceito. Me refiro à ideia do conceito de ‘meme’ inventada no livro ‘O gene egoísta’ (Richard Dawkins) e desenvolvida por Gustavo Gollo no livro ‘A evolução dos sistemas replicativos.’ Para quem entende que um conceito é ‘inventado’ o conceito não é necessário, não corresponde a uma Verdade. O conceito é uma possibilidade, sempre passível de aperfeiçoamento.

INFLAÇÃO: DESCOBERTA OU INVENÇÃO

Neste ensaio criei um conceito de inflação (inspirado naquele calculado pelo Fundação Getúlio Vargas). Alguém que entenda que o conceito é real pode defender que o objetivo do conceito é representar a realidade da inflação da construção civil. Entretanto diversas escolhas são feitas, todas subjetivas (que se direcionam a interesses específicos). Qual a fronteira do conceito de ‘inflação de construção civil’: quais produtos vou entrar na cesta e com que peso? Será que um acabamento de luxo, como uma privada de ouro, deve entrar no conceito? É impossível contar com um ente de existência objetiva para isto. Alguém pode argumentar que ao pegarmos a cesta mais consumida (os produtos mais comprados) pelos maiores construtores estaremos fazendo um recorte objetivo. Não é o caso, estaremos apenas escolhendo um critério (consumo de determinadas pessoas) de acordo com o objetivo de quem criou o índice de inflação.

UMA REPRESENTAÇÃO SUBJETIVA

O conceito ‘inflação’ (como qualquer conceito) é como uma foto. O assunto de uma foto pode ser o céu de Brasília, o “assunto” (para usar o jargão da fotografia) da inflação pode ser a construção civil. Da mesma maneira que a fotógrafa ajusta seus parâmetros (zoom, abertura do diafragma, branco, velocidade do obturador, contraste…) a pesquisadora escolhe seus parâmetros de inflação (quais produtos entram, qual o intervalo de tempo para aferir..); a representação do céu de Brasília não necessariamente se dá por uma foto, pode se dar por uma pintura, por uma poesia… Uma fotografia diz muito sobre o assunto (o céu de Brasília), mas também diz a respeito da pessoa que tirou a fotografia. Mostra a sensibilidade dela, seu interesse, seu olhar. O mesmo se dá com um conceito, ele diz algo sobre o assunto (no caso o aumento dos preços da construção civil) mas também diz a respeito das pessoas que usam o conceito, mostra aquilo no qual elas acreditam, mostra a cosmologia delas. E ‘inflação’ é um exemplo excelente disto, pois atualmente existe, além deste entendimento que apresentei (aumento generalizado de preços) um entendimento de inflação que reflete uma outra maneira de entender a economia.

OUTRA INFLAÇÃO

Para a escola austríaca a inflação é o aumento da quantidade de dinheiro e de crédito na economia. É uma visão radicalmente diferente da do senso comum. Para a escola austríaca quando vamos ao supermercado e reclamamos do aumento de preços não estamos reclamando da inflação (ao menos não diretamente), estamos reclamando meramente do aumento de preços. Inflação é outra coisa e quando acontece poucas pessoas criticam, a maioria comemora. Inflação se dá quando o governo aumenta os meios de pagamento, seja através da impressão de dinheiro, seja com alguma outra medida que gera um efeito similar (como diminuir a taxa básica de juros para abaixo do que seria determinada pelo mercado). O aumento generalizado de preços, segundo esta escola, é a consequência da inflação. E a maneira com que com que vemos o mundo tem consequências para como as decisões são tomadas.

COSMOLOGIA TEM CONSEQUÊNCIA

O caso da inflação é representativo porque é um debate vivo, travado todo dia por quem acompanha economia. Aqueles que entendem inflação como aumento generalizado de preços aceitam a impressão de dinheiro e políticas com efeitos similares, pois entendem que podem extrair efeitos positivos de tais políticas e também que podem manipular a economia para que o efeito negativo (a inflação) não ocorra. Ao passo que quem adota a perspectiva austríaca defende que a inflação já está sendo gerada no momento em que a política expansionista é adotada. Quem está certo? Como decidir quem tem a razão?

A VERDADE É CAPAZ DE DETERMINAR QUEM TEM RAZÃO?

A esta altura do ensaio já ficou claro que é impossível apelar para a Verdade para decidir por um conceito. Desta maneira, como vamos decidir por um conceito de inflação? Neste caso em particular ambos os conceitos não são contraditórios, mas complementares! Os austríacos apontam para a impressão de dinheiro, a economia ortodoxa aponta para o aumento generalizado de preços. Neste caso, examinando apenas o conceito ‘inflação’ isoladamente há um falso impasse. Bastaria um dos lados recuar e mudar o nome do seu conceito. Entretanto este nem sempre é o caso. Popper examina com cuidado como a teoria da relatividade é incompatível com a física clássica e, deste modo, a falseou. Popper também teve a intenção de mostrar que é impossível se ancorar numa Verdade para defender um conceito (o que é a perspectiva dos positivistas). Vou abordar o assunto da escolha por conceitos ou teorias mais pertinentes (e descarte das teorias cujas falhas foram evidenciadas) em outro ensaio. Ainda assim é necessário chamar a atenção para uma característica das invenções, elas podem ser falhas, ruins, equivocadas, disfuncionais.

INVENÇÃO CRITERIOSA

Defendo a perspectiva de que um conceito (ou uma teoria) é uma invenção. Desta maneira, as possibilidades da invencionice são infinitas. São infinitas, mas são limitadas. É possível inventar infinitos tipos de barcos, mas se eles forem mal feitos serão lentos, instáveis e, na pior das hipóteses, vão afundar. O mesmo se dá com os conceitos, é possível criar uma infinidade de conceitos, mas é difícil criar um conceito preciso, claro, consistente e útil.

CONCLUSÃO

A epistemologia tem como tema o estudo do conhecimento. A economia tem como tema o estudo das decisões no contextos de escassez - inclusive em relação à escassez de informação. Desta maneira os conceitos da economia podem ser usados para entender o próprio conhecimento. Neste ensaio usei o conceito ‘inflação’ tanto para ilustrar um característica do conceito ‘conceito’: ambos são fenômenos subjetivos, mas ambos podem ser entendidos de uma maneira intersubjetiva. Em comum ‘inflação’ e ‘conceito’ tem a característica de serem extremamente pessoais: a inflação que cada pessoa sente corresponde ao aumento dos produtos que cada uma consumiu; já atribuição do significado de um conceito se dá a partir do seu uso (conferir ensaio anterior, ENTENDER e SIGNIFICAR - O TODO INCOGNOSCÍVEL 23). Já usando ‘inflação’ como um exemplo de conceito defendi a perspectiva de que apelar para a Verdade para justificar um conceito é ingênuo. Se um conceito (ou uma teoria ou uma crença) pudesse se apoiar em alguma Verdade haveria algum conceito pertinente independentemente de qualquer contexto (ou seja, ele seria objetivamente verdadeiro) - tal conceito seria descoberto. Defendo a perspectiva de que conceitos (ou teorias) são criados. E como qualquer criação reflete um pouco de quem a criou e um pouco o objetivo para o qual foi criada. Alguém poderia supor que por serem criados tudo seria possível. Não é o caso, as possibilidades são infinitas, mas são limitadas. Construir um conceito pertinente, coerente, esclarecedor, pode ser tão ou mais difícil do que criar um barco ou um microscópio eletrônico.

OBS: Inclusive um conceito pode ser criado a mil mãos (como é o caso de um computador atual, em que é difícil identificar a contribuição de cada uma das pessoas que fizeram parte de sua criação)

Textos anteriores:

Lastro do Entendimento

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7056223

Entender e Significar

https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7217916