A APARÊNCIA DE OBJETIVIDADE DE UM CONCEITO - TODO INCOGNOSCÍVEL 24
EPISTEMOLOGIA & ECONOMIA
Sou apaixonado tanto por economia como por epistemologia e percebo que ambas têm muito em comum. A economia estuda o processo decisório, já a epistemologia estuda o conhecimento. No contexto da economia notamos que todas as decisões são informadas, mesmo que a informação total seja impossível em uma decisão empreendedora. De maneira análoga, na epistemologia notamos que todo o conhecimento é embasado, embora seja impossível um embasamento total. É claro, uma decisão pode ser mal informada, um conhecimento pode ser mal embasado. A distinção entre ambas as disciplinas se dá porque a primeira tem uma orientação mais prática que a segunda. Por orientar a ação de muita gente a economia é um campo econômico em que as teorias são discutidas e testadas rotineiramente, especialmente de quem vive de investimentos.
ECONOMIA É CIÊNCIA VIVA
Embora elas não sejam testáveis através do rigor que Popper gostaria que as teorias científicas o fossem, as teorias econômicas sofrem algum tipo de teste, um teste heurístico de sobrevivência. Diversos conceitos são descartados, não necessariamente como falsos, mas como irrelevantes. Apenas aqueles conceitos que são de alguma maneira úteis para alguém continuam sendo praticados, aprimorados e discutidos. Esta é uma grande vantagem da economia em relação à epistemologia. Frequentemente me pego pensando em epistemologia através de conceitos econômicos. O ensaio “O hábito do pensamento”, por exemplo, em grande parte foi a transposição da ‘Teoria do Milkshake’, de Brent Johnson para o contexto do pensamento. Em outro ensaio usei o conceito de economia de “lastro” para criticar a percepção de que as ideias tem um lastro metafísico que determinam sua Verdade. E é super curioso que quem inventou o conceito de “lastro” da economia seja justamente o filósofo cético mais famoso, David Hume. Neste ensaio vou usar o conceito de “inflação” para falar do conceito de “conceito”.
INFLAÇÃO NO DIA A DIA
Podemos conversar sobre inflação, todo mundo sabe o que é. Na década de 80, no dia em que uma pessoa recebia o salário ela ia correndo ao supermercado e enchia o carrinho de tudo o que conseguiria comprar - pois no dia seguinte cada produto estaria mais caro. Para quem viveu esta experiência ‘inflação’ era um conceito tão real e tão palpável, tão concreto quanto a gravidade. Talvez ela não soubesse explicar a inflação (como não sabe explicar a gravidade), mas sabe que a inflação existe.
PERSPECTIVA CÉTICA
Entretanto, como já mostrei em diversos ensaios anteriores, um conceito não possui uma correspondência perfeita com um ente de existência objetiva, em outras palavras, um conceito não possui lastro. Assim sendo, como é possível que as pessoas conversem tão à vontade sobre inflação? Como é possível que se entendam e tomem decisões a partir de tal conceito? Para responder a esta pergunta, vamos falar a respeito de algumas inflações.
AUMENTO GENERALIZADO DE PREÇOS
O uso mais comum do conceito é entendê-lo como ‘aumento generalizado de preços’. Uma maneira de proteção é comprar um bem que mantenha sua utilidade por muitos anos, por exemplo uma geladeira, um carro, ou - melhor ainda - um terreno. Dada esta simples percepção é possível conversar a respeito do impacto dela em nossas vidas e tomar decisões a respeito. Situação em que as pessoas não percebem a inflação que cada uma delas vive é extremamente pessoal, ou seja, é subjetiva.
AUMENTO GENERALIZADO DE QUAIS PREÇOS É SUBJETIVO
Em uma economia de mercado, cada agente (a pessoa que produz comida, que oferece serviço, aquela que compra um pacote de férias, enfim, cada pessoa que empreende) determina seus preços. De maneira que seu aumento não é uniforme. Mesmo duas pessoas que vivem com a mesma renda e no mesmo bairro vão sentir a inflação de maneira diferente. Se uma gosta de comer biscoito e outra prefere chocolate, pronto, cada uma vai sentir um aumento diferente de preços. Da mesma maneira o senhorio de uma pode aumentar bastante o aluguel, ao passo que o outro pode aumentar um pouco menos… Ainda assim, duas pessoas conseguem conversar sobre inflação como se fosse algo de existência real e objetiva.
SUBJETIVIDADE DOS CONCEITOS
O mesmo se dá com qualquer conceito. As situações em que cada pessoa vive cada conceito refletem a experiência de cada uma delas. E a atribuição do significado dado a cada conceito também se dá a partir do seu uso (como espero que tenha ficado claro no ensaio anterior, ‘Entender e Significar’), desta maneira a atribuição de significado é extremamente subjetiva - ainda que a comunicação faça parecer que as pessoas envolvidas têm a mesma interpretação, portanto, faz parecer que a comunicação se dá através da existência de algo objetivo.
CONCLUSÃO
A economia e a epistemologia têm muito em comum, a economia estuda a tomada de decisão à luz das informações disponíveis, a epistemologia é o estudo do próprio conhecimento. Mas a economia tem uma vantagem em relação à epistemologia, é estudada por muito mais gente que opera no mercado de investimentos. De maneira que a economia pode fornecer diversas ferramentas para entendermos o próprio conhecimento. Neste ensaio chamo a atenção para como o conceito ‘inflação’ é semelhante ao conceito de ‘conceito’ pois o efeito da inflação é extremamente específico, é extremamente subjetivo. Ainda assim as pessoas conversam como se ela fosse um fenômeno objetivo. O mesmo se dá com qualquer conceito, mesmo aqueles que parecem mais objetivos, mais “reais” recebem seu significado de acordo com seu uso, da maneira mais específica, mais subjetiva. No próximo ensaio vamos continuar usando ‘inflação’, mas será para esmiuçar o debate sobre se um conceito é criado ou descoberto.
links:
Entender e significar
https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7217916
O hábito do pensamento
https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7207189
Falácia da Objetividade
https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/7069375
Comunicação
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