A PRIMEIRA VEZ QUE ENCONTREI UMA “PESSOA SEM DEUS”!
Quando a crença justifica os fins e os meios, até o mal é uma virtude!
*Por Antônio F. Bispo
Até os meus 16 anos de idade nunca tinha encontrado pessoalmente um ateu. Todos os que tinha ouvido falar estavam mortos ou figurados em alguma página de livros ou revista da época.
Como era do meio religioso, toda descrição de ateísmo que tinha ouvido até então partir da boca dos “santos”. Ao descreve-los, os tais só faltava dizer que as “pessoas sem deus” tinham rabo chifre. Era comum que eles associassem a desonestidade, a corrupção, o homossexualismo, a perversão sexual e a tendência homicida à personalidade de um ateu. Diziam que devíamos esperar tudo o que era de ruim de uma pessoa que não confessasse a jesus como salvador ou que negasse a existência da Trindade & CIA.
Por essa formulação, eu pensava que um dia se encontrasse algum deles, iria me deparar com uma criatura muito sinistra, capaz de cuspir fogo pela boca ou de cozer vivas criancinhas inocentes num caldeirão de água fervente.
Mas não... lendo a bíblia e pesquisando sobre a história da igreja, vi que quem fazia isso era o “povo de deus” e não o “povo sem deus”.
Quando encontrei um ateu vivo em pessoa pela primeira vez, percebi que eram pessoas normais, gente como a gente, não tinha aparência bizarra e sabiam usar o cérebro. Percebi que em certos casos, ao se referir aos incrédulos, certos crentes estavam apenas pintando um auto retrato deles mesmos, projetando nos outros aquilo que eles eram ou tinham vontade ser.
Não eram pessoas para serem temidas e nem veneradas. Era apenas pessoas. Se havia algum juízo de valor, esse deveria ser baseado em suas ações e não em suas descrenças. Aprendi que o nome disso se chama vigarice e manipulação (quando uma pessoa (homem de deus) projeta nos outros uma imagem ruim e faz de si mesmo ou de seu grupo a imagem da perfeição).
Desse modo, pude conhecer a primeira pessoa “sem deus” ao entrar no ensino médio.
Era um jovem rapaz de cerca de 30 anos de idade, que seria nosso professor de sociologia.
Até então, nunca tínhamos tido aulas sobre aquela matéria e como adolescentes, todo assunto novo nos era fascinante.
Dali em diante pelas próximas 3 semanas, entre tantas, as aulas mais desejada por todos nós era essa, a desse professor que até então não sabíamos que ele era “sem deus”.
Achávamos que a mágica estava na matéria, mas com o tempo percebemos que estava no professor, no seu conhecimento técnico, no modo como ele explicava o assunto, em sua personalidade e em seu equilíbrio. Falava pouco sobre si mesmo e muito sobre o conteúdo. Viajávamos quando ele ensinava.
Durante o aprendizado ele estava sempre interligando assuntos relacionados à antropologia e filosofia para explicar o homem como indivíduo e como um produto do meio em que vive. Falava sobre os diversos grupos humanos no planeta, como se dividiram, como evoluíram, sobre a influência do pensamento religioso e como a somatória desses fatores tendem a criar a realidade em que vivemos.
Nunca citou deus, diabo ou profecias alguma como responsáveis por nada, como era comum ouvir no meio cristão. Dizia que éramos os agentes transformadores. Apenas o homem, pela ação ou pela inercia era o responsável pelas condições do ambiente em que vivia e somente ele as poderia mudar.
Era a primeira vez em minha vida que ouvia alguém narrar os eventos humanos sem mencionar uma legião de anjos e demônios se digladiando pelo controle do corpo ou da mente humana. Era bem diferente. Um diferente bom!
Em minha educação cristã criacionista havia aprendido que deus criara tudo perfeito incluindo as sociedades humanas e o diabo estragara tudo.
Quando os crédulos se referiam a qualquer outra teoria que não fosse essa, o faziam de modo jocoso ou pejorativo, dando-se a entender claramente que quem acreditasse na teoria do “homem barro” e da “mulher costela” era um tremendo babaca e infiel. Crer nessas teorias, era um atestado de inteligência.
Porém, ali estava alguém ousado, falando abertamente uma outra teoria diferente sem fazer proselitismo algum, sem ameaçar com o inferno os que não concordassem com e ele e sem cobrar 10% de ninguém para pregar “a verdade”.
Era incrível essa outra via. Nem sabia que ela existia! Era fascinante ouvir tudo aquilo, alguém falando fora da caixinha, sem mencionar a ira ou apreço das divindades sobre nossa aceitação ou recusa dos fatos. Alguém que permitia fazer perguntas diversas sem humilhar ou achar que estava sendo insultado como era comum aos líderes religiosos. Alguém sensato falando coisas lógicas sem envolver forças ocultas numa simples conversa pedagógica. Era fantástico!
Durante essas três semanas o professor não havia dito ser religioso. Nunca condenou ou aprovou quem dizia ser. Nunca se importou com o assuntou e apenas seguia o curso da aula. Quando falava sobre religião, o fazia de modo cientifico, sem chacotas e sem juízo de valores, apenas citando os fatos históricos e como estes influenciavam a sociedade como um todo.
Porém, esse gosto pela ciência que brotava em nós devido ao modo como o professo ensinava estava próximo de ser abalado.
Um jovem evangélico, pentecostal, “falador de línguas estranhas” e monitor da conduta e do pensamento alheio, desde o primeiro dia de aula desconfiava que o professora não era cristão e resolvera interroga-lo publicamente na aula.
-Professor, você acredita em deus?
Disse o jovem à queima roupa.
-Em qual deus? Seja mais específico, há milhares deles no mundo todo!
Disse o professor sem se virar e continuo escrevendo no quadro negro.
-Não me venha com essa, não se faça de desentendido! Estou falando sobre o único e verdadeiro deus, do meu deus, do deus que criou os céus, a terra e tudo o que nela há. Esqueça todos os outros deus pois são todos falsos, o meu deus, o deus cristão é o verdadeiro, é a ele que me refiro e você sabe disso!
Disse o jovem, agora já com a voz quase alterada.
Seu semblante estava se transformando em raiva, muita raiva. Seus punhos se fechando como se estivesse se preparando para um combate.
O professor que até então estava de costas, virou, fitou-o e calmamente retrucou:
-Meu jovem, me desculpe! Não sabia que você tinha um deus particular! Se você se refere ao deus bíblico como sendo o seu deus ou o deus cristão, também está errado. Ele é um empréstimo de outras culturas e não é um deus original, nem dos cristãos e nem dos judeus! Se você se refere a ele como sendo o criador dos céus e da terra, saibas que Tupã, Bhrama, Odin, Osíris e tantos outros também é ou já foram em algumas culturas. Se você considera o seu deus verdadeiro e os demais falsos só por que você nele crê, as pessoas de outros povos pensam o mesmo em relação a ti. Do mesmo jeito que você julga os outros deuses como sendo falsos, eu julgo todos eles, incluindo o seu. Digo que todos eles são frutos da imaginação huma...
-Você me respeite! Respeite a minha religião! Respeite a minha fé!
O rapaz nem deixou o professor concluir o raciocínio vociferou de forma impetuosa.
O jovem agora claramente descontrolado, se dizia violado e desrespeitado por ter sua fé e o seu deus comparado aos demais deuses do mundo todo e isso era injusto: o seu deus era o verdadeiro sim e todos os demais falsos e ele tinha convicção disso! Ele estava furioso.
Logo ele que era conhecido por “falar diretamente com deus” e ser “a boca de deus” por meio de línguas estranhas e profecias; logo ele que era o queridinho dos líderes religiosos e que gostava de meter o dedo na cara de “pecadores” e vê-los calar diante de tanta “unção”. Agora estava ali, sendo “insultado” por um simples ateu. Isso não iria ficar assim!
Agora de pé, ele deu dois passos em direção ao professor e disse:
-Você tem a obrigação de respeitar minha religião senão eu vou te denunciar por perseguição religiosa!
Sem mexer uma única sobrancelha, sem levantar o tom de voz e sem perder as estribeiras como o jovem “cheio do espirito santo”, o professor disse apenas:
-Meu jovem, quando você entender a diferença entre imposição e respeito me procure para finalizarmos esse diálogo. Você está tentando me impor o seu credo e acha que por eu ter uma opinião própria e não concordar contigo, o estou desrespeitando. Se sua fé foi abalada pela minha descrença, isso não é problema meu. Se vira!
O jovem que parecia ir em direção ao professor para lhe dar um soco, de repente mudou o rumo, virou-se e se dirigiu em direção à porta dizendo:
-Nunca mais assisto sua aula!
-Fique à vontade! Você não é obrigado a assisti-la, muito menos a gostar de mim! Se a tua fé te faz ser essa pessoa iracunda e propensa ao ódio a todos os que pensam diferente de ti, eu só lamento. Já li muito a bíblia e o seu Jesus ensina justamente o contrário do que você está fazendo...
O professor disse essa última fala em tom quase paternal, gerando um silêncio sepulcral em toda à sala. Ele “derrotara” o crente mais chato de todos os tempos, sem envolver ninguém “na briga”, sem partir pra baixaria e sem “descer do salto”.
À partir daquele dia, as aulas ficaram ainda mais interessantes. Parecia que “o proibido” era mais gostoso.
O professor fazia cada minuto da aula valer à pena, de modo que contávamos os dias para que houvesse outra aula dele. De fato, a mágica estava no professor e não na matéria.
Quanto ao jovem “santo e iracundo”, desse dia em diante, toda vez que o professor entrava em aula, ele se retirava. Quando enxergava o professor vindo por um caminho, ele seguia por outro, para não cruzar com ele.
Dizia que não queria respirar o mesmo ar do ambiente que aquele “ateu filho do demônio” respirava. Disse que faria de tudo para que o professor fosse expulso da escola, pois não era justo que ele como “filho de deus” ser ensinado por um “filho do capeta”.
O professor continuou sendo a mesma pessoa, ensinando do mesmo modo, sem ressentimentos. Não tratou ninguém melhor ou pior por esse evento. Aproveitava o curto período de sua aula seguindo a grade curricular. Era magnifico vê-lo em ação.
Algumas semanas depois, o professor parou de vir e o “jovem santo” a começou contar vantagem, dizendo ter sido ele e o seu deus o responsáveis por tirar “aquela desgraça” da sala de aula. Contou isso inclusive na igreja como testemunho de vitória.
Não acreditamos.
Soubemos depois que o motivo real da ausência do professor, era falta de verba pública para financiar professores de outras cidades como era o caso dele.
Nunca mais o vi, mas sua postura e o modo como ele agira diante de um “servo de deus” me fez questionar por anos qual dos dois naquele instante era o ser de luz e qual era o ser das trevas.
Até então nunca tinha visto um ateu se defendendo. Sempre via crentes difamá-los, desconstruí-los e humilha-los à distância, mas pessoalmente era a primeira vez que vi alguém tentar fazê-lo e que por sinal ficou feio pra para o que tentara.
Percebi desde então, que quando acuados e sem argumentos, “os pregadores da verdade” partem para ofensas pessoais ou para outros tipos de agressões de modo a evitar uma derrota explicita.
Aquele jovem crente e que se dizia cheios de virtudes divina era do tipo que atribuía aos ateus a responsabilidade por todas as mazelas do mundo.
Dizia que enfermidades, acidentes, desgraças, tragédias e até calamidades provocadas pela natureza eram resultados da ira de deus sobre os homens por ainda haver na terra gente que não acreditava em nele, no deus que enviou o seu filho para morrer por todos e alguns ainda não lhe dava crédito. Por isso a ira de deus era infinita sobre a humanidade e por culpa dos ateus o juízo de deus em breve desceria sobre a terra, trazendo a grande tribulação e todas as pragas do apocalipse.
Interessante ressaltar que entre os amigos mais chegados desse “jovem santo” estava um homem que cumprira pena numa penitenciaria por matar outro usando arma branca; um líder religioso que já havia destruído cerca de 5 casamentos “comendo as crentes casadas”; um outro jovem que vivia mais em disciplina na igreja que em comunhão por estar sempre envolvido em orgias sexuais e outro que mais parecia uma serpente, de tanta peçonha que possuía...Eram esses os seus perfis de amizade, mas ele insistia em dizer que todos os males do mundo era devido a descrença em deus.
Segundo essa linha de pensar defendida pelo jovem, pouco importava o tamanho do crime ou quem cometera ou quantas vezes o faria, se após o ocorrido o malfeitor pedisse a deus perdão pelos seus pecados. Se assim o fizesse, deus o perdoaria sempre e por mais erros que este viesse cometer, sua alma seria branca como a neve.
Quanto aos ateus (eles diziam), por não crerem em deus jamais seriam perdoados. Já que não reconhecia a deus como senhor absoluto também não reconhecia seu poder de perdoar pecados, desse modo não o invocaria e não seriam limpos, sendo condenados num futuro próximo.
Nessa linha de raciocínio, errar não é um problema, o problema é não ter um deus para te perdoar depois do erro cometido. Quantas pessoas iria se ferrar com os atos dos infratores também não importava, azar da vítima. Assim, quem peca e pede perdão é como se nunca tivesse pecado.
Se assim fosse, para cada pecador remido, seria necessário um deus bandido!
Nessa forma de pensar, a crença justifica os erros!
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Apesar de parecer irrelevantes, embates como esses, ainda que silenciosos são de grande importância aos que procuram um impulso para se libertar de alguns dogmas e padrões doentios de pensamento e comportamento cristãos. Quase todo material em que mostre um conflito de ideias é válido para que o equilíbrio e a razão sejam encontrados.
Textos, livros, diálogos, filmes, documentários e até certos memes, são capazes de ascender a centelha que conduzirá à rebelião os que pela mente estão escravizados. Cedo ou tarde a chama da liberdade incendiará outros corações. É importante que seja uma liberdade lúcida, pois quando não, o sonho do oprimido é tornar-se o opressor.
Por esse motivo (a busca pelo oposto), os líderes religiosos induzem, aconselham ou ordenam que os membros de suas igrejas não se relacionem com “pessoas do mundo”, de outras igrejas ou com “pessoas sem deus”, pois um simples pensamento, uma simples linha de raciocínio ou um simples ponto fora da curva será capaz de desmontar décadas de “aprendizado verdadeiro” dentro de uma igreja.
Do mesmo modo que um pouco de fermento leveda toda a massa, uma pitada de dúvida faz inflar as mentes dos que pela fé haviam sepultados os próprios cérebros.
A liberdade sempre é precedida por um ato de ousadia. Não a ousadia opor-se apenas para tumultuar, mas a ousadia como capacidade de receber, absorver, transformar e retransmitir a energia recebida como argumentos lógicos.
A liberdade racional tem com tendência abrir a porta à outros cativos. É importante que seja didática. O orgulho apenas fere, humilha e confunde até mesmo os que já saíram da prisão. Ira e vingança como pano de fundo de liberdade, servira apenas como estribo para tiranos. Você pode ser muito mais que isso! Pensem sobre isso.
Revejam Seus Conceitos!
Saúde e Sanidade a Todos!
Texto escrito em 20/3/21
*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.