Simplicidade como critério para decidir por uma teoria, Navalha de Ockam - Todo Incognoscível 22

CRITÉRIOS PARA A PERTINÊNCIA DE UMA NARRATIVA

No ensaio anterior, ‘O Hábito do pensamento’, mostro que quando temos uma narrativa elaborada em nossa cabeça e cimentada pelo hábito é difícil fugir dela. É necessário muito esforço para pensar de uma maneira diferente daquela a que estamos habituados. Também mostrei que há duas maneiras de se criar um uma narrativa: uma a partir do sistema intuitivo, caso em que valorizamos a repetição, o sentimento de unanimidade e a autoridade de quem defende uma narrativa; a outra a partir do sistema lento, no qual depreendemos muito esforço para entender o que está sendo dito. Naquele ensaio, entretanto, me abstive de entrar no mérito da pertinência de uma narrativa. Como distinguir se uma narrativa (ou uma crença em geral) é adequada. Sou um cético, acredito que é impossível ter certeza de que a narrativa na qual acreditamos é a mais adequada possível (sempre o conhecimento pode ser aprimorado). Entretanto há diversas orientações que, embora não garantam que uma narrativa seja a mais adequada, sinalizam para tal. Neste ensaio vou falar a respeito de um critério fundamental para a minha filosofia, a simplicidade. Mas antes, vou fazer um paralelo com filmes da minha infância.

ENGENHOCA IMPRESSIONANTE

Atualmente dar um comando de voz para ligar a luz é uma tecnologia disponível. Entretanto, nas décadas de oitenta e noventa, era comum um filme mostrar mecanismos intrincados para fazer algo trivial como acender a luz do quarto. Ao acordar uma pessoa joga uma bola em um mecanismo de molas que gira uma manivela que derruba um líquido em um vidro que desencadeia uma reação química que gera um vapor que move um cata-vento empurra um carrinho até o interruptor e acende a luz do quarto. Por um lado, o filme mostra que a pessoa que fez aquela engenhoca é uma pessoa muito inteligente, capaz de montar uma máquina cheia de relações de causa/consequência. Por outro lado, aquilo é uma piada. Montar uma geringonça destas dá muito, muito mais trabalho do que levantar e acender a luz, e tem muito mais chance de falhar!

OPORTUNIDADE DE ERRAR

No exemplo acima há oito relações de causa e consequência, cada uma delas é uma oportunidade para a geringonça falhar. Uma alternativa muito mais simples é levantar e ir até o interruptor! Teremos apenas duas relações de causa/consequência, ir até o interruptor e apertá-lo. Agora, qual é a alternativa adequada?

O ADEQUADO SE DÁ POR CRITÉRIOS EXTERNOS

Certamente a alternativa adequada para o filme é a da engenhoca pois comunica bem ao público a natureza da personagem e faz uma ótima piada! Agora, se o objetivo é meramente acender a luz, levantar e caminhar até o interruptor é o ideal. O importante notar é que, o ideal ou o adequado não é algo intrínseco à própria geringonça, mas é uma avaliação a partir de um olhar munido de determinados critérios. Assim sendo, como isto se dá em relação ao nosso conhecimento? Para responder a esta pergunta vou chamar a atenção para a diferença entre uma tecnologia e uma teoria.

DIFERENÇA ENTRE UMA TECNOLOGIA E UMA TEORIA

Uma engenhoca (como a que ligar a luz) ou uma ação, como levantar e apertar o interruptor, podem ter seu sucesso medido a partir dos seus resultados. Dois veículos podem levar uma pessoa de um lado para outro e o sucesso deles pode ser medido primeiro no sucesso e realizar o transporte, segundo em características secundárias, como economia no uso do combustível ou tempo necessário para realizar o trajeto. Ou seja, o sucesso de uma tecnologia pode ser medido positivamente (por aquilo que foi observado). Já no caso de uma teoria a observação positiva nunca garante sua verdade.

OBSERVAÇÃO POSITIVA É INSUFICIENTE PARA PROVAR UMA TEORIA

Se eu tenho uma teoria de que cisnes são brancos e vejo mil cisnes brancos, ainda assim nada me garante que eu verei um próximo ciste e ele será branco. Enxergo o sol girando ao redor da terra todo dia. Se uma teoria fosse confirmada positivamente eu deveria aceitar que o Sol gira ao redor da terra (pois a evidência positiva teria COMPROVADO que o sol gira ao redor da terra). Entretanto, as equações que descrevem as órbitas dos planetas são muito mais simples quando usamos o sol como centro do sistema solar.

É POSSÍVEL DECIDIR A PONTA DO MEU NARIZ COMO O CENTRO DO UNIVERSO

A propósito, a escolha do sol como centro do sistema solar em detrimento à terra é um caso em que usamos a simplicidade como critério para a escolha da teoria. O uso da terra como centro do sistema solar para uma descrição não é errado, é apenas esdrúxulo. Qualquer observação que pode ser descrita com o sol no centro do sistema solar pode ser descrita com a terra como centro do sistema solar. Entretanto, caso usássemos o planeta terra como o centro do nosso sistema, teríamos que incorporar tanto o movimento do giro que a terra faz ao redor do sol como o movimento de giro que a terra faz ao redor de si mesma na descrição dos movimentos de cada planeta!!!! É como gravar um vídeo de mim mesmo pulando a uma certa distância, posso (com a ajuda de um software como o After Effects) deixar a ponta do meu nariz fixa, mas para isto eu preciso incorporar o movimento do meu pulo a todo o cenário ao meu redor. Podemos descrever o movimento dos astros centralizando o sistema a partir da ponta do meu nariz (faz tanto sentido quanto descrevê-los tendo a terra como centro). Entretanto nem sempre a teoria mais simples será a mais pertinente.

SIMPLICIDADE NÃO É SUFICIENTE PARA DECIDIR POR UMA TEORIA

A teoria da gravidade proíbe e ao proibir ela se torna falseável. A teoria da gravidade proíbe que um planeta ande em zigue-zague. Se porventura aparecer um planeta se movimentando de tal maneira procuraremos uma explicação que faça com que a teoria não se aplique àquele caso (quem sabe é uma nave espacial de alguma raça extra terrestre). Caso seja descartado que aquele é um movimento é uma exceção, então aquele caso vai falsear a teoria. Quanto mais uma teoria proíbe, mais ela tem poder explicativo e mais oportunidades ela tem de ser falseada. A teoria da gravidade pode ser falseada com observações do nosso sistema solar, mas também através de observações em qualquer galáxia! Mas o falsificacionismo é tema para um ensaio futuro, expliquei ele brevemente apenas para mostrar que a simplicidade é insuficiente para decidir por uma teoria, embora seja uma boa evidência em favor dela.

NAVALHA DE OCKHAM

Tal critério, essencial para a minha filosofia, foi elaborado por Guilherme de Ockham. Entre duas explicações ADEQUADAS para um conjunto de fatos, devemos escolher a mais simples, sendo ‘simples’ entendido como o que contiver o menor número possível de variáveis e hipóteses com relações lógicas entre si. Mas o critério da simplicidade ajuda a decidir entre as teorias disponíveis. Como decidir que uma teoria é perfeita, que ela REALMENTE corresponde à realidade?

VERDADE METAFÍSICA É IMPOSSÍVEL, SEMPRE É POSSÍVEL APRIMORAR O CONHECIMENTO

Defendo ao longo da série ‘O Todo Incognoscível’ uma perspectiva cética. Isto é, defendo que é impossível alcançar uma correspondência perfeita entre um conceito, uma elaboração, uma ideia ou uma teoria e aquilo a que se refere. Este ceticismo para algumas pessoas parece desestimulante, por que investigar se é impossível alcançar a Verdade? Para mim é o contrário, é estimulante pois sempre podemos aperfeiçoar nossos conhecimentos. Além disso, ao perceber como o conhecimento se constrói é possível evitar alguns erros triviais, tais como confundir uma definição com uma verdade metafísica, mas isto está além do escopo deste ensaio.

CONCLUSÃO

A simplicidade dificulta o erro, seja em uma máquina, seja em uma teoria. Uma máquina (ou um mecanismo ou uma ação) pode ter seu sucesso medido positivamente. Se testei um avião e ele voou sei que a máquina funcionou. Mas o sucesso positivo não garante uma teoria. Se eu elaborar a teoria de que aquele avião sempre vai voar, o sucesso dele ter voado no dia anterior não garante que ele vai voar amanhã (vai que o motor quebrou). Independentemente de quantas observações que a “confirmem” tenham sido feitas, é impossível garantir a validade de uma teoria. Entretanto, entre diversas teorias adequadas, a simplicidade é um bom critério para decidirmos por uma delas.