Naruto e a escrita da História

Apresentar o mangá Naruto ao leitor é chover no molhado. A obra de Masashi Kishimoto se tornou uma das “Três Grandes Obras” da Weekly Shonen Jump. Nela, nós acompanhamos a trajetória de Naruto Uzumaki, jovem que deseja se tornar o Hokage de sua vila, e assim conseguir o respeito de todos. Conhecemos a história do seu mundo através da narrativa, e se nós quiséssemos escrever sua através do método científico?

Antes seria necessário historicizar e entender qual a sociedade em que nós vamos trabalhar. Quanto maior a esfera temporal e espacial da pesquisa, mais tempo e fontes históricas teremos que catalogar e analisar. Então vamos focar no Período das Vilas Ocultas, na Nação do Fogo, em Konohagakure — tratada a partir de agora como Vila Oculta da Folha ou apenas Folha para os íntimos.

A Vila Oculta da Folha é uma sociedade extremamente militarizada. O modelo político se assemelha ao Japão Feudal anterior a Era Meiji. Existem cinco grandes potências no mundo de Naruto: Nação da Água, Nação do Fogo, Nação da Terra, Nação do Trovão, Nação do Vento. Todas em constante conflitos. Cada uma dessas nações tem um ele é o Chefe de Estado, o seu Daimio, que fica numa cidade específica.

O Chefe de Estado concentra o poder simbólico e representa a Nação, cuida de acordos diplomáticos, legítima a soberania do país etc. O Chefe de Governo é o Kage da vila oculta, título conferido ao líder político e militar, usando como prefixo o país ao qual é filiado. Cuida das questões militares, jurídicas, executivas, ou seja, de todas as políticas públicas internos à pátria.

Assim como no mundo real, muitos dos acervos do Estado e particulares não serão de fácil acesso. Mas isso não impede a escrita da História. Hoje existe uma gama de novos objetos, temas e abordagens que possibilitam escrever sobre o processo histórico em variadas condições. O acesso a acervos pode limitar a escrita em alguns aspectos, mas de modo algum impede a feitura de pesquisas várias. Sabendo disso, segue as possibilidades:

Biografia. Não em seu sentido atomizado, naturalizador da trajetória do sujeito histórico ou criando predestinados, mas o método biográfico é uma das abordagens possíveis. O atual conceito de biografia está mais amplo. O indivíduo não está mais deslocado da sociedade a que pertence. Estuda-se não apenas os seus feitos, sua formação, mas também sua sensibilidade, seu imaginário, costumes, crenças e suas contradições, enfim, novas possibilidades de escrita. Enfatiza-se a relação entre indivíduo e sociedade, indivíduo e natureza, indivíduo e mundo. Muitos personagens de Naruto merecem uma biografia, mas um deles em especial, um personagem que aparece em um episódio filler do anime, Kosuke Maruboshi “o Eterno Genin”. Kosuke é um ninja com mais de 50 anos, e foi discípulo do Segundo Hokage Tobirama Senju. O fato curioso é que apesar de sua idade, ele ainda é um ninja de formação básica. Um sujeito histórico que merece uma bela biografia.

Etno-História. Em diálogo com a Etnologia, busca escrever uma “História Antropológica” (BURKE, 1992, p. 99). A Etnologia, como preferem os franceses, ou Antropologia, como define o mundo de língua inglesa, foi criada para escrever a história dos povos iletrados, ou ágrafos. Em dias atuais, o objeto de estudo da ciência se modificou um pouco e passou a estudar a relação do homem em um grupo social, baseado na experiência do sujeito de conhecimento, nesse caso o antropólogo. Gestos, hábitos, ritos, costumes, signos, linguagens, representações culturais, dieta, práticas religiosas e de poder, todas essas e muitas outras questões são compreendidas na análise antropológica. O historiador que desejasse trilhar esse tipo de pesquisa teria que se incluir em um grupo social. Nesse caso, os casos de estudos mais adequados seriam os clãs ninjas. Cada clã tem sua trajetória social e histórica, seus próprios ritos e relações socioculturais, como o Clã Aburame que se relaciona com insetos há nível simbiótico, e o Clã Hyuuga, hierarquizado em Família Principal e Secundária. Um pouco mais difícil de escrever devido a manutenção de práticas de sigilo dentro dos clãs ninjas.

História Econômica. As relações socioeconômicas são um dos temas mais estudados na História e nas ciências humanas. O marxismo se utiliza largamente dessa abordagem para criticar o capitalismo e compreender as lutas de classe (HARVEY, 2018). Esse tipo de historiografia se baseia na análise da produção econômica de um país, dos preços, o valor e o antivalor, o crédito, a emissão de moeda, os salários, o Produto Interno Bruto (PIB) e outras questões. Existe forte diálogo com a Economia. Pode incorporar métodos estruturalistas, quantitativos e seriais. A economia nas vilas ocultas, incluindo a Folha, é muito particular. Não temos dados oficiais, mas, os ninjas compõem grande parte do PIB. Eles realizam a segurança pública, são integrantes das Forças Armadas e dos serviços secretos, como a ANBU. E não apenas isso, eles trabalham realizando várias missões, que podem ser vistos aqui como produção de bens e serviços. Existem ninjas que atuam como professores — tipo o Iruka —, ninjas que pintam que prestam serviços, produzem tecnologias, trabalham na comunicação etc.

História da Educação. As artes e técnicas ninjas, suas instituições educacionais, suas metodologias de ensino, a formação de currículo são importantes características sócio-históricas. As matérias são divididas em Jutsus, do japonês, “técnica”, “arte”, “habilidade” ou “magia”. Denominaremos aqui como habilidades e competências (BNCC, 2017). Em Naruto, a escola é de cunho militar e profissionalizante, visto que muitos dos alunos estudam para ser genins, o primeiro grau de formação da Escola Ninja da Vila da Folha. Os outros são Chunin, graduados após vários testes de habilidades e competências realizados no Exame Chunin, e por fim Jonin. Existem categorias de Jonin e Chunin Especiais, um tipo de ninja especialista em alguma habilidade e competência.

História e Fotografia. Em Naruto já existe a técnica fotográfica, embora analógica. A foto é tanto um produto artístico, como documental e memorial. A fotografia seleciona uma parte da realidade histórica e a reproduz em 2D. A bidimensionalidade dos objetos permitiram a sua reprodução em escala industrial e automática. A própria técnica fotográfica nasce num período de industrialização, e acompanha as tendências de produção massiva e rápida (BORGES, 2008). Através das fotos é possível empreender análise tanto quantitativas — como os álbuns e séries fotográficas — e qualitativa — quando se busca analisar foto à foto. Essas imagens são registros, ao mesmo tempo em que representam seres e objetos. É possível identificar na linguagem fotográfica uma cadeia de signos, valores, sensibilidades e hierarquias cristalizadas em imagens.

História e Literatura. Não possuímos conhecimento da produção literária da Vila Oculta da Folha. Se utilizarmos o conceito de Literatura em modo amplo, podemos enquadrar dois livros nessa análise. O livro em questão é até famoso entre os fãs de Naruto, pois é lido constantemente pelo jonin Kakashi Hatake, Icha Icha Paradise – Jardim dos Amassos. A obra foi escrita por um dos Três lendários Ninjas da Folha, o Jiraya, com pseudônimo, é claro. De teor autobiográfico, narra histórias eróticas. Outro livro comum a obra é o Bingo Book. O tomo é produzido pelas vilas ocultas e registram os ninjas desertores e suas respectivas recompensas. As recompensas vão em ordem alfabética decrescente de D, C, B, A, S, SS. Menor taxa de perigo em D e maior em SS. Nesse livro é possível ver traços biográficos de alguns sujeitos e pistas de conflitos sócio-históricos do mundo ninja. História e Literatura engloba não apenas o estudo do livro, mas sua recepção, a crítica literária, os círculos artístico-literários, a produção, circulação, formatos e linguagem etc. (CHARTIER, 2002).

História e Memória. A memória não é só uma função cognitiva ou biopsíquica. Ela também é um resultado do processo histórico. Existem várias definições de memórias, ou melhor, tipos: memória individual, memória coletiva, memória social, memória histórica e até memória genética. O que nos importa dizer é que se trata de uma importante fonte. Seja ela oral ou escrita, é uma das possíveis formas de registro histórico (LE GOFF, 2003). O melhor exemplo do uso social e político da memória na Folha é o Memorial Hokage. O monumento é inspirado diretamente no Monte Rushmore, localizado em Dakota do Sul, EUA. Nele, quatro cabeças de presidentes da República estão esculpidas, da esquerda para a direita, estão: George Washington, primeiro presidente dos EUA; Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln, conhecido por abolir a escravidão. No caso do Memorial Hokage, são representados atualmente o rosto dos sete Hokage da Folha: Primeiro Hokage Hashirama Senju, cofundador da Aldeia Oculta da Folha; Segundo Hokage Tobirama Senju, irmão mais novo de Hashirama; Terceiro Hokage Hiruzen Sarutobi; Quarto Hokage Minato Namikaze; Quinto Hokage Tsunade Senju, neta de Hashirama; Sexto Hokage Kakashi Hatake, mestre de Naruto; e por fim, Sétimo Hokage Naruto Uzumaki, filho de Minato Namikaze. O monumento é marco da história e da temporalidade da Folha, celebra suas glórias militares e seus heróis nacionais. Isso fixa valores e sentidos no inconsciente coletivo e para as futuras gerações, sintetizada na frase “a vontade de fogo”. Logo aqui vemos uma continuidade do mesmo grupo político-militar no poder, preservando a ordem e as suas instituições. Outra forma de estudo da memória seria escrevê-la partindo de veteranos de guerra. Quanto conhecimento histórico acumulado ninjas como Orochimaru não possuem?

História Política. Evitemos a sua abordagem exclusivamente biográfica, cronológico e elitista. Utilizemos a Nova História Política (NHP). Ela busca compreender a formação dos partidos políticos — no caso de Naruto, facções, organizações e forças militares do mundo ninja —, a opinião pública, a simbologia política, a linguagem, a microfísica do poder, a guerra, a influência da mídia e dos intelectuais (REMOND, 2003). A Folha participou de várias guerras, sofreu invasão de fronteiras, realizou acordos diplomáticos e militares com outras vilas, vários eventos que nos apontam para as relações conflituosas desse mundo belicoso. A simbologia política também é uma ótima fonte. Todos os ninjas possuem a insígnia de sua vila nas bandanas e coletes, e quando desertam, tem sua bandana riscada, mostrando sua desvinculação social e ideológica com a vila. Mas que um ato simbólico, é abrir as portas à marginalização do indivíduo.

Trouxe as abordagens que nos foi possível estabelecer com os dados e elementos que puderam ser analisados ou relembrados. Existem muitas outras possibilidades. E então, leitor ou leitora, você conseguiria dizer quais outras formas de escrever a história do mundo de Naruto? Deixe nos comentários.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Versão Final. Brasília: MEC, 2017.

BORGES, Maria Eliza Linhares. História & fotografia. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

BURKE, Peter. A Escola dos Annales 1929-1989: A revolução francesa da historiografia. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1992.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. 2 ed. Portugal: DIFEL – Difusão Editorial, 2002.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 5 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.

HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.

REMOND, René (org). Por uma História Política. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

Caliel Alves
Enviado por Caliel Alves em 15/03/2021
Código do texto: T7207255
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