O hábito do pensamento
NARRATIVAS CONCORRENTES
Você já passou por uma conversa acalorada em que você apresenta uma narrativa e a pessoa com a quem você está conversando discorda de você apresentando uma narrativa alternativa? Daí você repete a sua narrativa e a pessoa repete a narrativa dela? Dependendo do envolvimento no tema este ciclo pode se dar - com apenas pequenas alterações na maneira com que cada narrativa está sendo contada - diversas vezes. Gosto muito de expor meus argumentos (tanto que escrevo todo dia) e gosto muito de ouvir críticas a respeito deles, portanto é frequente eu me encontrar nesta situação em que eu defendo uma narrativa, meu interlocutor apresenta outra incompatível com a minha e ambas ficam disputando legitimidade.
DEBATES APAIXONADOS
Tais debates só tenho com pessoas muito queridas, quando porventura os tenho com alguém sem muita intimidade é comum a pessoa ficar extremamente violenta. Alguns exemplos dos últimos debates em que a situação das narrativas concorrentes com o Renato foram: ética kantiana x ética utilitarista, mercado altamente regulamentado x mercado pouquíssimo regulamentado. Com o Antônio algumas situações em que as narrativas concorrentes acontecem: matemática com existência objetiva x matemática inventada, economia marxista x economia livre mercado. Mas, sem dúvida, o momento em que mais vivi isto foi com uma ex namorada, em relação à nossa vida conjugal eu apresentava uma narrativa e ela apresentava outra, diversas e diversas vezes ficávamos nos repetindo… Por quê???
COMPUTAÇÃO x ECONOMIA
O Antônio trabalhou muito com computadores e se interessou por eles. De maneira que eu o chamo quando me encontro com algum problema. Por que determinado programa, que deveria estar funcionando, não está? Vem Antônio! Eu sei que se eu me dedicar eu consigo resolver aqueles problemas sozinho, mas me parece uma dor de cabeça muito grande. De maneira análoga algumas questões que me parecem simples para ele é difícil entender. Foi o caso quando ele atribui a inflação ao aumento dos preços de petróleo, desta maneira lhe parece justificável a Petrobrás (uma empresa pública) segurar os preços dos combustíveis para conter a inflação. Esclareci a ele que a causa da inflação não é o aumento do preço do petróleo, mas a desvalorização do preço do real. Quando o real vale menos tudo o que é negociado no exterior tende a se tornar mais caro. Ou seja, o aumento do preço do petróleo não é a causa da inflação, mas já é a inflação causada pela desvalorização do real - como este ensaio não é de economia não vou entrar em detalhes. O ponto aqui é: por que tenho facilidade em entender economia e o Antônio tem facilidade em entender computação? Por que eu tenho uma narrativa para a relação pela qual passei e minha ex tinha outra narrativa? Por que os debates se dão através da apresentação de narrativas concorrentes e incompatíveis?
CHARLES DUHIGG e DANIEL KAHNEMAN
Creio que Charles Duhigg não tinha esta intenção e nem se deu conta, mas no livro ‘O poder do hábito’ ele revoluciona o sentido de ‘hábito’. Ele define como hábito tudo aquilo que conseguimos fazer sem esforço, tudo aquilo que é automatizado. Curiosamente, estes são os as mesmas características que Daniel Kahneman atribui ao sistema um (o sistema intuitivo). Duhigg fala de hábitos, Kahneman de pensamento. Neste ensaio persebo que uma situação que me intriga pode ser explicada recorrendo a estes dois autores. Mas antes, uma pequena digressão, como se dá o debate de narrativas alternativas?
A MANEIRA RACIONAL DE BUSCAR UMA EXPLICAÇÃO
Em um debate entre duas narrativas alternativas, a maneira racional de escolher por uma delas (ou por rejeitar ambas) é buscar os pontos em que as pessoas na conversa aceitam como verdadeiras (premissas). Depois buscar a coerência interna em uma narrativa, será que as conclusões se seguem das premissas ou será que há algum equívoco? Se ambas as narrativas forem internamente consistentes e coerentes com as premissas, então devemos ver se ambas as narrativas são coerentes entre si. Se forem elas não são narrativas concorrentes, mas complementares. É claro que a uma conversa nunca se dá desta maneira (nem defendo que se dê nesta ordem). Às vezes um interlocutor consegue pensar em uma hipótese que sua, para ele, sua teoria deveria contemplar, então o debate pode se dar em relação a um ângulo completamente diferente daquele original. O que quero dizer é que em uma conversa racional a disputa se dá em relação às premissas e às relações de causa e consequência. E percebo que raramente as conversas se dão deste modo, então como se dão?
NARRATIVA ALTERNATIVA OFENSIVA
Por experiência, persebo que é frequente a conversa se dar do seguinte modo: apresento uma narrativa e a pessoa com quem converso, diz, “não, é de outro jeito” daí ela apresenta a narrativa dela. Ela não se preocupa em mostrar em que aspecto a minha narrativa está falha. Seria uma premissa incorreta? Seria uma relação de causa/consequência incorreta? Tenho certeza que já fiz isto diversas vezes. Às vezes nem me dei ao trabalho de considerar a narrativa alternativa. Outras vezes (dependendo do quanto eu estava afeiçoado à uma narrativa alternativa) a considerar me despertou um sentimento de ojeriza, algo quase como um nojo que me deu uma preguiça de considerar aquela hipótese com o devido cuidado. O momento que lembro com mais clareza de ter este sentimento foi quando uma superior (quando eu ainda fazia estágio) falou a respeito do neoliberalismo. Eu reagi com raiva… Curiosamente atualmente defendo algo que seria muito mais liberal do que a visão que ela me apresentou à época. O importante é: por que não analisei o mérito daqueles argumentos? Começo a responder esta pergunta usando o conceito de hábito do Charles Duhigg.
HÁBITO
Antes de ler Duhigg eu pensava em hábito como aquelas práticas comuns. Então acordo todo dia entre cinco e meia e seis meia e vou escrever, este é meu hábito. Como banana amassada com canela, aveia e sal: hábito. Vou para o trabalho a pé: hábito. Duhigg, entretanto, define hábito de maneira bem diferente, é quilo que fazemos sem esforço, que é automatizado. Assim andar é um hábito (não caminha em determinado horário, mas a capacidade de andar). Você digita sem olhar o teclado? Então é um hábito digitar. Eu dirijo esporadicamente (menos de uma vez por semana). Não tem regra para a situação em que vou dirigir, mas para o Duhigg dirigir é um hábito, pois dirijo sem esforço. O hábito consiste em passar as marchas, olhar o retrovisor, dar seta, fazer controle de embreagem, tudo isto sem pensar. Eu dirijo com a mesma facilidade com que ando ou com que leio. Não preciso me concentrar em cada letra quando eu leio. Formar palavras é um hábito tão forte que seria muito difícil eu ver algo escrito como “chiclete” e evitar associar com o significado ao qual ela se refere. Eu não conseguiria ver apenas “chiclete” e ver apenas um amontoado de letras, o hábito é tão forte que penso logo em “goma de mascar”. Defendo que é este o mecanismo que explica por que o debate se dá como um diálogo de surdos, cada um apresenta sua narrativa sem conseguir de fato entrar no mérito da alternativa concorrente: hábito. Podemos pensar em uma narrativa como um sistema de irrigação.
SISTEMA DE IRRIGAÇÃO