O PARTO DE DEUS: O DESEJO DO OUTRO EM JACOB BOEHME

por: Chrystian Revelles (VERSELEL)*

A ideia de incompletude do Si-mesmo - e de seu necessário espelhamento numa alteridade para sua plena Realização -, encontrou eco nas vozes de algumas das grandes mentes do séc. XXI. Em Heidegger, somos projeto em aberto para o possível; em Husserl, a consciência não é um Algo, mas uma Consciência-de-algo; em Buber, dá-se a transcendência quando o Eu se dirige a um Tu; em Sartre, ser é ser-para; em Lacan, é Desejo do Outro. Os ramos desta frútifera (e boa à vista) Árvore do Conhecimento devem sua existência a Hegel, o Filósofo do Desdobramento, para quem a Realidade não era algo fixo, dado, e nem algo evanescente, volátil, mas um processo de vir-a-ser. Em outras palavras, o Ser hegeliano é a Superação de uma Contradição, um gradativo irrompimento em Devir. Poucos conhecem, contudo, a Fonte de que bebeu nosso Filósofo do Absoluto. Nas suas Conferências sobre a História da Filosofia[1], conjunto de palestras anotadas por seus estudantes, chama atenção a reverência com que se detém sobre uma figura obscura para a grande massa, mas ilustre entre entre círculos inusitados, apreciada por maçons, teósofos, rosacruzes e martinistas. Jacob Boehme, o Sapateiro de Görlitz, foi um homem humilde e simples, que fez o bem sem fazer barulho, e deixou atrás de si uma vasta obra de teor jamais conhecido na História do Pensamento Ocidental - uma Teofania de profundidades abissais, não à toa levando Hegel a dar-lhe a alcunha de Primeiro Filósofo Alemão e theosophus teutonicus. Boehme, diz-nos Hegel, ocupou-se de Deus enquanto Ser-para-Si, mistério abissal que Meister Eckhart conceituaria como Deidade, para distingui-lo da Divindade Manifesta em seus atributos. Mais que isso, melhor descreveríamos a epifania de Boehme como uma Teogonia, pois que fala justamente desta passagem do Nada ao Ser: neste nada abissal anterior à toda natureza e criatura, a Vontade procura por Algo, mas, não tendo onde repousar, penetra a si mesma para descobrir-se na Natureza[2]. Se Deus é, em si mesmo, um vasto nada, a Natureza é o espelho em que se vê sua glória manifestada[3]. Nas palavras do místico: ‘‘Entendemos que, sem a Natureza, há eterna quietude e repouso, o Nada; entendemos então que uma Vontade Eterna irrompe no Nada e introduz esse Nada em um Algo pelo qual essa Vontade mesma possa sentir-se e se contemplar. Pois no Nada essa Vontade não se manifestaria para si mesma, porquanto sabemos que a Vontade procura a si mesma e se encontra em si mesma, e seu procurar é um Desejo, e esse encontrar é a Essência do Desejo pelo qual a Vontade se encontra’’: (Jacob Boehme - Assinatura das Coisas cap.2, v.8-9 - tradução inédita nossa). Em suma, Boehme inaugura uma Mística Dialógica, em que o 1ª Princípio (Deus-em-si, puro Sujeito), profere a Palavra (2º Princípio, Verbo) por intermédio do qual se vê na Natureza (3º Princípio, como Objeto), para que assim se predique a Oração da Criação - esplendor visível de uma Luz Invisível.

[1] Hegel’s Lectures on the History of Philosophy - Section One: Modern Philosophy in its First Statement: B. JACOB BOEHME. (disponível em: https://www.marxists.org/reference/archive/hegel/works/hp/hpboehme.htm)

[2] The Signature of All Things 3:2

[3] Glossário Jakob Böhme (disponível em: https://fraternidademartinista.files.wordpress.com/2019/12/glossario.pdf)

*Ordem Martinista Ramo Brasileiro