A Psicologia Pré-Científica ou Filosófica.
Universidade de Pernambuco. UPE.
Cadeira de História da Psicologia.
Raul Magalhães Brasil.
Resumo.
Se fôssemos delimitar o desenvolvimento das ciências humanas e naturais através de um gráfico que começa em determinado ponto e se ramifica, estaríamos montado a figura de uma árvore. O tronco dessa árvore do conhecimento seria, sem dúvidas, a filosofia. A filosofia é uma disciplina heterogênea que abarca em si todo o tipo de conhecimento, desde a arte poética até o cálculo matemático e a física. Podemos perceber o envolvimento da mãe-filosofia em todas as ciências da humanidade, e com a psicologia não seria diferente: antes de ser reconhecida como ciência, a psicologia estava atrelada ao tronco da filosofia, era uma prima íntima da metafísica e da epistemologia antes de sua emancipação. A todo o período em que a psicologia não era “canonizada” como ciência, damos o nome de “Psicologia Pré-Científica ou Filosófica”. Nesse ensaio abordaremos três períodos da psicologia pré-científica ou filosófica: O Período Cosmológico, o Período Antropocêntrico e o Período Teológico, procurando traçar de maneira breve o pensamento dominante em cada um desses períodos e apontando sua importância para o desenvolvimento da psicologia e das ciências.
I. O Período Cosmológico.
O Período Cosmológico tem seu início na Grécia Antiga, conhecida como o berço da civilização ocidental pelo seu grande desenvolvimento cultural. Pode-se dizer que foi Tales de Mileto o primeiro pensador do período cosmológico, também conhecido como o primeiro filósofo do ocidente. Tales era matemático, teve influência da cultura egípcia, e dedicou parte de sua filosofia a encontrar o princípio fundador de todas as coisas, a Arché. Ao observar a maneira com a qual a vida se desenvolvia no Rio Nilo nas épocas de cheia, o filósofo de Mileto concluiu que era a água a Arché que procurava. Por ser o elemento encontrado na maioria dos componentes dos reinos mineral, vegetal e animal, e responsável por nutrir todos os seres vivos, tornou-se mais do que evidente para Tales que a água seria o princípio fundador de todas as coisas.
Há uma virada com Tales no período cosmológico, isso pois, se antes buscava-se as explicações para as verdades universais através dos mitos, agora havia uma busca mais científica e racional para os princípios e o funcionamento do cosmos, essa tendência manteve-se durante todo o período cosmológico, que posteriormente passou a se chamar “período pré-socrático” na filosofia.
Ao contrário de Tales, Heráclito de Éfeso não conseguia ver um princípio fundador, que se mantivesse constante, eterno e imutável na natureza, tudo o que ele observada era um processo constante de mudança. A natureza, para Heráclito, é composta de um eterno mudar, de opostos que se constroem e se destroem, o vir-a-ser constante, que Heráclito chamava de “Devir” parecia ser o princípio dos processos do cosmos, sua Arché.
Pitágoras de Samos atribuiu ao número esse princípio imutável e constituinte da natureza. Para Pitágoras e para os pitagóricos, os números eram entes ontológicos básicos, e tudo era constituído por número, tudo poderia ser quantificado, medido e submetido à razão. Os conceitos matemáticos, apreendidos a priori sem intermédio dos sentidos, pareciam ir além da natureza física das coisas, se havia uma linguagem numérica para tudo, se a emoção que a música transmite pode ser entendida pela matemática do seu ritmo, parecia ser evidente para esses filósofos a preponderância e onipresença dos entes numéricos sobre os fenômenos da natureza.
Alguns dos filósofos do período cosmológico percebiam a problemática de reduzir toda a natureza a um único elemento enquanto princípio fundamental, foi assim para Anaxágoras de Clazômenas, que chamou ao princípio fundamental do cosmos de “homeomerias”, que seriam as sementes que dão origem à realidade e a pluralidade das manifestações da natureza. As homeomerias estariam contidas em uma massa primordial, que deu origem a todas as coisas mas que, no entanto, foi ordenada e organizada por uma razão divina e superior, chamada de Nous. Podemos encontrar a influência de Anaxágoras numa diversidade de filósofos, de Demócrito a Leibniz encontramos a ideia de uma razão que ordena a matéria.
É curioso pensar que Demócrito de Abdera é considerado um pré-socrático, isso porque Demócrito foi contemporâneo a Platão, ou seja, posterior a Sócrates. Essa delimitação se dá em detrimento dos distintos objetos de estudo dos filósofos, Demócrito preocupava-se com a Arché e a fundamentação do cosmos e da realidade, Sócrates e Platão preocupavam-se com o homem, a política e aquilo o que era possível ou não ser conhecido.
Demócrito concebeu a sua Arché através de um processo lógico, ele percebeu que a matéria poderia se dividir em tamanhos cada vez menores, no entanto, concluiu que se a natureza teve um início, suas partes constituintes não poderiam ser indivisíveis. Portanto, deveria haver na natureza das coisas uma parte indivisível e material, que as constituem, esse ente indivisível foi chamado de “átomo” e se tornou um conceito fundamental para as ciências físico-químicas.
II. O Período Antropocêntrico.
Paralelamente aos filósofos-cosmólogos anteriormente citados, desenvolveram-se na Grécia filósofos que voltavam sua preocupação a um aspecto diferente de perguntas e questionamentos: Preocupados com a sociedade, a verdade, as virtudes e a cidadania, os sofistas podem ser apontados como os precursores do período antropocêntrico do conhecimento, tirando de foco o cosmos e colocando o escopo de suas interrogações nos seres-humanos. Alguns sofistas de destaque foram Hípias, Górgias e Protágoras, cujas ideias foram muito discutidas ao longo dos diálogos socráticos de Platão.
No entanto, a verdadeira revolução que dá início ao período antropocêntrico do conhecimento se dá com Sócrates. O ateniense preocupava-se com a educação da juventude, questionava os políticos e os sofistas, apontava que o conhecimento obtido através dos sentidos era parcial, incompleto e imperfeito. Priorizava um conhecimento sobre todos os outros: o conhecimento de si, e daí vem sua máxima “conhece-te a ti mesmo”. Sua filosofia partia de uma única certeza: a de que não há certeza alguma, inaugura uma filosofia construída sob a virtude da humildade ao ser apontado como o homem mais sábio de Atenas pelo oráculo de Delfos e, ao mesmo tempo afirmar: “só sei que nada sei”.
Sócrates foi um filósofo bastante influente, permanecendo importante durante diversas gerações na filosofia. Com seu discípulo, Platão, não foi diferente. Platão era matemático, filósofo, astrônomo, político e atleta, o polímata foi o principal discípulo de Sócrates e o responsável por eternizar sua memória através de seus diálogos socráticos, onde expunha suas idéias através da fala de sócrates e outros pensadores de sua época. Diversos dos seus livros são importantes até os dias de hoje, entre os quais se destacam A República, onde ele discorre sobre política, e o modelo ideal de governar a polis e onde expõe o seu famoso mito da caverna, Apologia de Sócrates, onde expõe o julgamento e os pensamentos de seu mestre, que preferiu morrer a renunciar às próprias ideias, O Banquete, onde discorre sobre o amor e por fim, o Timeu, onde discorre sobre a natureza do mundo físico e a natureza do mundo eterno(ou das ideias). Platão foi um dos mais importantes pensadores da Metafísica, desenvolveu o conceito de Devir e de Dialética de Heráclito, desenvolveu a matemática, a geometria, fundou a Academia e se consagrou como um dos maiores filósofos da história do ocidente.
Aristóteles foi um discípulo dissidente de Platão, enquanto o ateniense afirmava que o mundo físico, das mudanças, não tinha nenhuma importância diante do mundo eterno das ideias, Aristóteles afirmava o contrário. Para o macedônio, Platão focava em conceitos demasiado abstratos, que muitas vezes não condizem com a realidade dos fatos, muito da filosofia se perde ao pensar nos universais em detrimento dos particulares. Aristóteles foca nesse aspecto, ele discorda da teoria do mundo das ideias e lança vista ao mundo físico, fazendo investigações minuciosas sobre a natureza das coisas, e sobre a particularidade do comportamento e do conhecimento humano. O macedônio teve uma obra muito extensa, dentre as quais destacam-se seu Ética a Nicômano, considerado por muitos o mais importante de seus livros, ao lado de A Política e do Órganon, livro que trata sobre os processos lógicos e epistemológicos do conhecimento. Destacam-se também o Física, o Metafísica, A Poética e o De Anima, livro onde discute as particularidades da alma, e os processos da mente e da consciência humana.
Sócrates, Platão e Aristóteles são conhecidos como os filósofos clássicos, e tidos por muitos como o trio mais influente de pensadores de todo o ocidente.
III. O Período Teológico.
Na Roma Antiga, a filosofia grega era exaustivamente estudada e apreciada, os romanos consideravam-se os descendentes diretos dos gregos. Se a Grécia foi o berço da civilização, Roma foi sua cama. No entanto, a filosofia antiga entra em declínio com a queda do império romano pelas invasões dos bárbaros e visigodos, e pelas perdas constantes contra os otomanos. É por volta do século V que entra em declínio o período antigo e tem-se início a Idade Média, que duraria por dez séculos, até o século XV. Duas obras que marcaram o início da idade média foram o Consolação da Filosofia, de Boécio e Cidade de Deus de Agostinho, ambos questionaram os antigos valores e virtudes do mundo romano, e para onde deveria se dirigir a contemplação filosófica.
Agostinho de Hipona pode ser considerado o primeiro grande filósofo da idade média. Ele bebe da fonte das filosofias de Platão e Plotino, e tem sua principal referência nas sagradas escrituras cristãs. Agostinho discorre sobre temas como a alma, a santidade, a natureza de Deus, as virtudes, o céu, o pecado e o livre-arbítrio. Ele é o principal pensador do período que ficou conhecido como “Patrística”, que visava retomar o pensamento dos pais fundadores da igreja e rebater os argumentos dos pagãos, ímpios e hereges. As obras mais influentes de Agostinho foram, principalmente o seu Confissões, o Cidade de Deus, o Livre-Arbítrio, o Sobre a Mentira, o De Trinitate, o Contra os Acadêmicos, e outros.
É claro, depois de Agostinho houve uma diversidade de filósofos e pensadores, mas nenhum deles se destacou tanto quanto Tomás de Aquino. Considerado o principal teólogo da igreja católica, Tomás buscou adaptar a filosofia aristotélica à fé cristã, desenvolvendo ainda mais os conceitos do antigo pensador macedônio. É da mão de Tomás que vem a maior e mais influente obra da teologia católica, a Suma Teológica, que totalizam mais de 4mil páginas de uma obra que discorre sobre todos os assuntos que envolvem a natureza divina, munido de um método axiomático-demonstrativo, semelhante ao que Euclides usa em seu Elementos. Tomás é o expoente máximo do período da idade média conhecido como “escolástica”, período onde buscava-se unir a fé e a razão e priorizava-se um método crítico de ensino e aprendizagem da teologia e das escrituras, mais tarde esse método daria origem às escolas e às universidades como as conhecemos hoje.
Muito se diz que a filosofia do período teológico em nada contribuiu para o desenvolvimento das ciências, e que a idade média traduz-se por mil anos de retrocesso e impedimentos científicos, ao menos era isso o que os iluministas buscaram propagar sobre esse período que chamaram de “idade das trevas”. Historiadores, filósofos e teólogos cristãos buscam demonstrar que esse preconceito não procede, e que ainda hoje bebe-se muito da produção referente ao período teológico do conhecimento humano. Mário Ferreira dos Santos, por exemplo, aponta para o desenvolvimento da técnica e da administração do trabalho nos mosteiros, além de atentar para o grande desenvolvimento educacional e pedagógico que houve durante a idade média. Santos demonstra que a filosofia escolástica foi mister para o amadurecimento de toda a filosofia posterior, e que seria praticamente impossível falar de metafísica e ontologia sem ao menos citar o trabalho de Tomás de Aquino e seus discípulos.
Referências.
FREIRE, Izabel R. Raízes da psicologia. Petrópolis: Ed. Vozes, 2014
SANTOS, Mário F. Análise Dialética do Marxismo. São Paulo: Ed. É Realizações, 2018.