DA PRÓXIMA VEZ, PASSO A MÁQUINA ZERO!

No que estou pensando?

Na minha capacidade de desprendimento e adaptação.

Desde criança ouço dizer que os cabelos são a moldura do rosto de uma mulher.

Comecei a ser vitima de preconceito, dentro da Minha Própria Linhagem Sanguínea, por ter cabelos avermelhados e em demasia.

Um dos meus tios, irmão da Minha Mãe, me chamava “Cabelagem de fogo”, outro me apelidou de “Bicho Folharal”.

Um dia, um irmão do meu pai, aproveitou a ausência da Minha Mãe e me “tosquiou”.

O fuá cresceu, novamente, aí foi a febre reumática que o fez cair. Mas, ele sempre foi muito forte, “brotou” outra vez, em maior quantidade e mais crespo, apenas o tom foi escurecendo.

Quando fui interna no orfanato, pelaram minha cabeça, me deixaram parecendo um menino. Os apelidos choviam igual canivetes: “cabeça de pirulito”, “cabeça de nêgo juão”, “cabeça de colôlô” e outros, que hoje seriam pura pornografia.

Cresci e me vi diante de uma tortura: Creme Alisante Guarniere! Aquele negócio lá, é Obra Prima do Satanás. Ficava chateada pois me obrigavam a alisar, hidratar e escovar aquela juba imensa... pra ficar com "boa aparência" e que isso deixava algumas pessoas que diziam gostar de mim, muito satisfeitas.

Comecei a trabalhar e a coisa foi piorando. Primeiro em lugares onde não me adaptei, mas precisava do dinheiro para ajudar nas despesas da família, e isso me fazia engolir sapos e elefantes, mesmo sem ter a CT assinada.

Prestei Concurso Público e fui empossada em um Órgão Público, no ano de 1986. O Setor onde exercia meu trabalho, era como o Cartão Postal da Repartição. A cada três meses me submetia a um verdadeiro ritual para "restaurar a raiz" do cabelo, lavar, secar, escovar e lá estava eu, "outra pessoa". Isso sempre me deixava hinheta!

Aos poucos comecei a "dar uns chutes no balde". Foi quando percebi que, algumas das pessoas que diziam gostar de mim, apenas aceitavam aquele esteriótipo de preta de cabelos logos e sedosos, usando baton, roupas bonitas e salto alto.

Uma ira absurda me fazia sentir a biles borbulhando esôfago acima, deixando um gosto horrivelmente amargo na minha boca.

Aí, rebeldia pura, comecei a não ir à cabeleireira a cada dois meses para “retocar a raiz” do fuá. Percebia os olhares de reprovação, quando não, era a gozação… aqueles ditos sacanas: “cabelo ruim é quem nem bandido, só está bem, quando está preso”… e coisas piores.

Quando estava com pouca disposição de revidar, fazia de conta que nem ouvia, mas nos dias que amanhecia com dois pés esquerdos… vixe, procurava o pior defeito moral d@ safad@ e #tebei… era bem no “pau da venta”, pra deixar @ perfeitinh@ com cara de tacho.

Só de pirraça, continuei desconstruindo aquela imagem de “boa aparência”. Parei de ir à cabeleireira regularmente, para escovar o juba, apenas prendia numa trança ou “rabo de cavalo”. Deixei de usar batom, apesar do que eu usava ser muito discreto. Ai choviam comentários e olhares, narizes e bocas tortos em sinal de desaprovação. Isso me dava uma Alegria Vitoriosa indescritível.

A desconstrução chegou em um nível tão absurdo que, após 25 anos, naquele setor, começaram a me jogar de um setor para o outro, feito bola de ping-pong, com a desculpa de que eu era boa nisso, naquilo e naquilo outro, creio que esperando que eu me rebelasse, por ser tratada com tanto preconceito. Entretanto, quanto mais imaginavam me judiar, mais eu caprichava no “desmanche” do esteriótipo. O que Eu almejava mesmo, do fundo do meu Coração, era me ver Livre daqueles seres obscuros.

Aos poucos comecei a ficar invisível porquanto “el@s” perceberam que, de nada adiantava me estigmatizar, eu continuava sendo EU. A preta responsável, assídua e competente que sempre Sou, mas me fazendo de João-sem-braço, quando as pessoas de “boa aparência” tentavam “montar” nas minhas costas, com agrados de que eu era “isso, aquilo e aquilo outro”. Olhava-as e mentalmente xingava-as, de tudo quanto era &%$@#, até a enésima geração.

Imaginava-as com uma diarreia braba, no meio da rua, sol-a-pino, sem ter para onde correr… e isso me fazia rir um bocado!

Continuei educada, solícita, e bem-humorada, pois essa, Sou Eu.

Certo dia, intui que poderia desconstruir mais. E investi nisso. Comecei adotando uma moda estranha: calça leg escura, sob vestidos de estampa bem colorida. Os pés calçados em meias e sandálias baixíssimas, bandanas, lenços ou boina, na cabeça. Na repartição, por sentir muito frio, ainda usava blusão de capuz e máscara.

Era muito divertido observar o olhar de zombaria de algumas pessoas, na rua, e de desaprovação, no local de trabalho. Aquilo acariciava Minha Alma… só assim eu poderia saber quem me valorizava pelo que Eu Sou, e não pelo que eu aparentava ser.

Até onde conseguimos ir, para termos essa certeza de que podemos, tranquilamente nos desfazer do que perdeu a função? De que somos capazes, sim, de sempre nos adaptar a qualquer situação?

Não sei.

Só sei, que atualmente estou com uma enorme preguiça de lavar, hidratar e pentear esse fuá, grisalho, que ornamenta meu crânio.

Sei, também, que Minha Filha não se incomoda de trançá-lo ou encher de torçais… mas quem lava e desembaraça, sou eu, pois meu couro cabeludo é muito sensível.

Hoje, amanheci desejando sentir a carícia do vento… aí… fui pro ritual.

Da próxima vez, passo a máquina zero!

EU SOU!!!

Adda nari Sussuarana
Enviado por Adda nari Sussuarana em 20/02/2021
Reeditado em 20/02/2021
Código do texto: T7189157
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