Por Uma Contra-História da Psicologia.

Cadeira de História da Psicologia.

Raul Magalhães Brasil.

I. A História é Uma História de Dominação.

Recolocando aquilo o que Hobbes outrora disse: O homem(branco ocidental) é o inimigo do homem(e da mulher) numa luta de alguns contra milhares. Quem escreve a história são esses alguns, os triunfantes, os vencedores, os verdadeiros. É a sua narrativa que importa, é a sua verdade que importa, é a sua dor que importa, é a sua cor que importa. Enquanto os outros milhares são fadados ao esquecimento, à deslegitimação, ao sofrimento psíquico, ao desmonte de si mesmo. Milhares, não. Milhões se tornam uma avassaladora minoria nas mãos de uns poucos, esses, que detém diante de si, as máquinas do extermínio.

Máquinas de escrever são máquinas fascistoides nas mãos desses alguns, que escrevem uma história única, disfarçada de verdadeira, disfarçada de importante, disfarçada de imutável. A história passa a ser, então, mecanismo de opressão, milhões de pessoas não encontram a si mesmos na história, e não encontram a si mesmos em história alguma, em lugar algum. Há uma inevitável escassez de milhões em absolutamente todos os lugares. Negros, mulheres, indígenas... se procurarmos bem quase não os achamos, e quando achamos, vemos apenas construtos, simulacros e visões multiladas, parciais. O negro que muitas vezes vemos é o negro na visão do branco, um negro que foi esbranquiçado, a mulher que muitas vezes vemos é a mulher na visão do homem, o indígena que muitas vezes vemos, é o índio na visão dos colonos(muitas vezes nossa própria visão). Há um processo constante de silenciamento, de mutilação, de obstrução desses espaços. Essa criatura hegemônica, o homem branco ocidental, busca de maneira quase incessante colonizar esses espaços, tirar essas vozes, perpetuar sua hegemonia, aniquilar as diferenças. Há uma busca constante pela massificação, pela branquificação, pela homenização, pela dominação desses espaços, quer-se sempre sujeitá-los, destituí-los, transformá-los, quer-se fragiliza-los para, no fundo, destruí-los.

A história da humanidade é a história da dominação, é a história da opressão do homem contra a mulher, do branco contra o preto, do europeu contra o indígena, contra o mulçumano, contra o judeu. A história, tal qual conhecemos, foi contada, escrita e catalogada por homens brancos e tão somente. Quem dita a história, quem dita todas as histórias, são os vencedores, os dominadores.

Nossa história foi escrita a sangue, sangue de milhões, que lutam para ter uma história própria, que lutam para mostrar que não existe uma história única.

II. Processos de Dominação como Processos de Subjetivação.

É impossível ver-se vítima de um contínuo processo histórico de dominação e sair ileso disso. Visto que esses processos de dominação configuram, por sua vez, certos processos de subjetivação. O racismo/sexismo se torna um órgão cancerígeno no plano de imanência da subjetividade do indivíduo, este, vê-se emaranhado nessas linhas duras, vê-se diante de um horror kafkiano, o preconceito é Pré-Individual e muitas vezes, determinante. O algoz se encontra por toda a parte e permeia a sociedade de maneira quase invisível, o racismo e o sexismo são práticas consentidas pela sociedade e muitas vezes, veladas, das instituições às individuações esses processos se fazem ubíquos e criam agenciamentos diretamente na individualidade. Muito se parece que o negro, o indígena e a mulher carregam em seus rostos e marca de Caim, ser negro é ultrajante, ser índio é injurioso, ser mulher é detestável! Vive-se em uma sociedade que pensa dessa forma, que persegue essas existências, que reprime e silencia essas vozes, que diminui e anula essas dores…

O processo de subjetivação de um homem branco não é e nunca será o mesmo que o de uma mulher preta. A construção da subjetividade desses dois indivíduos se diferencia de maneira abismal.

A mulher, o preto, o indígena são sobreviventes. Vivem num constante processo de luta por si, num constante processo vociferante, de buscar fazer suas vozes serem ouvidas. Numa constante tentativa de dessubjetivação, de uma busca por legitimação, de mostrar que o preconceito e a perseguição que sofrem são tão reais quanto o apoio e os aplausos que recebem os seus perseguidores!

O perseguidor costuma dizer “a escravidão já passou”, “o feminismo não é necessário”, “não pode falar mais nada agora que tudo é racismo”, para cada pessoa que diz isso existem outras milhares que acenam com a cabeça e consetem, quando um perseguidor chega à presidência ele pode falar coisas como “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, como “sou homofóbico sim, com muito orgulho”, pode demonstrar admiração pela alemanha nazista, por torturadores e por eugenistas. A perseguição, como eu disse, é ubíqua, consentida e legitimada, é tão onipresente que parece inexistente, invisível, o mal é banalizado, vivemos diariamente sob um regime de dominação, todo dia nós aceitamos o inaceitável.

O processo de perseguição ou de dominação não se encerra no perseguidor, é tão despotencializante que se estende ao perseguido, quando este se vê no mundo que tenta a todo momento aniquilá-lo e silenciá-lo ele começa a dizer a si mesmo “talvez eu realmente seja o errado, talvez a minha cor, o meu sexo, a minha etnia realmente seja o problema”, muitas vezes ele passa a acreditar nisso e a revolta contra o mundo se torna revolta contra si mesmo, ódio de si, desejo de auto-aniquilação, máquina suicidária. Elimiar o negro de si, eliminar a mulher de si, eliminar o indígena de si, eliminar o lgbtqi em si, raspar a individualidade, o self.

Os processos de dominação são também processs de dominação da subjetividade, de destruição da subjetividade, processos de destruição psíquica, processos de adoecimento.

A vitória é do dominador quando o negro deseja deixar de ser negro.

III. A Psicologia é Masculina, Branca, Hétera e Ocidental.

Se colocarmos lado a lado o cânone da psicologia veremos algo peculiar, que pode muitas vezes passar despercebido. Começando por Alcmeão e Hipócrates, passando por Sócrates, Platão e Aristóteles, por Agostinho, por São Tomás, logo em seguida com Descartes, dialogando com Christian Wolff e depois com Rousseau, Kant e Hegel e então adentrando na psicologia propriamente dita, com Wundt, James, Thorndike, Watson, Skinner, Freud, Heidegger e Maslow o que podemos notar de aspecto comum entre esses indivíduos? A princípio pode-se pensar que todos “foram grandes pensadores”, que todos “foram grandes homens” ou que todos “formam o cânone da psicologia”. O principal aspecto comum entre eles é que são todos homens brancos, héteros e ocidentais. Se buscarmos na história das ciência encontraremos sempre o mesmo rosto, o rosto do homem branco, hétero e ocidental, o rosto massificante da criatura hegemônica. E por quê? Seria isso por acaso? Seria por que o conhecimento greco-norte-europeu é privilegiado? Seria o indivíduo hegemônico(o homem-branco-hétero-ocidental) de um tipo superior?

Para todas as perguntas responde-se: não. Não é por acaso que o cânone das ciências é assim, o conhecimento e o intelecto do indivíduo greco-norte-europeu não é privilegiado, o indivíduo hegemônico não é de um tipo superior. Como antes eu havia dito, a história da humanidade é uma história de dominação, seria diferente com a história das ciências? Não é a história das ciências também uma história de dominação?

Quando a coroa espanhola invade e conquista Al-Andalus(região situada na península ibérica), além de saquear, matar e estuprar os islâmicos e os judeus, os espanhóis também não buscam destruir suas tradições? No processo das cruzadas não há uma tentativa de converter islâmicos e judeus que adoravam “o deus errado”? Não há uma tentativa de destruir suas culturas e impor a cultura cristã? Não há a queima massiva e sistemática das grandes bibliotecas islâmicas e judaicas? O processo de dominação é também um processo de silenciamento, de apagamento. A máquina mais poderosa que a criatura hegemônica detém é a máquina do epistemicídio, a máquina que busca dar fim a toda a cultura, a todo o conhecimento, a toda a espiritualidade de todo o indivíduo heteronômico, de todo indivíduo diferente.

O cânone das ciências se encontra na mão de 5 países, sendo eles Alemanha, Itália, Estados Unidos, França e Inglaterra, e por quê? Porque esses países invadiram, saquearam e destruíram, porque esses países foram os dominadores, os perseguidores, porque buscaram apagar toda a história, toda a cultura e todo o conhecimento que fosse diferente daquele que eles detinham e concordavam. Não é por ser “inferior” e não é que o negro, o índio ou a mulher não produzam conhecimento, mas sim porque todo conhecimento que eles produziram em milênios foi destruido e queimado pela criatura hegemônica em um processo sistemático de dominação que envolve o genocídio e o epistemicídio contra essas pessoas.

Depois de Al-Andalus a coroa espanhola quer estender sua agenda de dominação e explorar a Índia as Américas. O processo de “descobrimento” dessas terras não foi menos violento: por séculos espanhóis (assim como portugueses, holandeses, ingleses e franceses) invadiram, saquearam, estupraram, catequizaram e escravizaram indígenas, maias, astecas, apaches e navajos e nesse processo de dominação se esforçaram ao máximo para apagar e extinguir a memória, a cultura, a religião e o conhecimento desses povos, queimando os códex que continham o conhecimento que esses povos buscaram manter por gerações.

Mulheres que continham conhecimentos e buscavam transmiti-los eram queimadas vivas! Acusadas de bruxaria! E, quando não queimadas, fadadas ao esquecimento, ao desmerecimento e à marginalização. Esses processos de genocídio seguidos de epistemicídio se estenderam por séculos e existem até os dias de hoje, a cultura dessas pessoas foi afetada e destruida para que a cultura do homem-branco-hétero-ocidetal, da criatura dominante permanecesse único, e se canonizasse como o melhor de todos os conhecimentos, como o único conhecimento possível, como a história única.

IV. Por Uma Contra-História da Psicologia.

O fato de o cânone da psicologia ter sido erguido por homens brancos pode implicar em algo perigoso e o fato de que o racismo e o sexismo estão tão presentes e marcam tanto os processos de subjetivação de quem os sofre quer dizer algo. A princípio, esses dois fatos parecem não ser correlatos, mas eles se cruzam em um ponto notável. A psicologia não consegue dar conta da marca de Caim, uma psicologia masculina, branca, hétera e ocidental não consegue dar conta do sofrimento interno de um indivíduo que sofre a todo momento com o preconceito, com a perseguição, com o silenciamento. A psicologia é uma prática burguesa, uma ciência burguesa, uma ciência da criatura hegemônica e ela se perde quando adentra nesses devires-menores, quando conhece o perseguido, o dominado. Uma psicologia que dê conta de tais subjetividades ainda está em desenvolvimento.

Faz-se necessário buscar a contra-história da psicologia, buscar os pensadores e pensadoras negros e indígenas, os psicólogos e psicólogas negros e indígenas, faz-se necessário uma psicologia negra, uma psicologia indígena, uma psicologia feminina, que entenda essas dores, essas subjetividades, essas individualidades marginalizadas, faz-se necessário esses novos conhecimentos, esses novos movimentos. A psicologia em quase toda a sua história de vida foi branca, masculina, foi burguesa e foi ocidental, uma psicologia como essa pode ser violenta, colonizadora e desestabilizadora na individualidade dos sujeitos marginalizados, a psicologia é um lugar de poder, e quando colocamos esses poder na mão da criatura hegemônico ela pode marcar ainda mais, pode fazer sofrer ainda mais, pode colonizar ainda mais essas pessoas marginalizadas.

Uma contra-história da psicologia, uma nova psicologia é desvelar essas dores, é não consentir com essas dominações, é fazer um movimento contrário a esse movimento colonial e subjetivante, é ser descolonizador e dessubjetivamente. Uma psicologia como essas não é só psicologia, não é só cuidado, não é só ciência, é um movimento de protesto, de indignação, de revolta que para além do cuidado com o outro, se engaja nas causas sociais e ambientais. É preciso salvar a psicologia da psicologia, é preciso fazer o psicólogo abrir as cortinas do consultório, sair desse ambiente, sair dessa hegemonia, buscar um devir-menor, um devir do cuidado, da empatia, da humanidade. Fazer esse novo tipo de psicologia é, também, fazer um novo tipo de revolução.

Referências

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BRASIL, Raul M. Esquizoanálise e Produção de Subjetividade: Os Processos de Logaritmização do Indivíduo. Recanto das Letras. 29 de set. de 2020. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-sociedade/7074990>. Acesso em 14 de fev. de 2021.

CRPSP, Conselho Regional de Psicologia São Paulo. História da Psicologia e as Relações Étnico Raciais, crpsp, 2016. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/2016_08-memoria-racial/2016_08-memoria-racial.html>. Acesso em: 13 de fev. de 2021

FILHO, Clóvis de Barros. Contra-história da filosofia: pensadores esquecidos. Casa do Saber. 21 de maio de 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kNg14cet7l8>. Acesso em: 14 de fev. de 2021

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GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Soc. estado., Brasília , v. 31, n. 1, p. 25-49, Apr. 2016.

VEIGA, L. M. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista De Psicologia, 31