REJEIÇÃO
(do livro "O derradeiro Amor")
(do livro "O derradeiro Amor")
O sentimento de um ser rejeitado, principalmente durante a fase infantil, influencia na história da personalidade. Isso não significa que a pessoa vai fazer más ou boas escolhas.
O caráter de cada um é construído conforme as escolhas e a capacidade que se tem de lidar com as consequências de suas opções.
O julgamento da dicotomia entre bem e mal, depende muito mais do réu. O juiz eleito tem, em suas mãos, a responsabilidade de emitir o boleto certo para aquele que tem alguma dívida com seu próximo, individual ou coletivo.
Para entender melhor sobre esse sentimento que cresceu dentro de mim, preciso desenvolver a minha história que começou desde a concepção.
- Espera! Agora a narrativa da vítima vai dizer que lembra de tudo que aconteceu dentro da barriga de sua mãe?
Desde o dia em que tomei coragem para revelar sobre tudo que passei durante toda a minha adolescência, principalmente, às minhas queridas irmãs, ouvi acusação de estar “mentindo descaradamente” ou de estar aproveitando um momento para usar uma performance de vitimização, com vistas a algum benefício. Tem também aquele julgamento que sempre fica numa ou em outra entrelinha de que “não estou no meu juízo perfeito”.
A meu ver, a pior de todas as acusações foi a que insiste em dizer que deixei para trazer os fatos criminosos à baila depois que o “coitadinho” não tinha mais como se defender.
Primeiro tenho que esclarecer que não me considero uma vítima. Não mais. Errada em pensar que fui a única vítima e em pensar que fui uma imbecil e covarde porque fiquei anos paralisada e sem ação.
Essa paralisia, na verdade, trouxe mais benefícios do que males.
Talvez uma reação mais corajosa e tempestiva teria evitado tantos sofrimentos. Por outro lado, tenha me dado o tempo necessário para não cometer erros maiores.
Esse julgamento deixo na conta dos leitores.
Depois, uma pessoa mente de maneira descarada quando há uma intenção de prejudicar o sujeito que seria “a vítima” de horrenda falsa declaração. Esse não é o meu caso porque estou expondo uma intimidade que prejudica muito mais a minha pessoa.
E a minha intenção foi exatamente de não trazer à baila um fato criminoso que abriria um processo. E isso sim, acarretaria prejuízos injustificáveis não só para os culpados, como também aos inocentes. Esses, em um grande número. Ocorresse mesmo de um juiz condenar o réu em tela, uma mulher e suas dez crianças estariam à mercê de um destino muito incerto e perigoso.
Eu era uma dessas crianças. E minha história revela que passei por um amadurecimento precoce, vez que todas essas preocupações passavam pela minha mente, o tempo todo.
Poderia dizer até que sou uma paranormal que lembra de tudo que aconteceu quando ainda estava sendo concebida; ou na barriga de minha querida mãe.
Mas, o objetivo aqui é dizer a verdade e decifrar as confusões.
Aqui, tento registrar, o mais detalhado possível, tudo o que minha mãe, avó, tios e, até mesmo, aquele que me foi apresentado como meu pai me contavam em várias conversas, muitas delas confusas e enigmáticas. Lembranças que provocaram muitas ansiedades e angústias.
- Filha, quando você nasceu fazia mais de 40 graus de calor no Rio. Vieram na minha direção com um bebê roxo e inchado. Tão deformado, que não dava ainda para saber se era um menino ou uma menina. Então convicta de que haviam trocado o meu por aquele bebê escuro e tão inchado, eu recusei imediatamente. O que me acalmou foi quando a enfermeira mostrou suas unhas e disse que você iria ficar bem branquinha e que estava roxa e inchada. Pois, havia passado muito da hora de nascer.
Parece que eu corria riscos de sufocar por afogamento na barriga da minha mãe. Lembro de ela me contar que fechava as pernas com força para eu não nascer em lugar impróprio.
Ainda vem à minha memória que, naqueles anos, as pessoas escuras eram tratadas como demônios. Minha Avó materna fazia rituais sempre que passava uma pessoa de pele escura perto dela. Ela tentava ensinar, mas eu, ainda tão pequena, achava aquilo ridículo.
Meu pai, falava com muito orgulho que era da raça branca pura, porque veio de uma mãe de origem francesa e um pai holandês.
Minha mãe tinha vergonha de falar que seu pai era “caboclo” (mistura de índio com negro), mas sentia orgulho em dizer que sua mãe era uma mistura de índia com português.
Após mais de meia década de vida, soube, por uma irmã, que, na realidade, meu pai também ficou escandalizado e me rejeitou quando me viu desfigurada e de pele escurecida.
Quando eu digo que fui rejeitada, não estou me referindo apenas ao momento de nascimento, ou de infância, mas sim, de circunstâncias que aconteceram durante todo o meu convívio com os meus pais.
Neste espaço vou tratar apenas da origem de tudo.
Durante muito tempo da minha vida, talvez como uma estratégia de defesa para sobreviver, minimizava ou justificava, montando as cenas e os fatos, a partir de uma referência bem específica e particular.
Vale ressaltar que essa é minha referência sobre a história da família e o lar, onde passei a infância e adolescência.
Quando eu nasci, meus pais eram muito jovens. Minha mãe já teve meu irmão mais velho aos dezessete anos de idade.
Recentemente, soube que minha mãe ficou sozinha em João Pessoa/PB por um tempo, enquanto meu pai estava cursando no exército, na capital do Brasil que, na época, era o Rio de Janeiro.
Não sei dizer quanto tempo, mas, quando meu pai foi buscar minha mãe na Paraíba, para morar no Rio de Janeiro, ela estava cuidando de dois bebês. Ele não conhecia ainda a segunda filha.
Meu irmão, o mais velho, tinha uns dois anos e minha irmã, menos de um ano, talvez.
A jovem esposa estaria grávida de seu terceiro bebê. Não tenho nenhuma confirmação de como se deu essa terceira gravidez. Não tenho nem mesmo a convicção do ano de nascimento. Pois o registro foi feito extemporaneamente.
Chegando no Rio, minha mãe estava grávida e cuidava de dois bebês, sozinha o dia todo, enquanto o jovem esposo trabalhava no quartel e estudava para as provas finais do curso de sargento.
Preocupado com a proximidade do parto, meu pai escreveu uma carta, pedindo para que minha avó materna, que ainda morava na Paraíba, ajudasse minha mãe com as crianças. Então ela chegou da Paraíba a tempo de levar minha mãe para ter o terceiro bebê no hospital.
Minha avó materna era uma figura muito presente durante a minha infância. Sempre que surgia um novo membro da família, enquanto morávamos no Rio de Janeiro, ela estava lá, cuidando das outras crianças, enquanto minha mãe ficava na maternidade, bem como durante o resguardo.
A cena que consigo imaginar, depois das histórias contadas, é de um jovem que chegou ao hospital e reagiu desconfiado com a cena de um bebê escuro e inchado.
É fácil imaginar aquele jovem militar que chega ansioso para ver sua mais nova criação e ao buscar alguma feição familiar, depara-se com um ser totalmente desfigurado. A pele roxa escura e o corpinho inchado a ponto de não conseguir identificar se era um menino ou uma menina.
A certidão dessa bebê, foi averbada com multa dois anos depois do seu nascimento. Essa, era eu.
Isso não aconteceu com os outros irmãos.
Então quando perguntava sobre esse fato, ouvia várias explicações.
-Nossa! Isso era muito comum naquela época... Conheço várias pessoas que mal sabem que dia nasceram porque o pai juntava as informações para registrar tudo no mesmo dia em um cartório próximo de casa; porque as condições de distância e transporte eram complicadas.
Hoje quando tento entender o porquê das minhas indagações tão insistentes, penso que isso sempre vinha à baila quando me sentia rejeitada.
Então. Isso aconteceu somente com a minha certidão e não com a dos outros nove irmãos.
Fui registrada dois anos depois que nasci, conforme averbação feita no registro de nascimento.
Podem perceber que há um tom de insistência nessas afirmações. E é assim que elas ficam martelando em minha cabeça.
E, no mesmo ano, outro bebê nascia em dezembro. Uma menina que foi registrada imediatamente. Então conclui que para essa filha não havia dúvidas de paternidade.
Nosso pai era militar e muito sistemático. Além do mais, morávamos na capital. Ou seja, em um centro urbano. Não se pode dizer que havia alguma dificuldade para fazer um registro, logo após o nascimento de um filho que é recebido com muita alegria.
Lembro bem que eu era uma criança insistente e que gostava de chamar a atenção dos adultos. Aprendia logo a conversar como eles e percebia quando eles ficavam incomodados com a minha teimosia em participar de tudo.
Quando me colocavam para fora, eu me recolhia e conversava com o meu amigo imaginário em algum lugar distante de todos.
Aos dezesseis anos, sentia que precisava organizar meus documentos e tratei de procurar minha certidão de nascimento para fazer outros documentos. Foi quando percebi a anotação extra de averbação com multa. Segundo o registro, nasci em março de 1960, mas fui registrada em outubro de 1962.
Até hoje, fico me perguntando sobre esse fato. Para muitos parece simples. Mas quando relembro dos comportamentos incompatíveis de meus pais em relação aos filhos; da forma diferenciada em que cada um era tratado, a dúvida criou raízes.
As razões do meu pai eram:
- Não... isso foi porque queria registrar depois que tivesse casado no civil, porque eu e sua mãe tínhamos casado apenas no religioso.
Ou então:
- Ah... eu estava muito atrapalhado e acabei esquecendo mesmo.
A cada indagação uma resposta diferente.
Minha mãe diante de minhas perguntas, ficava calada e dava para perceber os lábios bem apertados como se tivesse receio de falar alguma coisa.
Mas, fui descobrindo que ele tinha dúvidas sobre a paternidade. E, percebi, com o tempo, que havia uma certeza varrida para debaixo de um tapete de conveniência.
Houve rejeição sim. Mas não foi somente porque pensavam que eu era uma negrinha. Havia outro motivo.
O problema aqui, vamos deixar bem claro, não foi o fato em si, mas a repercussão durante toda a minha vida.
As minhas memórias são reais. As marcas na alma são provas contundentes.
Vejam bem! Não se trata de mágoa e falta de liberar perdão. As feridas estão aqui, e são crônicas.
Elas, sempre voltam, em minha mente, são flashes de dor, muitas vezes, no limite do insuportável, e, ainda provocam lágrimas.
O desabafo é, talvez, o único remédio que, pelo menos, faz com que eu libere alguma energia ruim. Ele não anestesia, mas me faz pensar que preciso entender mais sobre minhas reações. Quando revelo minha dor, consigo me distrair um pouco e pensar que alguém vai me respeitar.
Isso mesmo! Sou humana. Não sou santa e, se Deus tivesse avisado que eu iria passar por tudo isso, pediria para afastar de mim esse cálice.
Não sou psicóloga. Mas tenho que concluir que o efeito da rejeição numa criança é devastador, crônico e irreversível.
Apesar de tudo isso, descobri um segredo que revelo no título deste livro. Esse é um remédio de uso diário e contínuo.
Não estou acusando ou condenando ninguém. Isso não me tornaria melhor e, também, não fecharia as feridas.
Durante minha caminhada evolutiva nessa vida, conheci muitas pessoas que tiveram traumas muito parecidos ou até piores.
Cada pessoa teve um destino diferente que, a meu ver, dependeu, principalmente, da escolha que fez quando se viu numa encruzilhada entre amar ou odiar.
Não é simples como muitos podem imaginar.
Passei por essa encruzilhada de opções várias vezes. Fiz escolhas erradas que me obrigavam a retornar e tentar corrigir. Andei por esse círculo vicioso por décadas.
Mas, quando decidi pela escolha certa, a derradeira, vejo a luz expandindo no resto do caminho. E, assim, escapo de voltar ao círculo vicioso que provoca tanta angústia em minha alma.
O caráter de cada um é construído conforme as escolhas e a capacidade que se tem de lidar com as consequências de suas opções.
O julgamento da dicotomia entre bem e mal, depende muito mais do réu. O juiz eleito tem, em suas mãos, a responsabilidade de emitir o boleto certo para aquele que tem alguma dívida com seu próximo, individual ou coletivo.
Para entender melhor sobre esse sentimento que cresceu dentro de mim, preciso desenvolver a minha história que começou desde a concepção.
- Espera! Agora a narrativa da vítima vai dizer que lembra de tudo que aconteceu dentro da barriga de sua mãe?
Desde o dia em que tomei coragem para revelar sobre tudo que passei durante toda a minha adolescência, principalmente, às minhas queridas irmãs, ouvi acusação de estar “mentindo descaradamente” ou de estar aproveitando um momento para usar uma performance de vitimização, com vistas a algum benefício. Tem também aquele julgamento que sempre fica numa ou em outra entrelinha de que “não estou no meu juízo perfeito”.
A meu ver, a pior de todas as acusações foi a que insiste em dizer que deixei para trazer os fatos criminosos à baila depois que o “coitadinho” não tinha mais como se defender.
Primeiro tenho que esclarecer que não me considero uma vítima. Não mais. Errada em pensar que fui a única vítima e em pensar que fui uma imbecil e covarde porque fiquei anos paralisada e sem ação.
Essa paralisia, na verdade, trouxe mais benefícios do que males.
Talvez uma reação mais corajosa e tempestiva teria evitado tantos sofrimentos. Por outro lado, tenha me dado o tempo necessário para não cometer erros maiores.
Esse julgamento deixo na conta dos leitores.
Depois, uma pessoa mente de maneira descarada quando há uma intenção de prejudicar o sujeito que seria “a vítima” de horrenda falsa declaração. Esse não é o meu caso porque estou expondo uma intimidade que prejudica muito mais a minha pessoa.
E a minha intenção foi exatamente de não trazer à baila um fato criminoso que abriria um processo. E isso sim, acarretaria prejuízos injustificáveis não só para os culpados, como também aos inocentes. Esses, em um grande número. Ocorresse mesmo de um juiz condenar o réu em tela, uma mulher e suas dez crianças estariam à mercê de um destino muito incerto e perigoso.
Eu era uma dessas crianças. E minha história revela que passei por um amadurecimento precoce, vez que todas essas preocupações passavam pela minha mente, o tempo todo.
Poderia dizer até que sou uma paranormal que lembra de tudo que aconteceu quando ainda estava sendo concebida; ou na barriga de minha querida mãe.
Mas, o objetivo aqui é dizer a verdade e decifrar as confusões.
Aqui, tento registrar, o mais detalhado possível, tudo o que minha mãe, avó, tios e, até mesmo, aquele que me foi apresentado como meu pai me contavam em várias conversas, muitas delas confusas e enigmáticas. Lembranças que provocaram muitas ansiedades e angústias.
- Filha, quando você nasceu fazia mais de 40 graus de calor no Rio. Vieram na minha direção com um bebê roxo e inchado. Tão deformado, que não dava ainda para saber se era um menino ou uma menina. Então convicta de que haviam trocado o meu por aquele bebê escuro e tão inchado, eu recusei imediatamente. O que me acalmou foi quando a enfermeira mostrou suas unhas e disse que você iria ficar bem branquinha e que estava roxa e inchada. Pois, havia passado muito da hora de nascer.
Parece que eu corria riscos de sufocar por afogamento na barriga da minha mãe. Lembro de ela me contar que fechava as pernas com força para eu não nascer em lugar impróprio.
Ainda vem à minha memória que, naqueles anos, as pessoas escuras eram tratadas como demônios. Minha Avó materna fazia rituais sempre que passava uma pessoa de pele escura perto dela. Ela tentava ensinar, mas eu, ainda tão pequena, achava aquilo ridículo.
Meu pai, falava com muito orgulho que era da raça branca pura, porque veio de uma mãe de origem francesa e um pai holandês.
Minha mãe tinha vergonha de falar que seu pai era “caboclo” (mistura de índio com negro), mas sentia orgulho em dizer que sua mãe era uma mistura de índia com português.
Após mais de meia década de vida, soube, por uma irmã, que, na realidade, meu pai também ficou escandalizado e me rejeitou quando me viu desfigurada e de pele escurecida.
Quando eu digo que fui rejeitada, não estou me referindo apenas ao momento de nascimento, ou de infância, mas sim, de circunstâncias que aconteceram durante todo o meu convívio com os meus pais.
Neste espaço vou tratar apenas da origem de tudo.
Durante muito tempo da minha vida, talvez como uma estratégia de defesa para sobreviver, minimizava ou justificava, montando as cenas e os fatos, a partir de uma referência bem específica e particular.
Vale ressaltar que essa é minha referência sobre a história da família e o lar, onde passei a infância e adolescência.
Quando eu nasci, meus pais eram muito jovens. Minha mãe já teve meu irmão mais velho aos dezessete anos de idade.
Recentemente, soube que minha mãe ficou sozinha em João Pessoa/PB por um tempo, enquanto meu pai estava cursando no exército, na capital do Brasil que, na época, era o Rio de Janeiro.
Não sei dizer quanto tempo, mas, quando meu pai foi buscar minha mãe na Paraíba, para morar no Rio de Janeiro, ela estava cuidando de dois bebês. Ele não conhecia ainda a segunda filha.
Meu irmão, o mais velho, tinha uns dois anos e minha irmã, menos de um ano, talvez.
A jovem esposa estaria grávida de seu terceiro bebê. Não tenho nenhuma confirmação de como se deu essa terceira gravidez. Não tenho nem mesmo a convicção do ano de nascimento. Pois o registro foi feito extemporaneamente.
Chegando no Rio, minha mãe estava grávida e cuidava de dois bebês, sozinha o dia todo, enquanto o jovem esposo trabalhava no quartel e estudava para as provas finais do curso de sargento.
Preocupado com a proximidade do parto, meu pai escreveu uma carta, pedindo para que minha avó materna, que ainda morava na Paraíba, ajudasse minha mãe com as crianças. Então ela chegou da Paraíba a tempo de levar minha mãe para ter o terceiro bebê no hospital.
Minha avó materna era uma figura muito presente durante a minha infância. Sempre que surgia um novo membro da família, enquanto morávamos no Rio de Janeiro, ela estava lá, cuidando das outras crianças, enquanto minha mãe ficava na maternidade, bem como durante o resguardo.
A cena que consigo imaginar, depois das histórias contadas, é de um jovem que chegou ao hospital e reagiu desconfiado com a cena de um bebê escuro e inchado.
É fácil imaginar aquele jovem militar que chega ansioso para ver sua mais nova criação e ao buscar alguma feição familiar, depara-se com um ser totalmente desfigurado. A pele roxa escura e o corpinho inchado a ponto de não conseguir identificar se era um menino ou uma menina.
A certidão dessa bebê, foi averbada com multa dois anos depois do seu nascimento. Essa, era eu.
Isso não aconteceu com os outros irmãos.
Então quando perguntava sobre esse fato, ouvia várias explicações.
-Nossa! Isso era muito comum naquela época... Conheço várias pessoas que mal sabem que dia nasceram porque o pai juntava as informações para registrar tudo no mesmo dia em um cartório próximo de casa; porque as condições de distância e transporte eram complicadas.
Hoje quando tento entender o porquê das minhas indagações tão insistentes, penso que isso sempre vinha à baila quando me sentia rejeitada.
Então. Isso aconteceu somente com a minha certidão e não com a dos outros nove irmãos.
Fui registrada dois anos depois que nasci, conforme averbação feita no registro de nascimento.
Podem perceber que há um tom de insistência nessas afirmações. E é assim que elas ficam martelando em minha cabeça.
E, no mesmo ano, outro bebê nascia em dezembro. Uma menina que foi registrada imediatamente. Então conclui que para essa filha não havia dúvidas de paternidade.
Nosso pai era militar e muito sistemático. Além do mais, morávamos na capital. Ou seja, em um centro urbano. Não se pode dizer que havia alguma dificuldade para fazer um registro, logo após o nascimento de um filho que é recebido com muita alegria.
Lembro bem que eu era uma criança insistente e que gostava de chamar a atenção dos adultos. Aprendia logo a conversar como eles e percebia quando eles ficavam incomodados com a minha teimosia em participar de tudo.
Quando me colocavam para fora, eu me recolhia e conversava com o meu amigo imaginário em algum lugar distante de todos.
Aos dezesseis anos, sentia que precisava organizar meus documentos e tratei de procurar minha certidão de nascimento para fazer outros documentos. Foi quando percebi a anotação extra de averbação com multa. Segundo o registro, nasci em março de 1960, mas fui registrada em outubro de 1962.
Até hoje, fico me perguntando sobre esse fato. Para muitos parece simples. Mas quando relembro dos comportamentos incompatíveis de meus pais em relação aos filhos; da forma diferenciada em que cada um era tratado, a dúvida criou raízes.
As razões do meu pai eram:
- Não... isso foi porque queria registrar depois que tivesse casado no civil, porque eu e sua mãe tínhamos casado apenas no religioso.
Ou então:
- Ah... eu estava muito atrapalhado e acabei esquecendo mesmo.
A cada indagação uma resposta diferente.
Minha mãe diante de minhas perguntas, ficava calada e dava para perceber os lábios bem apertados como se tivesse receio de falar alguma coisa.
Mas, fui descobrindo que ele tinha dúvidas sobre a paternidade. E, percebi, com o tempo, que havia uma certeza varrida para debaixo de um tapete de conveniência.
Houve rejeição sim. Mas não foi somente porque pensavam que eu era uma negrinha. Havia outro motivo.
O problema aqui, vamos deixar bem claro, não foi o fato em si, mas a repercussão durante toda a minha vida.
As minhas memórias são reais. As marcas na alma são provas contundentes.
Vejam bem! Não se trata de mágoa e falta de liberar perdão. As feridas estão aqui, e são crônicas.
Elas, sempre voltam, em minha mente, são flashes de dor, muitas vezes, no limite do insuportável, e, ainda provocam lágrimas.
O desabafo é, talvez, o único remédio que, pelo menos, faz com que eu libere alguma energia ruim. Ele não anestesia, mas me faz pensar que preciso entender mais sobre minhas reações. Quando revelo minha dor, consigo me distrair um pouco e pensar que alguém vai me respeitar.
Isso mesmo! Sou humana. Não sou santa e, se Deus tivesse avisado que eu iria passar por tudo isso, pediria para afastar de mim esse cálice.
Não sou psicóloga. Mas tenho que concluir que o efeito da rejeição numa criança é devastador, crônico e irreversível.
Apesar de tudo isso, descobri um segredo que revelo no título deste livro. Esse é um remédio de uso diário e contínuo.
Não estou acusando ou condenando ninguém. Isso não me tornaria melhor e, também, não fecharia as feridas.
Durante minha caminhada evolutiva nessa vida, conheci muitas pessoas que tiveram traumas muito parecidos ou até piores.
Cada pessoa teve um destino diferente que, a meu ver, dependeu, principalmente, da escolha que fez quando se viu numa encruzilhada entre amar ou odiar.
Não é simples como muitos podem imaginar.
Passei por essa encruzilhada de opções várias vezes. Fiz escolhas erradas que me obrigavam a retornar e tentar corrigir. Andei por esse círculo vicioso por décadas.
Mas, quando decidi pela escolha certa, a derradeira, vejo a luz expandindo no resto do caminho. E, assim, escapo de voltar ao círculo vicioso que provoca tanta angústia em minha alma.