HISTÓRIA, CORPO E CULTURA: o corpo indígena feminino na narrativa de Pero Vaz de Caminha

Os historiadores da cultura devem tratar o corpo não simplesmente como um sistema biológico, mas deveriam tratá-la mediado por sistemas de sinais culturais. Pensar, por exemplo, como determinados grupos sociais dominante procuraram restringir, reprimir, reformar e mutilar o corpo dentro ou fora do seu próprio sistema cultural pode proporcionar aos historiadores grandes reflexões. O corpo dentro de um sistema cultural tem muito a dizer aos historiadores sobre a própria sociedade a qual ele está inserido. Ele carrega as marcas de identidades do tempo passado e presente.

A partir da Carta de Pero Vaz de Caminha, por exemplo, é possível fazer uma história do corpo, ou seja, uma história do modo como uma sociedade olhou e procurou significar culturalmente (dar valor, sentido e compreensão) ao corpo de uma outra sociedade. Sendo assim, a Carta de Pero Vaz de Caminha pode nos servir como um documento histórico que narra a experiência do olhar dos portugueses sobre o corpo dos povos indígenas no Brasil. Uma fonte histórica que quando lemos e relemos ainda nos impressiona pela riqueza de detalhes que ela trás deste olhar europeu (neste caso o escrivão Caminha), bem como a experiência da alteridade cultural através das suas impressões acerca do outro.

Pela riqueza de conteúdo e a acuidade das observações que a narrativa da Carta contém, ela nos permite diversas interpretações e releituras. Um olhar histórico-antropológico sobre da Carta de Pero Vaz de Caminha nos possibilita capturar a cultura do homem europeu do final da Idade Média e início da Idade Moderna, bem como esta cultura renascentista influenciou o seu olhar sobre os corpos das sociedades indígenas registrado em sua narrativa de viagem.

A Carta de Pero Vaz de Caminha é também o nosso primeiro documento que registra uma narrativa do olhar acerca do outro. É na leitura desta Carta que encontramos a narrativa de um olhar sobre o corpo dos indígenas que podem nos ajudar a pensar e compreender, por exemplo, que bagagem cultural carrega aquele que olha, observa e narra. O olhar do narrador pode revelar muito pouco o que foi olhado e dizer muito mais sobre quem estava olhando.

Portanto, o olhar de Caminha sobre o corpo dos indígenas nos possibilita compreender muito mais as opiniões que este homem europeu trazia do seu mundo cultural e muito menos o que ele tinha diante de si. Sua narrativa revela o quanto o seu olhar estava previamente armado por determinações sociais e mentais do seu próprio mundo cultural.

Sabemos que o escrivão Caminha foi um homem marcado pela cultura do seu tempo. Através de sua Carta é possível capturar a cultura mental do escrivão, bem como se percebe as influências do humanismo renascentista de sua época. Por outro lado, a influência da cultura humanista renascentista no escrivão Pero Vaz de Caminha não o distanciou da forte influência da cultura religiosa, ou seja, da mentalidade cristão-medieval tão presente e forte em sua época. E quando se trata de cultura religiosa podemos dizer que não houve um corte brutal e total entre a Idade Média e a Idade Moderna (DELUMEAU, 1984, p. 37).

O homem moderno e humanista oscilou o tempo todo entre a fé e a razão. Para Souza (1987, p. 06) este homem moderno do tempo do humanismo conheceu ao mesmo tempo grandes conquistas técnicas e científicas e vivenciou também “um sentimento generalizado de medo, de pânico ante um fim iminente e muito próprio aos períodos de crise. Uma das tentativas de resposta ao medo e ao sentimento de instabilidade foi a exacerbação da religiosidade”.

Contextualizar a cultural mental do mundo europeu do período das navegações nos ajuda compreender de que modo ela influenciou o olhar do escrivão Pero Vaz de Caminha em suas narrativas acerca dos indígenas. Neste caso aqui, o que interessa observar é de que modo à nudez do corpo dos indígenas proporcionou uma experiência da alteridade, em particular, aos dos corpos das mulheres indígenas.

Quando desembarcou na então chamada Terra de Santa Cruz, os portugueses recém-chegados ficaram impressionados com a beleza do corpo das mulheres indígenas. É preciso lembrar também o espanto e a curiosidade com que o escrivão Pero Vaz de Caminha descreve os corpos dos nativos da América portuguesa. Mesmo acostumados com as diferentes formas de corpos humanos (árabes, negros, judeus, indianos e orientais), no entanto, o corpo e os costumes do homem americano se diferenciariam de tudo até então conhecido pelos portugueses.

A riqueza de detalhe com que Caminha relata em sua carta os corpos de homens e mulheres, bem como dos costumes dos povos indígenas ainda nos impressiona. No que se refere às descrições detalhadas que ele faz aos aspectos físicos dos corpos dos indígenas e a comparação feita aos homens e mulheres de sua terra demonstra bem em sua narrativa a alteridade do seu olhar.

Em uma das passagens da Carta de Caminha fica bem evidente o olhar detalhado com que o escrivão descreve os corpos dos índios e das índias, conforme assinala Simões (1996, p. 69 – 70), organizador da Carta: “Andam nus sem nenhuma cobertura. Não fazem caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas. E o fazem com tanta inocência como mostram o rosto”.

Os corpos nus dos indígenas não escaparam à observação do narrador Caminha que em muitos momentos descreve de forma precisa e detalhada as formas anatômicas das partes íntimas do corpo feminino comparando-as as das mulheres da sua terra: “era tão bem feita e tão redonda a sua vergonha, [...] que muitas mulheres de nossa terra vendo-lhes tais feições, fizera vergonha por não terem a sua como ela” (SIMÕES, 1996, p. 10).

A nudez do corpo feminino indígena, provavelmente, despertou a frota Cabralina muita fantasias eróticas e lascivas dos marinheiros, pelo menos ao marinheiro escrivão tal nudez não passou despercebida em sua narrativa de viagem. As constantes observações que a narrativa de Caminha se refere à nudez das mulheres indígenas demonstram o quanto perturbador foi para ele estar diante de corpos totalmente diferentes dos das mulheres da sua terra natal.

Eram corpos que traziam diferenças físicas, estéticas e morais. Outra passagem da Carta de Caminha que demonstra e reforça bem o quanto esta diferença físico-cultural do corpo feminino das índias perturbou o olhar do narrador é quando ele afirma: “[...] moças, bem moças e bem gentis com cabelo muito preto, caindo pelas espáduas abaixo, e suas vergonhas tão alta e tão cerradinhas e tão limpas de cabeleiras, que de as olharmos muito bem não tinham nenhuma vergonha” (SIMÕES, 1996, p. 09).

Percebe-se aí o modo como o narrador Caminha olhou e observou de forma detalhada o corpo feminino das índias salientando os aspectos estéticos e físicos do sexo delas que pareciam ter, de maneira geral, uma aparência anatômica bem características dessas mulheres; nota-se o quanto a nudez deste corpo feminino despertou no narrador um olhar curioso, íntimo e perturbador.

É importante salientar, afirma Costa (1997, p. 72), que “o voyerismo dos portugueses não provoca pudor nas mulheres índias, face ao fato da nudez ter significado psicológico e cultural diferenciado para o índio e o português”. A nudez destacada em seus aspectos tão íntimo acerca dos corpos indígenas na Carta de Caminha parecia antecipar o confronto de alteridade cultural que historicamente iria se desenvolver entre os indígenas e os portugueses que, por sua vez, se desdobraram em tantos outros confrontos de alteridade de ordem social, política, econômico e cultural.

Sabemos que depois de caminha tantos outros viajantes vieram para o Brasil e aqui narraram suas impressões acerca dos indígenas. Padres jesuítas, comerciantes, cientistas e outros diversos viajantes europeus que aqui estiveram procuraram olhar, observar e registrar suas opiniões sobre o que vivenciaram no Novo Mundo. E sabemos que o que mais chamou a atenção destes viajantes, em particular, os padres jesuítas do século XVI, segundo Vainfas (1997, p. 263), foi “a relação que mantinha o índio com o próprio corpo: o canibalismo, a luxúria e a nudez”.

No que diz respeito às narrativas destes homens europeus que aqui estiveram, sobretudo, os jesuítas que procuraram descrever o que viram sobre os indígenas (e mais tarde sobre os negros); é preciso ter cautela e cuidado sobre tais opiniões que eles tinham sobre a nudez dos índios e o que estes faziam com os seus corpos. Para Vainfas (1997, p. 264), “ao insistir na nudez, esquematizado, erotizando-a, pode exprimir antes o seu mal-estar perante a exibição do corpo nativo, e não um quadro real de frenesi sexual”.

A luta dos portugueses no processo colonizador não foi só manter o domínio das terras e da cultura material dos povos ameríndios, mas também procuraram dominar a cultura imaterial que envolvia o campo moral e espiritual desses povos. O controle sobre a nudez dos povos ameríndios foi um desafio permanente que os colonizadores tiveram diante de si e por tudo que ela simbolizava para eles.

Este controle sobre a nudez dos corpos indígenas revela aos historiadores um debate cultural fundamental: que mesmo sabendo que chegamos nus ao mundo somos logo adornados não apenas com roupas, mas com a roupagem metafórica dos códigos morais, dos tabus, das proibições e dos sistemas de valores que unem a disciplina aos desejos, a polidez ao policiamento.

Ler e reler a carta de Caminha numa perspectiva de uma história cultural da nudez e do corpo nos ajuda a compreender o modo como cada sociedade da a si mesmo o significado estético, sexual e moral ao seu corpo e nudez. Por outro lado, uma história cultural do corpo e da nudez pode também nos ajudar a entender o desdobramento de outros diversos confrontos que o contato intercultural promoveu na história dos diversos povos. Concordando com a afirmação de Costa (1997, p. 74) finalizamos dizendo que “com certeza, a nudez representou naquele contato intercultural um aspecto produtor daquilo que os antropólogos costumam descrever como choque cultural”.

Referências Bibliográficas

COSTA, Flávio J. Simões. Caminha: O Primeiro Etnógrafo do Brasil. In: Revista FESPI. Anais do Seminário. Leitura da Carta de Pero Vaz de Caminha, Ilhéus: UESC, 1997.

BURKER, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992.

DEL PRIORE, Mary. Pureza e pecado ao sul do Equador. In: Revista História Viva. Dossiê Nudez. nº 27, Jan. 2006, nº 27.

DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Vol. II, Editora Estampa, Lisboa, 1984.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

SIMÕES, Henrique Campos (Atualização e Notas). Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. In: Revista FESPI – edição especial. Ilhéus, 1996.

SOUZA, Laura de Mello e. A Feitiçaria na Europa Moderna. Editora Ática, São Paulo, 1987.

PORTER, Roy. História do Corpo. In: BURKER, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992.

VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista. In: SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da Vida Privada: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

Wander Caires
Enviado por Wander Caires em 10/02/2021
Reeditado em 16/07/2023
Código do texto: T7181506
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