Corpo e poder: o capital erótico feminino e a política do desejo
Em sua peça teatral cômica e satírica – Lisístrata – Aristófanes, escritor dramaturgo que viveu em Atenas, na Grécia Antiga (séc. V ao IV a. C.), da voz a sua heroína Lisístrata que convoca todas as mulheres de Atenas para uma greve de sexo. A sátira do autor reporta-se ao fato histórico da Guerra do Peloponeso, mas é no universo feminino que o dramaturgo procura de forma ficcional fazer sua crítica pacifista a política externa belicosa de sua cidade. Nessa peça ficcional em que as mulheres cansadas das aflições da guerra e sem poder político para decidir sobre o seu fim reúnem-se, em assembleia, e tomam a decisão em não mais se deitarem com seus maridos, negando-lhes sexo, forçando-os a assinarem um tratado de paz. Lisístrata a heroína pacifista e comandante dessa revolta feminina ao propor tal façanha diz: “oh, irmãs de solidão e sofrimento, para obrigar nossos maridos a fazerem a paz, devemos todas nos abster... vocês terão que se abster daquela pequena parte do homem que mais classifica como tal. Devemos apenas ficar em casa, vestidas e arrumadas o melhor que soubermos, de preferência usando uma túnica transparente que nos deixe quase nuas, mostrando nosso delta irresistivelmente depilado. Mas quando os maridos apontarem pra nós a agressiva insolência dos seus desejos, nós nos retiramos deixando-os sozinhos no campo de batalha, de armas na mão, sem saber o fazer com elas”.
A proposta da heroína Lisístrata é que todas as mulheres deveriam provocar eroticamente os homens, mas sem ceder aos seus desejos e aos desejos deles de forma incondicional até que a paz reine entre as cidades. Percebe-se pelo texto de Aristófanes, a sua poética cômica e satírica de como tratou dos problemas políticos da Grécia Antiga, bem como do universo feminino. Parece que foi com ele que nasceu o gênero teatral da comédia que até então não tinha grande valor intelectual em sua época. No entanto, suas peças cômicas tinham um apelo popular muito grande no teatro da cidade de Atenas que ficava lotado de espectadores para prestigia-lo. Suas dramaturgias se aproximavam muito do painel político, social e a fatos históricos vivenciados em Atenas. Aristófanes buscava aproximar os temas de suas comédias a assuntos relacionados ao cotidiano comum dos cidadãos. Com suas comédias ele satirizava as instituições atenienses, a vida intelectual e artística, a educação, a política externa, as guerras e o universo das mulheres.
Em mais uma passagem sobre a heroína Lisístrata, o dramaturgo revela nesta peça teatral, o poder que o corpo da mulher exerce sobre os homens e como tais mulheres conscientes de tal poder tiram proveito dele. Diz a heroína: “me farei provocante, usando minha túnica mais leve... pra que meu homem se queime no fogo do desejo... mas jamais me entregarei a ele voluntariamente... e, se, abusando da minha fraqueza de mulher, quiser me violentar... serei fria como gelo, não moverei um músculo do corpo... nem mostrarei ao teto a sola das sandálias... nem ajudarei me botando de quatro como as leoas dos relevos assírios... não cederemos, mesmo que ameacem pôr fogo na cidadela. Só se aceitarem a paz sem restrições. Aí sim, alegremente lhes abriremos as nossas... portas”.
No que diz respeito ao uso do poder que o corpo feminino tem de seduzir os homens e subjugá-los continua sendo uma narrativa pertinente que vai além da sua ficção satírica e cômica. A leitura de Lisístrata – do dramaturgo Aristófanes – continua sendo atualíssima para se pensar a temática do corpo e desejo, numa perspectiva sociológica e antropológica das relações de gênero em nossa sociedade, principalmente, no que diz respeito ao “capital erótico” que as mulheres podem adquirirem e utilizarem como um direito legal e moral na estratégia de política igualitária. É o que pensa e propõe a socióloga inglesa Catherine Hakim vinte e cinco séculos depois de Aristófanes, em seu livro “Capital Erótico”.
O livro “Capital Erótico” da socióloga inglesa Catherine Hakim trás uma consistente pesquisa (são quase cem páginas só de referências e dados gráficos) para demonstrar que, em vez de desmerecer aqueles que optam por usar o corpo como capital erótico, ao contrário, a autora defende como uma legítima e poderosa ferramenta que não podemos ignorar para o nosso próprio prejuízo. Sua tese abala àquele lugar-comum das teorias das ciências sociais para se pensar a questão de gênero, corpo e a política do desejo. Este ousado e polêmico livro provoca e explora as aplicações, bem como a importância do corpo na ascensão social das mulheres, sem nenhum prejuízo intelectual, ao contrário, o uso do capital erótico pelas mulheres proporcionaria equalizar a diferença entre os gêneros tanto no mercado de trabalho como também uma melhor posição de destaque delas na família e na sociedade como um todo. Para a autora, “o capital erótico é tão importante quanto o humano e o social para atender os processos sociais e econômicos, a interações entre pessoas e a mobilidade social ascendente. É essencial para compreender a sexualidade e os relacionamentos sexuais. Nas individualistas e sexualizadas sociedades modernas, o capital erótico está se tornando mais importante e valorizado, tanto para homens quanto para mulheres. Entretanto, as mulheres têm uma tradição mais longa de desenvolvê-lo e explorá-lo, e descobri que estudos normalmente concluem que elas possuem mais sex appeal que os homens. Os artistas sabem disso há séculos”.
Mas o que é capital erótico para a socióloga? Por que o capital erótico é tão importante para homens e mulheres? Por que as mulheres estão em vantagens em relação aos homens e podem, politicamente, tirar proveito do capital erótico? Por fim, o que quero estabelecer neste texto a obra teatral de Aristófanes com a de Catherine Hakim? Vamos começar pela socióloga.
Para entender a provocação intelectual e sociológica de Catherine Hakim é preciso compreender dois conceitos que permeará toda a sua obra. O conceito de “capital erótico” e o de “déficit sexual masculino”. Vamos à compreensão do primeiro conceito. O capital erótico, diz a autora, é a “capacidade de apresentação pessoal e habilidades sociais – uma união de atrativos físicos e sociais que torna alguns homens e mulheres companhias agradáveis e bons colegas, atraentes para todos os membros de sua sociedade e, especialmente, para o sexo oposto. Estamos habituados a valorizar o capital humano – qualificações, instrução e experiência de trabalho. Mais recentemente, começamos a reconhecer a importância do estabelecimento de redes de contatos e do capital social – quem conhecemos em vez de o que conhecemos. O capital erótico é, portanto, uma combinação de atratividade estética, visual, física, social e sexual para outros membros de nossa sociedade, especialmente para o sexo oposto, em todos os contextos sociais. O capital erótico é um atributo importante para todos os grupos que têm menos acesso aos capitais econômicos, social e humano, incluindo adolescentes e jovens, minorias culturais e étnicas, grupos desfavorecidos e imigrantes”. Portanto, o capital erótico torna-se tão importante quanto o capital social e humano na promoção da mobilidade social ascendente de uma pessoa. Um atributo pessoal importante para entender os processos sociais e econômicos em uma determinada sociedade. Segundo Catherine Hakim, “para pessoas com pouca – ou nenhuma – qualificação, o capital erótico pode ser o mais importante atributo pessoal. Como a inteligência, o capital erótico tem valor em todas as áreas da vida, da sala de reuniões ao quarto. Pessoas atraentes cativam os outros como amigos, amantes, colegas, fregueses, clientes, fãs, seguidores, eleitores, partidários e patrocinadores. São mais bem-sucedidas na vida pessoal (com maior possibilidade de escolha de parceiros e amigos), mas também na política, nos esportes, nas artes e na vida profissional”. Em suas pesquisas, a socióloga descobre que os homens com capital erótico se beneficiam muito financeiramente no mercado de trabalho, enquanto as mulheres, apesar dos seus esforços, ainda há um baixo reconhecimento no mercado de trabalho em razão das barreiras morais e culturais que as impedem de se beneficiarem tanto quanto os homens financeiramente.
Outro conceito importante para compreensão deste livro é o conceito de “déficit sexual masculino”. Para a socióloga, “existe um sistemático e, ao que parece, universal déficit sexual masculino: os homens geralmente querem muito mais sexo do que conseguem, em todas as idades. As mulheres têm um nível muito mais baixo de desejo sexual, assim como menos atividade, de forma que os homens passam a maior parte da vida sexualmente frustrados em vários graus. O princípio do menor interesse e o excesso de demanda masculina por mulheres atraentes aumenta o valor do capital erótico feminino. O desequilíbrio no interesse sexual concede às mulheres uma enorme vantagem nos relacionamentos íntimos – caso reconheçam esse fato. A interação entre o déficit sexual masculino e o capital erótico influencia todos os relacionamentos entre homens e mulheres, em casa e no trabalho”. Para a socióloga Catherine Hakim, a demanda por sexo pelo homem é tão grande que valoriza e da oportunidade às mulheres com pouco capital erótico. Qualquer pequeno investimento que a mulher faça em seu capital erótico dá a ela um poder de barganha na vida pessoal e social, justamente, em razão da alta demanda sexual masculina. Ainda diz a autora, “a interação entre déficit sexual masculino e o capital erótico influenciam todos os relacionamentos entre homens e mulheres, em casa e no trabalho. O patriarcado esforçou-se para camuflar esse fato sob uma névoa de moralidade que controla o modo de vestir e o comportamento público das mulheres. Na minha opinião, o feminismo radical entrou em um beco sem saída por adotar ideias similares, que depreciam o encanto feminino. Por que as feministas não desafiaram as convenções masculinas sobre roupas e comportamentos apropriados para as mulheres? Por que ninguém encoraja as mulheres a se aproveitar dos homens sempre que puderem? O feminismo liberal pode parecer restritivo ao invés de libertador”. Confiante nas evidências de sua pesquisa de que as mulheres saem em vantagem em relação aos homens no uso do capital erótico, a socióloga revela o objetivo de sua pesquisa que é “oferecer uma nova perspectiva que esclareça todos os aspectos dos relacionamentos, tanto na vida pública quando na pessoal e, com sorte, encorajar as mulheres a barganhar por uma situação melhor”.
A proposta da socióloga é sincera, provocante, inovadora, desconcertante e com forte embasamento científico, no entanto, me fez pensar o quanto o discurso ficcional muitas vezes, antecipa a problemática que séculos depois aparecem numa outra roupagem discursiva em voga na sociedade – em nossa sociedade: a ciência. Na ficção cômica Aristófanes, a greve de sexo proposta pela heroína Lisístrata, foi uma revelação do poder do “capital erótico” daquelas mulheres de Atenas que se espalhou por toda a Grécia Antiga provocando uma crise política e social sem precedente e com resultados bastante prático – barganhou a paz entre os homens. A proposta científica e a política do desejo de Catherine Hakim se fosse conhecida por todas as mulheres e colocada em prática causaria um grande colapso as sociedades capitalistas. A proposta da autora para que as mulheres usem seu corpo como uma forma de barganha para resolver suas desigualdades não deixa de ser legítima e libertária. A evidência de sua pesquisa sobre o poder que o corpo da mulher pode exercer na sociedade é tão desconcertante quanto a ficção de Aristófanes de vinte e cinco séculos atrás; não tem a mesma graça da ficção, mas é tão séria em seus propósitos e objetivos que tal racionalidade faz você rir.
Referências Bibliográficas
Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2011.
Hakim, Catherine. Capital Erótico. Rio de Janeiro: Best Business, 2012.