O ESTRANHO EM GILBERTO MEDEIROS

RESUMO: O presente trabalho visa ensaiar acerca da obra Estranha Poesia recentemente publicada pelo escritor Gilberto Medeiros, natural de Coração de Jesus – MG. Assim, a partir do conceito de Estranho delineado pela psicanálise, buscou-se analisar traços presentes nos poemas, como o ritmo e o universo interior do poeta, que indicassem ou revelassem o Estranho ali presente, ainda que sutil ou decodificado. Logo, para tanto, utilizou-se como referencial teórico algumas ideias de Sigmund Freud em seu célebre texto “Das Unheimliche” na tentativa de embasar de maneira concisa a argumentação. Ademais, ideias de Carlos Drummond De Andrade e Heráclito também foram essenciais para discussão.

Palavras-Chave: Estranha Poesia; Gilberto Medeiros; Sigmund Freud; Estranho.

Da obra de Gilberto Medeiros há que se dizer que é uma homenagem ao Sertão, ao Erótico e, principalmente, ao “Estranho”. Nesse sentido, vou aqui desdobrar-me para analisar as aspas, isto é, o Estranho na poesia desse autor recentemente publicado, mas de alma antiga e madura, e tentar descobrir por que ele venera o mistério, o desconhecido e o não familiar, tendo em vista que este será um breve ensaio e que, por isso mesmo, exige que eu deixe os dois últimos elementos (o Sertão e o Erótico) para uma crítica póstuma. Inicialmente, então, partirei do conceito de Estranho à luz da psicanálise e do seu afamado pai, Sigmund Freud. Segundo ele, a ideia de estranho está vinculada ao sentimento humano do medo, do horror, da angústia e, indo mais a fundo, da inquietação humana (FREUD, 2010). Assim, é estranho para nós tudo aquilo que desconhecemos e que foge, de certa maneira, do que consideramos familiar ou natural, sejam situações, palavras, sentimentos, imagens, enfim, até a própria poesia. Nesse ponto é que surge o Estranho na obra de Gilberto Medeiros, pois em vários momentos ela nos leva ao desconhecido e procura fugir de uma poesia (humildemente falando) “natural”. Logo, viso aqui delinear percepções sobre o livro Estranha Poesia publicado em 2020 por edição própria do autor, identificando traços que indiquem a presença do Estranho nos poemas.

Ora, se o estranho é tudo aquilo que foge ao familiar e, por isso mesmo, nos causa certo medo, certo espanto, os poemas do referido autor são um convite à coragem e à aventura num mundo singular. Assim, encontram-se ali, submergidos nas estrofes e nos versos, uma poética do estranho próprio de Gilberto, do seu universo, das suas angústias íntimas veladas em palavras e com o tom de quem, talvez alheio a si, soubesse que os versos descritos são a parte de um eu que ainda é misterioso e desconhecido de si mesmo. Veja-se um trecho do poema “Asas do Ar” em que o autor, estranho a si, fala de asas que levam o (seu) ser ao vazio do existir:

Lâminas de ar

Na carne

Causando feridas invisíveis debaixo do medo, eterno.

Cortes profundos, na alma

(…)

Asas do ar

Profundas

Levando meu ser ao nada da existência, mortalmente, eterna. (MEDEIROS, 2020, p. 25)

Sob o excerto há o eu (ser) desconhecido, o nada, um mortal paradoxalmente eterno, que vive, que é cortado, que tem medo, mas não existe. Eis o Estranho em Gilberto Medeiros, uma angústia que é temível por ser mortal, mas necessária para que o autor sinta-se eterno. Admito aqui que falar do estranho é algo arriscado e difícil, tendo em mente que mesmo Freud teve dificuldades em definir o seu verossímil conceito, porém, também não posso deixar de admitir que o próprio título do livro nos leva a pensar numa “estranha poesia” e não numa “poesia estranha”, que, pela troca de ordens das palavras no sintagma, levaria a pensar em algo necessariamente medonho, assustador, em suma, alheio aos padrões da poesia (se é que hoje, século XXI, ainda existem tais padrões absolutamente estabelecidos). Assim, falo aqui da “estranha poesia”, porque essas duas palavras, se miradas com afinco, já revelam algo, uma coisa que mesmo para o próprio autor é estranha, mas que, por conta disso, faz dele o autor dela, o que leva novamente à percepção de Freud “o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar” (FREUD, 2010, p. 331). E então emerge a pergunta, por que uma “estranha poesia”? Comumente falando, o primeiro pensamento que viria à mente seria que tal título se explica pelo seu senso estético, mas há algo além disso, há o Estranho que mesmo o autor desconhece, e ainda assim o escreve porque provavelmente é o seu modus-operandi, versos que são seus mas de um Eu com o qual não tem intimidade, e a única maneira de uma aproximação sem dores entre o Gilberto humano e o Gilberto poeta seria, e é, através dos versos. Provas disso podem ainda ser flagradas em trechos do poema “Atrás da Porta”

O dono

Nunca fica demais

Sem tempo

Não está no quarto

Não está na casa

(...)

Ninguém vê

Essa pessoa de fora

Um estranho

No ninho da família. (MEDEIROS, 2020, p. 44)

Veja-se como Gilberto fala de si como se fosse outrem (e não duvido que o é), e como esse ‘outem’ não está presente no seio familiar. Esse estranho é o Gilberto Poeta, o Gilberto que constrói a ponte de Estranha Poesia para encontrar-se com o seu outro Eu, o eu humano, carnado, e assim fazer-se sentir, viver, e juntos se tornarem pai da “Estranha Poesia”, obra impregnada de uma poética do estranho própria do autor.

Além dos aspetos já citados, não posso deixar de falar ainda da característica mais marcante do Estranho em sua poesia, pois no livro inteiro, em praticamente todos os poemas, o autor criou uma escrita rítmica própria, particular, aquilo que, segundo Carlos Drumond de Andrade, faz com que os poetas sejam poetas, isto é “não há maiores poetas. Há poetas. E cada poeta é diferente dos outros. Se não for diferente e se não transmitir uma forma particular e uma maneira especial de sentir, ver e manifestar poesia, ele não é poeta.” (ANDRADE, 1987). Logo, cito agora o poema “Folhas De Inverno”, em que nota-se a presença dessa escrita particular:

Sob o mar

De pó

Do meu sertão

Há folhas mortas

Ressecadas

Espalhadas no nada

Da minha existência

Sem sentido, exultante, exultante!

Sob o mar

De sol

Do meu sertão

Há folhas secas

Acinzentadas

Enroladas entre o pó

Da minha existência

Sem sentido, exultante, exultante!

Sob o mar

De vento

Do meu sertão

Há folhas velhas

Endurecidas

Rolando pelo chão

Da minha existência

Sem sentido, exultante, exultante! (MEDEIROS, 2020, p. 30)

Há nos versos acima uma repetição constante de estruturas sintáticas que, aparentemente, levaria o leitor a uma experiência comum em todas as estrofes. Porém, é precisamente aí que emerge o estranho rítmico na poesia de Gilberto. Nesse sentido, para esclarecer tal percepção, devo novamente voltar à ideia de Freud (2010) de que o Estranho se liga a tudo que não é familiar e, ao mesmo tempo, é algo nos leva justamente nessa direção, isto é, a estrutura do poema em relação ao ritmo alude ao familiar ao mesmo tempo em que sempre joga com palavras novas, estranhas às anteriores, como: (Sob o mar de pó – Sob o mar de sol – Sob o mar de vento); (Há folhas mortas – Há folhas secas – Há folhas velhas); (Ressecadas – Acinzentadas – Endurecidas); (Espalhadas no nada – Enroladas entre o pó – Rolando pelo chão). Assim, apesar de as palavras tecnicamente apresentarem a mesma função sintática e/ou morfológica no texto – de objeto, de substantivo, de adjetivo, de sujeito, etc. – existe sempre o exercício do novo, do não familiar, do estranho. Em outras palavras, é a filosofia da qual fala Heráclito “Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio” (HERÁCLITO, 2002, p. 205), ou seja, não podemos entrar no mesmo rio duas vezes porque nem o rio nem nós já seremos os mesmos de quando entramos ou saímos. E Gilberto Medeiros pratica tal filosofia frequentemente em seus poemas, seja consciente ou inconsciente disso, ele dialoga com o Estranho (ou o novo, nesse caso) o tempo todo, pois os versos nunca são os mesmos, nunca são familiares, e inda, ao mesmo passo, a familiaridade está sempre ali, presente no ritmo ou na função que as palavras desempenham dentro das estrofes. Em suma, voltando novamente à noção de Freud (2010), o estranho pode ser entendido como um paradoxo, pois estranho e familiar, apesar de serem antíteses, ora ou outra se encontram, e é justamente esse encontro que se revela na poética de Gilberto Medeiros em Estranha Poesia no que concerne ao ritmo dos poemas.

Dada essa breve análise sobre a obra recentemente publicada do autor, me abstenho de, por ora, falar mais acerca da sua poética e dos aspectos de relevância que ainda podem ser encontrados em Estranha Poesia, como o Sertão, tradado ora na figura do castelo ou da fortaleza, ora como suplício e onde mora o coração do poeta; e também o Erotismo, muito presente a partir da metade do livro, que revela o lado do desejo mais humano e carnal do poeta mas sem aquele romantismo de Alvares de Azevedo ou Casimiro de Abreu. Assim, à guisa de conclusão, posso deixar frisado aqui que a obra de Gilberto Medeiros trata-se de uma poesia muito particular e, por isso mesmo, até recôndita do próprio poeta, haja vista que o interior humano é um labirinto muitas vezes indecifrável. E inda assim, Gilberto se arisca nas próprias particularidades, pois como posto no prefácio do livro, seu objetivo era desenvolver uma escrita própria, singular, algo que pertencesse a ele e a mais ninguém. Desse modo, devo dizer que em muitos momentos (senão em todos) ele conseguiu, o que acabou gerando o efeito do “estranho” em sua obra e que também faz jus ao título.

REFERÊNCIAS

COSTA, A. Heráclito. Fragmentos Contextualizados. Tradução, apresentação e comentários: Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

CRUNIVEL, Gilberto. Não há maiores poetas. Há poetas., por Carlos Drummond de Andrade. JornalGGN. Disponível em <https://jornalggn.com.br/literatura/nao-ha-maiores-poetas-ha-poetas-por-carlos-drummond-de-andrade/>. Acesso em 15 de Jan. de 2021.

FREUD, Sigmund. O Inquietante. In: Obras completas, volume 14. São Paulo: Companhia das letras, 2010.

MEDEIROS, Gilberto. Estranha Poesia. Coração de Jesus: Edição do autor, 2020.

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