FUI UMA FILHA MÁ?
Como algumas pessoas já sabem, sou órfã de pais vivos. Vivi minha infância interna em um Orfanato, longe da minha família, entre estranhos, com o agravante de que era apenas uma criança. Porem, mesmo sendo uma criança, lembrava que Minha Avó me chamava Alma Velha.
Inicialmente não me senti sozinha, uma vez que ao optar por ficar no Orfanato (esse fato contarei em outra ocasião), minha Tia Nazareth, Irmã de Minha Mãe, ainda estava lá.
Após alguns acontecimentos traumáticos, me tornei monossilábica… observadora, desconfiada, “farejando” tudo ao meu redor. Espaços, cores, sons, animais e principalmente pessoas.
Percebi, sem entender, que ser negra e claro, feia, era um crime hediondo que me excluía de quase tudo que eu gostaria de fazer, enquanto criança. Não me era permitido representar Nossa Senhora, nem Anjos e isso me machucava muito. Irmã Maria de Fátima que nos ensinava a cantar músicas religiosas, gostou da minha voz e me escalou para cantar no Coral. Eu gostava demais de ficar lá em cima, no coro, longe da maioria das pessoas que me olhavam como se eu fosse um ET, por conta de que, assim que cheguei no Orfanato e minha Mãe foi embora, cortaram meus cabelos… ou melhor – pelaram minha cabeça, me deixando igual um garoto, e até me chamavam “cabeça de negro João”.
Um dia, chegou uma freira negra, no Orfanato – Irmã Maria Cecília Xavier. Meu coração vibrou. Até que enfim, alguém cuja aparência física era igual a minha… apesar de estar num patamar hierárquico bem diferente do meu, mas ainda assim era uma mulher negra, e na minha cabeça, iria me entender, ficar do meu lado.
Ela era a nossa Professora de Arte Dramática. E, resolveu adotar o hábito de me escalar para declamar poemas, dançar e cantar, em todas as festas comemorativas do Orfanato.
Até hoje eu não sei se ela gostava de ouvir a minha voz de taquara rachada ou se ela queria que eu gostasse de ouvir... se não falar, normalmente, interpretando e cantando.
Lembro que no Dia das Mães, ela me colocava para declamar um poema, ou cantar alguma música referente as Mães. Logo eu que estava num Orfanato, longe da minha Mãe.
Havia uma musiquinha que eu sempre cantava… era a letra de um poema do poeta brasileiro - Cassimiro de Abreu, intitulado – MINHA MÃE. Eu tinha que ser muito forte e engolir o choro, controlar o tremor da voz para executar a apresentação de forma perfeita, senão, a tabica de cipó-fogo ou o cinto da Madre Superiora esfolava minhas costas.
Aos dezessete anos, fui embora para trabalhar em um hospital, onde permaneci dos dezessete anos até os vinte e um, quando casei. Com o passar do tempo e outras situações inerentes à vida adulta, esqueci completamente, tanto o poema quanto a canção, assim como tantas outras coisas… mas, de uns tempos para cá, pouco-a-pouco venho relembrando as apresentações e pesquiso na internet, para ver se as músicas e os poemas existem ou eram criações da Minha Professora.
Esse poema, em especial, fui lembrando alguns versos e tentando organizar as estrofes, sempre que escrevia um verso, o outro vinha automático… nosso cérebro é um computador magnifico, não é mesmo? Tudo anotado. A melodia e o andamento, esses, nunca se apagam da minha memória. Não sei cantar, no entanto amo ouvir Minhas Filhas e Minhas Netas Cantando.
Em relação à pesquisa na net, inicialmente, senti certa dificuldade, tendo em vista que, se a música existia, eu teria que buscar em um tempo bem antigo e isso me atrapalhou um pouco, mas não desisti. Minha persistência me agraciou com o encontro da tão procurada canção. Ela existe de fato, mas de forma diferente.
Primeiro encontrei uma gravação com a Dalva de Oliveira e o Anísio Silva. No entanto, assim que os ouvi cantar os primeiros versos, percebi que a melodia não era igual a que eu aprendi. Ao contrário, me fez lembrar um hino das Missões de Frei Damião, que também vou pesquisar para ver se existe, de fato…
“Levanta romeiro que a hora chegou,
o bom caminheiro no céu despontou.
Ave, Ave, Ave Maria
Ave , Ave, Ave Maria”,
Sem contar que eles cantam apenas três, das cinco estrofes: a segunda, a terceira e a quarta estrofe. Pesquisei um pouco mais e encontrei outra pessoa cantando a mesma canção – Aparecido de Souza.
Ele canta com uma melodia e um andamento totalmente diferentes do que Irmã Cecilia me ensinou e da forma como a Dalva de Oliveira e o Aniso Silva cantavam… foi interessante observar que a segunda estrofe que Aparecido de Souza canta, não consta do poema que encontrei na internet, menos ainda na canção cantada pela Dalva de Oliveira e o Aniso Silva, mas consta da forma como minha professora me ensinou.
No poema, o autor – Cassimiro de Abreu – escreve “Minha Mãe!”, apenas uma vez, no final de cada estrofe.
Dalva de Oliveira e o Aniso Silva iniciam a música cantando o refrão – “Minha Mãe! Minha Mãe!” e repetem no final de cada estrofe.
O Aparecido de Souza, apesar começar a cantar a primeira estrofe do poema, também repete o refrão só no final de cada estrofe.
Então, o que preciso falar, na realidade é que, relembrar o que vivenciei no passado, funciona como uma autoterapia. Algumas vezes é dolorido, em outras porém me fazem rir, com vontade!
No caso desse poema/música, mais precisamente na penúltima estrofe (5ª), alguma coisa se revolvia no meu cérebro, me enchendo de perguntas sem resposta… e vinha com a força de furacão: VOCÊ É UMA MÁ FILHA!
Meu meu irmão e minha irmã estavam em casa… e eu, ali, sozinha, longe da “casa Materna, de noite e de dia. Longe das carícias do Anjo de Amores, da estrela brilhante que a vida nos guia! Minha Mãe! Minha Mãe!”
Era com um esforço muito grande que eu conseguia cantar, sem embargar a voz, apesar das lágrimas inundarem meus olhas e rolarem pela minha face. Mesmo vendo e ouvindo várias pessoas chorarem na plateia, ouvindo e vendo aquele “menino” negro, todo sujo e molambento, interpretando e declamando trechos de uma canção tão pungente.
Hoje, agradeço a todos que contribuíram, de uma forma ou de outra, para que eu seja uma Guerreira Imbatível.
Sou Vitoriosa, pois foi para isso que fui treinada, desde o Ventre da Minha Mãe.
Como assim?
Quer saber?
Outro dia eu lhe conto… tchau.