Livro: Bastidores da criação literária

RESENHA CRÍTICA

Sobre As Origens Culturais do Conceito de Criação e o Nascimento da Escritura.

Esta resenha visa mostrar de uma maneira sintética as principais idéias do livro Bastidores da Criação de Philippe Willermart partindo do capitulo das Origens da Criação Culturais e o Nascimento da Escritura.O autor inicia o capitulo falando sobre a escrita da narrativa oral bíblica da criação no século XII a.C. Duas fontes dividem sua escritura: a tradição Yahvista que foi redigida sob Salomão entre 970 e 931 e a tradição sacerdotal durante o exílio entre 600 e 53.

Segundo o autor a palavra criação possui uma conotação religiosa ou bíblica, mas não teológica, pois a teologia fala da criação de uma forma sistemática como um tratado, no entanto, a bíblia está escrita para ser contada, portanto tem uma forma literária e agradável e liga-se a palavra criação.Leyla Perrone sugere a palavra criação como invenção, novo, artesanal ou palavra materialista (produção) que tem a ver com o texto escrito.A Teoria da Informação propõe usar a palavra informação para designar criação que nos levaria a surpresa, descoberta do novo.

A bíblia, no sentido de mostrar a palavra de Deus, procede do mundo mágico, das fadas, das bruxas, dos duendes, feiticeiras, que também pertence a uma determinada idade nas crianças, uma fase ao qual elas acreditam criar falando com suas fadas e seus amigos imaginários.Esse mundo das religiões, fadas e das crianças não conhecem o tempo, nem o valor-tempo que dá origem a um salário.Contudo, o narrador bíblico não ignora existir um valor-trabalho, pois diz que o descanso de Deus é o sétimo dia.Mas a criação em si é instantânea e obedece imediatamente à palavra.Deus diz que surgirá a luz e imediatamente o dia nasce.

O que podemos deduzir: Deus e o artista não trabalham, criam.Sendo assim o trabalho se opõe à criação.O manuscrito, suas repetições com suas rasuras, evolução croquis ou projetos não existiam, tudo era automático, um mundo ideal, eu penso e logo a criação existe sem nenhum trabalho. É um mundo ideal, paradisíaco, sonho de felicidade, uma contra-humanidade.Essa mesma contra humanidade aparece subtendida em nosso mundo técnico de teclas (micros, videogame, botões).

Quando os adolescentes ou as crianças brincam nesses jogos, eles acreditam que estão fazendo as regras de todas as ações, no entanto esquecem que houve um inventor para aquelas regras. É um mundo falso.Os leitores de romances também acreditam não acreditando, mas não há ações pré-inventadas como nos videogames.Os romances mostram um mundo bastante rico para o leitor, o videogame limita a ações precisas, sempre as mesmas, que retoma com uma frase apenas, expressando toda a trama: ”Mario deve libertar a princesa ou você é o vencedor”.Os jogos como os romances teleguiam o jogador ou leitor em direção a um objetivo, mas diferem.O videogame dá uma idéia falsa de criação.

Os microcomputadores podem criar a ilusão de uma criação espontânea aos leigos.No entanto, podemos observar que já não podemos falar em manuscrito, falamos em memória, e ela raramente mostrara as belezas do processo de criação do seu antepassado, o manuscrito.Poderíamos dizer que o artista sofre, pois mesmo com a concepção dessa criação espontânea, ele não consegue criar como Deus.

Na fonte sacerdotal, Deus se torna modelo para a criação do homem, obra é como o criador, mas não se constitui a sua reprodução o narrador da bíblia, há uma Deus falante com poder absoluto, ordenador das coisas, desejando e oferecendo o bem e que sente cansaço.O homem se torna procurador de Deus e algumas vezes esquece que não é o criador e se excede em suas atitudes.Nessa tradição fala.Contudo, na tradição Yahvista é privilegiado o fazer de Deus e dispensa sua palavra.A criação é iniciada somente coma ação, o agir gera existência, os homens não nascem de modelo, mas da mão de um oleiro que trabalha a argila.Essa segunda tradição está mais próxima do artista do que a tradição sacerdotal.Sobre essa analise da bíblia, podemos deduzir que a criação nasce da palavra ou de um fazer.A criação é instantânea ou atemporal, surge do nada ou de modelo imitado ou forjado pelo trabalho.

A tradição grega prega muitos deuses, mas o principal deles é Caos, que reúne toda a desordem inicial para em seguida, colocar os deuses em ordem.O Caos seria uma denominação simbólica que o espírito humano encontra quando procura explicar a existência do mundo.O Caos identifica o primeiro passo da criação, nomeia o mistério que vem antes, porém não entendemos.O manuscrito nos auxilia nesse entendimento do antes.Cada rasura provoca o reinicio.A criação pela tradição sacerdotal surge do nada com a palavra ou com a ação enquanto a tradição grega mostra o caos com sua exclusão (rasura) uma condição indispensável para criar.

Na segunda parte Os Bastidores da Escritura, o autor explica a criação a partir de três dados: Nascimento da grafia através da dimensão histórica, os afetos e a estrutura psíquica. É feita uma linha histórica do nascimento da grafia no ocidente e no oriente.Até chegar nos tempos modernos e nos mostra as facilidades da informática e ao mesmo tempo a frieza dos caracteres na tela com velocidade da luz.Não há mais rasuras, folhas em branco com marcas ou rabiscos nas entrelinhas, enfim terminou-se a poesia dos traços rasurados.O autor precisa ser pratico salvar tudo que foi retirado do texto original para ajudar o geneticista. O microcomputador tirou partes dos sentimentos, não tem mais analise do traço da letra, o traço é fino, largo ou inclinado.Os sentimentos e afetos que as letras transmitiam pela forma que eram escritas terminaram.Tudo se tornou distante e mais triste na criação.

As Três Concepções na Formação da Escritura mostram o manuscrito com um documento científico para ser pesquisado.O geneticista descobre os segredos do texto olhando para a fenda, ou seja, através do manuscrito com rasuras, marcas rabiscos, enfim pelas bordas riscadas das folhas.Podemos considerar o manuscrito sob três perspectivas, na primeira etapa aparecem os processos que levam ao texto, não somente o processo de criação, porém, neste caso o critico sai do objeto-texto e procura outras teorias.O critico geneticista pesquisa o que se passa entre a mão que escreve e o que o cerca.As informações são retiradas das correspondências recebidas da família e amigos.Essa é a primeira etapa preparatória para o estudo do manuscrito.A segunda etapa é centrada na alma do escritor, na intuição.O crítico segue as primeiras intuições e desconsidera as regras gramaticais, culturais ou estéticas.Essas primeiras intuições mostram certos processos de criação. A terceira maneira de enfrentar a criação no manuscrito mostra a linguagem como elemento fundamental.

Segundo autor, o critico ao acompanhar a evolução de uma escritura nunca dará como definitivo o projeto do escritor pelas primeiras cartas, pois toda rasura e todos acréscimos podem ser considerados início de uma nova página ou de um novo parágrafo.Os começos constituem em múltiplos pontos de partidas.O inacabado é fundamental na criação, porque a qualquer momento podem surgir novas idéias.A rasura somente torna-se definitiva quando o livro é entregue ao editor, ainda assim fica no inconsciente genético e pode ser usado por um critico ou um tradutor interessado em transcrever o livro para outra língua.

A partir de um estudo genético do conto Herodías de Flaubert, surge uma linha diferente de analise, uma aproximação com a literatura comparada, pois são feitas ligações entre os textos citados nos rascunhos de Flaubert e o próprio conto Herodías.Esse método esta muito próximo dos críticos que tentam descrever os processos de criação no manuscrito a partir dos acréscimos e das supressões dos cadernos de viagem e de anotações, bem como da correspondência.Os comparatistas e os críticos aproximam-se quando quebram as barreiras relacionando os trechos dos textos emprestados e analisando-os nos textos criados do escritor.

Para continuar essa resenha não podemos deixar de escrever sobre a Instabilidade e acaso na Edição Crítica e na Crítica Genética.As palavras já nascem com significados, não são estáticas com isso torna-se difícil de controlar os seus sentidos.No entanto, é exatamente essa instabilidade que dá beleza ao processo de criação que aparece nos manuscritos.O escritor não possui controle sobre o que está na página, o titulo, ou outra palavra, com ou sem consentimento do autor tudo é colocado em jogo, com todas as suas possibilidades e sua instabilidade, e colaboram para a criação do verso, da página, do poema ou da ficção.Não se trata do acaso, mas da estabilidade que decorre de uma instabilidade inicial.O poeta de fato não pode controlar o processo do qual ele participa como apenas umas das partes.

Os manuscritos mostram uma redefinição do uso da metáfora e da metonímia, do tempo e da trajetória em teoria literária, pois o texto literário oferece normalmente uma historia seqüencial que leva que leva até o desfecho, esperado ou não, mas que não permite excursão fora do texto a não ser pelo imaginário. Entretanto, o manuscrito nos Poe em contato com variações múltiplas não somente as correções gramaticais, mas mudanças de estilo, personagens, nomes enredos, enfim abrem universos inéditos em paginas de escritura rasuradas e eliminadas.

A critica genética associa-se a teorias psicanalíticas, porque acredita que os manuscritos mostram todo um universo peculiar ao escritor, (rasuras em muitas linhas, acréscimos superpostos nas margens sem organização, desenhos matemáticos e rabiscos sem razões aparentes ou ligações com os textos escritos).O manuscrito, exatamente, por um sistema aberto, nos remete a um mundo novo que provoca um intercâmbio com seu meio: a tradição literária, a historia da língua, os encontros habituais ou ocasionais, as leituras.Também faz nos ver as relações sociais e afetivas do escritor.Enfim, todo processo criador do autor deixa muitas marcas no manuscrito que nos leva a acreditar que esses primeiros escritos mostram a alma do escritor, por isso sua relação com a psicanálise.

O que podemos deduzir dessa nossa leitura que a critica genética constitui-se em uma disciplina instigante que nos leva a pensar sempre no processo criador que antecede a cada obra que lemos.Entretanto, acredito que a informatização tirou metade da beleza do processo criador.Todas as marcas de cada manuscrito com suas rasuras se perderam no “delete final”.

Willermart, Philippe.Bastidores da Criação Literária.São Paulo:

Iluminuras/FAPESP, 1999.

Marisa Piedras

julho/2007