As boas obras de um chato de galochas
"A Fé sem obras é morta", disse eu. Pra quê? Despertei a cólera do meu interlocutor que, sentado à mesa comigo, queria a todo custo me fazer abandonar a Fé Católica. A conversa, na verdade, seguia amistosa, equilibrada e, da minha parte, carregada de bom humor. Era mais um daqueles diálogos sobre Religião que acontecia frequentemente em casa e nos quais eu me envolvia com prazer. Meu interlocutor tentou desconversar, negar o que eu acabara de dizer, invalidar a realidade da implicação das boas obras na salvação da alma. Tentei explicar o que eu entendia sobre o tema: "Fulano, as boas obras são a prática do amor ao próximo, simples assim. O amor não pode ser um mero sentimento ou um conceito abstrato de simpatia pelo outro. Não. É, antes de tudo, uma ação concreta e objetiva na realidade. E, claro, isso implica as boas obras, ora!". Percebi, então, que o meu interlocutor tinha plena consciência disso, ele não era tão estúpido assim. Percebi também que havia algo no seu comportamento que ele tentava dissimular: o sujeito, na verdade, se sentia muito incomodado com as palavras que eu utilizava. Ele, que era um protestante, torcia o nariz toda vez que eu pronunciava a expressão "boas obras". Que diatribe é essa!? Ora, eu só pude chegar a uma conclusão: a degeneração chegou a tal nível que as pessoas têm reações psicológicas às palavras sem nem sequer perceber e, pior, com isso elas se afastam da realidade, trocam-na por um superficialismo perigoso no qual tudo o que importa é seguir os ditames desta ou daquela doutrina a despeito de as coisas serem ou não reais.
O meu interlocutor tinha asco das palavras que lhe soavam "católicas demais". Era isso. Ele não imaginava que as palavras tivessem referentes na realidade, que elas tivessem que se referir a coisas existentes em possibilidade e em imaginação. Ora, se as boas obras expressam as ações objetivas que eu tenho para com o meu próximo, como raios eu poderia pensar que isso não pudesse implicar na salvação da minha própria alma? A expressão "boas obras", por acaso, não tem uma significação real para o indivíduo que se beneficia delas? O que é isso, senão amor ao próximo? O amor ao próximo existe apenas como abstração? Se não, como expressá-lo? É subentendido que conversávamos sobre a percepção protestante da salvação da alma. "Sola Gratia" salva o homem. Ele insistia que, estando eu predestinado ou não à salvação, não havia nada que pudesse ser feito para mudar o que fora decidido de antemão por Deus. Então, tentei mais uma vez dizer o que eu entendia sobre o tema: "Fulano, somente Deus detêm a perspectiva onisciente da realidade, Ele não está preso à temporalidade, portanto, é óbvio que para Ele todas as coisas estão predestinadas. A questão não é essa. Nós existimos em Deus e, portanto, participamos da sua liberdade -- Ele não está predeterminado a nada".
"Veja", continuei, "Christo, quando questionado sobre quando será o Dia do Juízo, disse que não sabia, que isso era conhecimento exclusivo de Deus Pai. Estranho! Jesus Christo é o Logos Divino, como não saberia de uma coisa dessas?! A resposta é simples, fulano: isso só pode significar que o Dia do Juízo NÃO está predeterminado por Deus, mas será fruto de sua decisão exclusiva. Será fruto do uso da liberdade divina. Deus Pai é a onipotência, Deus Filho é a onisciência. Deus infundiu em nós uma parcela infinitesimal da sua liberdade, com a qual podemos amá-lo. A tensão entre o determinismo e o livre-arbítrio em nós é real, porque, se nada nos estivesse predeterminado, então teríamos a liberdade divina integral e, por outro lado, se tudo nos fosse predeterminado então isso significaria dizer que Deus nos vê apenas como coisas, não como entes que participam da sua liberdade".
Ele me ouvia cada vez mais interessado. Tentei explicar que essa tensão é real, que tentar entendê-la só dá dor de cabeça, porque nós somos parte integrante do problema. Nós somos o enigma. Não podemos nos colocar para fora da realidade e julgar a causa da predestinação e do livre-arbítrio; nós estamos no meio desse tiroteio. Cada vez que escolhemos algo, nós o fazemos entre os elementos que já estão aqui, na realidade. É impossível fugir da tensão entre as duas coisas, porque a própria existência humana acontece sobre essa tensão, ela está presente na nossa vida. Finalizei o diálogo colocando mais café na xícara e dizendo: "Sabe, fulano, umas das coisas mais cretinas do mundo é tentar explicá-lo através de termos imprestáveis. Se essa ou aquela palavra não serve para explicar isso ou aquilo -- pelo contrário, só aumenta a confusão --, então por que utilizá-la?". Por fim, arrematei: "Vá praticar boas obras e deixe de ser besta!".