Esquizoanálise: Três Platôs Sobre o Devir
Universidade de Pernambuco(UPE)
Curso de Psicologia
Cadeira de Introdução à Esquizoanálise
Prof. Responsável: Djailton da Cunha
Texto sintético por Raul Magalhães Brasil
I. Geologia, Petrologia e Cartografia.
Quem sabe não é tudo feito de ferro e de concreto? Assim são as grades da prisão, o piso e as paredes da cela. Os corredores, as mesas, a cama, é também o sol constituído de ferro e de concreto, os prisioneiros e os guardas são estátuas imobilizadas, ferro e concreto. Quando o escultor vai dar luz a uma obra, quais materiais ele usa? Qual a matéria-prima daquela arte? Ferro para o alicerce, o esqueleto, mármore para o corpo, o organismo. São rochas sedimentares, minérios, pedras, concreto, mármore, carvão, calcário, granito, britas. Está tudo cristalizado em uma construção, em um alicerce demente de um edifício gigantesco formações geológicas, convergência da pangeia. As máquinas sociais e burocráticas são feitas de ferro, metal, ligas metálicas de cobre e zinco. De onde vem tudo isso? Trabalhadores, estudantes, microempresários, domésticas, professores e garçons são transformados em operários, micro-operários, escravidão subjetiva, servidão voluntária: Eles estão nas profundezas de minas escuras escavando esses rochedos, rochas carbonáticas, minas de silício, mineração industrial. Como os anões da branca de neve ou como os escravos do período colonial, como o condenado que cava a própria cova eles retroalimentam a máquina capitalística subjetivante.
“Mas o que diabos ele está falando?” se pergunta o meu interlocutor, ora caro leitor, ora caro ouvinte, como você ainda não se desterritorializou? Acha mesmo que estou falando de rochas e minérios literais? Falo de concreções, estancamentos, coagulações, cristalizações, mutilações, e se não me entendes então por favor, não me dê ouvidos. Não falo nem tampouco escrevo para você, falo e escrevo para mim, discurso para mim. Sou um Zaratustra póstumo ao Zaratustra, que Deus está morto nós já percebemos, mas porque o Juízo de Deus ainda paira sobre nós? Por que ele nos inscreve, nos sujeita, nos constrói, nos conduz? Estamos a seu serviço, totalmente a mercê. Com as rochas que escavamos vamos construir templos, altares concretíssimos e indestrutíveis, alicerces inquebráveis, rostos, identidades. Vamos construir um altar para Nietzsche e para Deleuze, vamos tornar suas filosofias como intocáveis e inquestionáveis! Todo altar é uma espécie de fascismo, seja um altar real, seja um altar da mente. Não é o altar do ego a mais pura forma de microfascismo?
Onde tudo isso vai dar? Aonde isso leva? O que isso constrói? O que isso produz? Esse tempo todo, esses parágrafos inteiros falei de rochas e minérios, cristais de quartzo e altares de granito tão somente para mostrar onde estamos, o que somos, como nos construímos e constituímos. Somos estátuas feitas de rocha e ferro, rochas sedimentares, segmentares, cristalizados em nossas identidades e em nossas crenças, cristalizados na nossa função na sociedade, no nosso ser-social, sujeito-sujeitado, servos voluntários, em suma, cristalizados em uma cartografia de afetos que não nos convém. É preciso elucidar onde estamos, falar onde estamos para aí, e somente aí, saber para onde e como devemos ir. Não é isso o Devir? O movimento, a mudança a duração. Precisamos saber onde estamos para então saber aonde é que podemos ir. Para nos conhecermos, nos situarmos precisamos de um mapa, precisamos cartografar nosso afetos, nossas intensidades, as linhas que nos atravessam, ora, não é isso esquizoanálise? Precisamos nos mudar, precisamos nos tornar nômades, mas vamos nos perder se não tivermos um mapa.
II. Tempo, Momento e Movimento.
Devir implica no movimento uniformemente variado dos platôs na multiplicidade do sujeito, agenciamentos. Intensão na extensidade do campo de imanência. Para qualquer devir não se pode pensar o tempo enquanto tempo quantificável, somos bergsonistas, ora, o tempo aqui é pura qualia. As pessoas entendem o tempo como aquilo que passa, nós, nômades-em-potencial, entendemos tempo como aquilo o que dura. Heidegger que me perdoe, mas o Ser não é Ser no Tempo, o ser é ser do tempo. Ser e tempo são uma única coisa, substância única em um mesmo plano, se inscrevem somente nisso: duração. O Ser que é, é aquilo o que perdura do que se foi. A fórmula é simples: ΔS = vot + at²/2. O deslocamento se dá por velocidade, tempo e aceleração. Na cartografia, qualquer deslocamento, qualquer movimento, qualquer mudança só ocorre através disso: velocidade e aceleração, corpos móveis, nômades, afetos intensivos, agenciamentos em fusão, explosão nuclear.
A mudança não é singular, não é unidade de medida, a mudança é um platô na multiplicidade, devires conjugam-se sobre devires, empilham-se, inscrevem-se. Os devires coexistem, se atravessam, o ser não está em devir, ele está em devires. Tudo o que se é, tudo o que se foi e tudo o que se pode vir-a-ser, se inscreve numa cartografia, num contínuo acontecer do corpo-acontecimento, é isso o que compõe o sujeito enquanto realidade imanente. Continuum: rizosfera, o conjunto de rizomas e possibilidades rizomáticas de conexão.
O que pode tudo isso, o que pode toda essa parafernalha? Conexões, tubos, canos, agenciamentos: pra onde isso vai nos levar? Que diferença isso faz?! Isso faz toda a diferença. É isso o que constitui a realidade.
A física do devir tem o poder de derrubar os alicerces da petrologia, separar a pangeia, fazer chocarem as placas tectônicas em movimentos nômades e revolucionários. Tudo o que precisamos é de momento, quantidade de movimento, aliança, inscrição, conjugação, afeto comum. A fórmula é a seguinte: Q = mV, todo momento requer certa velocidade, certa intensidade. A quantidade de movimento(o momento) se dá por aliança
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O pêndulo de newton, que não cessa seu movimento pendular, estabelece uma aliança entre as esferas do objeto: elas compartilham uma mesma quantidade de movimento, têm uma mesma velocidade, acontecem sobre uma mesma intensidade e sobre um mesmo campo de imanência. O pêndulo de newton é uma zona autônoma temporária, autárquia. As esferas estão no puro movimento do devir: devir-esfera. Elas entram em contato uma com a outra, é uma o Fora da outra, estabelecem uma aliança, inscrevem seus afetos, conjugam seus pontos notáveis, e portanto mudam constantemente. As relações são sempre diferidas, os elementos costumeiros são completos estranhos, algo novo surge desse movimento, é tudo sobre isso. A involução é criativa, sempre n-1, sempre um momento novo inscrito num tempo qualitativo, sempre um afeto novo, sempre uma nova possibilidade de compor com a realidade. Criar através de repetições diferidas, pilotar máquinas de guerra revolucionárias, tanques de guerra, infantarias de agenciamentos, novas formas num continuum de formas possíveis, possibilidades. Ser do tempo enquanto ser da pura imanência, ser da substância única de Espinosa, monismo, rizosfera, continuum, quando a máquina abstrata é quem agencia as máquinas desejantes: “Quanto mais nos aprofundamos na natureza do tempo, mais compreendemos que duração significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo”(Bergson).
III. Molecularidade, Diagrama de Fases e Revolução Francesa.
Devir tem a ver com romper com as celas da prisão, escapar sorrateiramente pelos corredores, raspar as paredes de concreto com uma colher, cavar um túnel para fora, movimento de fuga. Qualquer pessoa que já assistiu um filme de ação sabe: escapar de uma prisão não é fácil. Decodificar os afetos, plastificar a cartografia, realizar uma diáspora nômade dos sentidos, reinventar o tempo, criar novas formas de se compor com a vida e de compor consigo mesmo. Ninguém está dizendo que isso é fácil, que é rápido, isso envolve todo um trabalho de micromecânica, engenharia nuclear. Até hoje não houve um único cientista que tenha conseguido criar uma linha molecular, isso fica a cabo dos artistas. Não estamos dizendo que é rápido ou fácil, que é como aquelas coisas simples da química ou da matemática, não. Estamos dizendo apenas que é necessário.
É impossível fugir da prisão sem um aliado, sem estabelecer alianças, filiações, quem é que vai vigiar o túnel enquanto você cava? Quem vai verificar a segurança dos corredores? Linhas de fuga não são individuais porque não são individualistas, a linha de fuga é coletiva, para fugir são necessários no mínimo 2 corpos móveis. Não existe um devir-eu, um devir-eu que se volta a si mesmo está realizando movimentos sedentários, fazendo esforços para alimentar a identidade, criando o egoísmo freudiano. Todo devir é devir-outro, O devir que devém, devém de uma relação com o fora.
Não existe fuga passiva, fugimos, mas não fugimos por medo, fugimos por necessidade, fugimos por uma questão ética, por uma questão política. Fugimos porque a nossa prisão foi injusta e não faz sentido, não nos convém, o organismo que nos mantém em cárcere, o corpo-com-órgãos, não nos convém. A fuga não é passiva, fugimos com uma arma na mão, nos tornamos o anômalo e desejamos a revolução.
A multiplicidade, onde coexistem os devires, é como um diagrama de fases. Quando o indivíduo vai de um ponto ao outro, do cristalizado ao plastificado, do sólido ao líquido, as duas fases coexistem. Estamos nessa justaposição, sólido e líquido ao mesmo tempo, atravessamentos diversos num mesmo plano de composição. Linhas molares e moleculares coexistem no diagrama de fases da multiplicidade, coexistem nos movimentos nômades. O devir, a mudança, requer agenciamentos, o devir para ser revolucionário, requer intensão, para mudar de uma fase para outra precisamos de pressão, de movimento, agitação das partículas, momento molecular.
A revolução é stirneriana, o anarquismo é individual: como vou mudar o mundo de fora se não consigo mudar a mim mesmo? Falamos aqui de coisas pequenas, de movimentos cada vez menores, do macro ao micro, do majoritário ao minoritário, do molar ao molecular. A revolução aqui não é francesa, é artaudiana: nós podemos enforcar os burgueses com as tripas dos padres e ainda assim vai continuar existindo capitalismo e religião. O macro vai se restituir, se reconfigurar se não houver qualquer mudança no micro, por isso que precisamos diminuir, pôr a lente naquilo o que é difícil de enxergar. Aí que entra o devir, é necessário tirar o escopo do homem e devir-mulher, é necessário tirar o escopo do humano e devir-animal, tirar o escopo do adulto e devir-criança, tirar o escopo do notável, do claro, e devir-imperceptível. Todo devir é um devir-menor, devir-minoritário, todo devir é um fenômeno de borda, uma feitiçaria, um pacto demoníaco.
Essa é a verdadeira revolução, essa é a revolução que pode algo: o afeto. Afeto comum. Já escreviam nos muros de Sorbonne: o afeto é revolucionário! Essa é a revolução de um micromecânico, de um artaudiano, de um stirneriano, de um deleuziano, micro-revolução, revolução molecular. Nomadismo dos sentidos, dos afetos, das percepções, esse é o primeiro passo para mudar a realidade. Devir enquanto insubmissão, inadequação, linhas moleculares e micropolíticas, dessubjetivação.
Se as prisões feitas de rochas sedimentares criam uma servidão voluntária e macropolítica, a físico-química do devir cria uma emancipação voluntária, micropolítica, que pode algo, que resiste, que sobrevive.
O devir é um código de ética, existe assim, uma ética dos devires, é em devir que se sobrevive ao capitalismo, às linhas duras, aos processos de subjetivação e de logaritmização.
A pressão já é enorme, as rochas e os minerais são pesados demais, por que então não produzimos momento? por que não mudamos de fase? por que realizamos movimentos de intensidade? É necessário passar do estado sólido para o líquido, romper com as celas, destruir as rochas, plastificar as cristalizações, mapear os decalques, e isso só pode acontecer através da diferenciação, da resistência, em suma, do devir.
Devir é possibilidade de revolução.