Interseccionalidade social brasileira: uma herança abolicionista
Este ensaio tem como objeto central de discussão a relação entre o movimento abolicionista e a interseccionalidade social brasileira. Gostaria de abordar a interseccionalidade à luz de um conceito antirracista primeiramente ao pulsante aporte feminista presentes em outras análises (MOUTINHO p. 211). É importante, porém, que o conceito de interseccionalidade seja elucidado como o estudo da sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação (ZINN p.253). A teoria por sua vez posta que diferentes categorias biológicas, sociais e culturais interagem em níveis múltiplos e simultâneos gerando uma base multidimensional e fértil que permite um entendimento como a injustiça e a desigualdade social sistêmica ocorrem (CRENSHAW, 1989). Acrescentando, a teoria interseccional sustenta que as conceituações clássicas de opressão dentro da sociedade como o racismo, sexismo, homofobia, transfobia e outros, não agem de forma isolada. De fato, elas se inter-relacionam criando um sistema, uma estrutura que reflete várias formas de discriminação (KNUDSEN, 2006).
O movimento abolicionista ou a abolição da escravidão aqui no Brasil foi um “decreto” que criou a miséria na recém formada sociedade de classe brasileira no final do século XIX como nas palavras de Florestan Fernandes extraídas de seu livro “A integração do negro na sociedade de classes”:
“A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (...) Essas facetas da situação (...) imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel”.
Sendo assim, a abolição criou um marco de desigualdade que contemplou inicialmente os trabalhadores escravos bem como os seus descendentes. A questão a ser explorada a partir deste ponto neste ensaio permeia além do campo social e econômico, o sofrimento e a moral imposta por um processo social estruturado na promessa de liberdade fomentado por uma relação de poder desigual entre o Estado e a emergente sociedade de classes da época em questão.
Uma vez colocado o problema identificando sua origem e efetuado o recorte temporal, temos o desafio de enquadrar tal contexto dentro de um mecanismo promotor de desigualdade social bem como contextualizá-lo no atual cenário social brasileiro identificando quais são tais estruturas que vêm consolidando e sedimentando essa manutenção na forma de estruturas “veladas”.
A análise da produção da diferença e da desigualdade ora apresentada da interseccionalidade, no caso, a partir do estudo de raça, passa por três eixos principais: 1) o eixo da reconstrução ou construção dos Estados nacionais e de certas representações de nação; 2) o campo dos direitos humanos; e 3) o das identidades subjetivas, do cuidado de si e da inserção em novas ou renovadas redes de sociabilidade (MOUTINHO p,204).
O primeiro eixo de análise refere-se ao contexto que abriga o conceito do “nós nacional”, um conceito de representatividade que engloba raça, gênero e erotismo como base da formação da nação mestiça. Na tentativa de efetuar uma correlação positiva entre a desigualdade, cabe aqui que uma vez decretada, a abolição criou um sujeito social. Para Florestan, a liberdade realizada por decreto não alterou a estrutura social no que se refere ao enquadramento dos sujeitos por cor e raça, apenas alterou a condição jurídica-política destes indivíduos. Consequentemente, a experiência da discriminação da sociedade de classes e os vieses históricos alimentaram a ideia de desigualdade na sociedade brasileira (MOUTINHO, p.221). Estes achados foram resultados do projeto da UNESCO quando a relação entre brancos e negros foram observadas de modo crítico.
O segundo eixo coloca a perspectiva onde os processos políticos nos quais indivíduos e coletividades se engajam no sentido das experiencias de inclusão ou exclusão do nacional. Aqui, os protagonistas deixam de ser aqueles da representação para ser tornarem sujeitos de reivindicação: o “nós nacional” dando lugar ao “outro social” mantendo relações de poder distintas com o Estado e a lei (MOUTINHO p.226). Neste eixo de análise, temos os marcadores sociais na sua interseccionalidade desenvolvidos a partir de três lógicas: 1) a da repressão; 2) o não reconhecimento público; 3) e a lógica da defesa social. Esta abordagem tem o intuito de mostrar como o Estado nacional atua de forma burocrática e, em o fazendo, institui a violência burocrática. Um exemplo deste tipo de violência ocorreu na República da África do Sul durante o regime do apartheid quando ocorreu a criminalização dos casamentos miscigenados tendo como consequência a segregação das populações negras aprofundando o abismo das diferenças e desigualdades sociais naquele país. Porém, estes próprios marcadores sociais foram os mesmos que construíram articulações com movimentos sociais ganhando status tanto de premissas legislativas quanto de programas e políticas sociais dando ênfase na construção e legitimação de certo ideário alicerçado na responsabilidade, na reparação e no reconhecimento. Ainda assim, vejo a violência burocrática atuando na normatização desta moral. Ainda dentro deste eixo, a burocracia por si só cria estruturas de subordinação que por si só são formas estruturais e estruturadas de manutenção da desigualdade. O sujeito alforriado e seu contingente diante do contexto de sociedade de classes não possuía um ponto de partida na corrida pela sobrevivência igual ao branco (FERNANDES, 1965). Diante de um cenário capitalista emergente, Florestan Fernandes realizou suas pesquisas na busca da retenção as situações psicológicas e sociais que envolveram a mobilidade dos indivíduos tanto “brancos” como “negros” no interior desta sociedade de classes em formação. Em seus achados, o autor constatou que, na unidade geográfica do estado de São Paulo, o indivíduo negro ou mulato sofreu problemas de desajustes psicológicos e sociais mais graves retardando a plena participação desses indivíduos nas relações da sociedade então existente. Neste cenário, pode-se inferir da existência de um processo de diferenciação cultural, de raça frente às condições de supremacia social e econômica e política dos brancos. Acrescentando, no Brasil o Estado aparece como uma instituição burocrática que regulamente a vida do sujeito de forma discriminatória e excludente a formação de sujeito de direitos. Quando foram mencionados, os instrumentos de reconhecimento, reparação e responsabilidade chamam a atenção de como os marcadores sociais da diferença destas categorias são centrais na construção deste direito na mobilização da ideia do papel do Estado como reparador. Todavia, esse reconhecimento não produz emancipação ou lida com a opressão. O movimento do eixo anterior “da nação” à “nacionalidade” entende-se como um processo de construção de nação a um processo de experiência de nacionalidade que incorpora a diferença. Assim, temos aqui então mais um marcador interseccional de desigualdade que se perpetua desde então.
O último eixo de análise demanda um certo cuidado. Na questão das socialidades e subjetividades, o individual e o coletivo, os sentimentos e a lei se entrecruzam (MOUTINHO p.234). Aqui a categoria tempo torna-se relevante e anacrônica pois ainda hoje presenciamos situações análogas à escravidão quando relacionamos a categoria de raça e gênero. Este eixo de análise nos coloca a questão do tempo do espaço como protagonistas das condições estruturais de transformação da sociedade capitalista que tardiamente vem contemplando a questão de gênero e raça em seu arcabouço teórico mediante à emergência de uma nova forma de manifestação da sociabilidade e da subjetividade. Neste contexto, a interseccionalidade constrói o próprio sujeito não apenas do ponto de vista jurídico, mas também no campo social. Surge a força do movimento feminista negro brasileiro e suas contribuições à constituição da sociedade brasileira principalmente no que se refere aos direitos da mulheres como um todo (CARNEIRO p. 273).
Muito embora a discussão das teorias interseccionais se origine a partir do ativismo feminista estadunidense, é uma noção Liberal interligada à categoria do Direito e nem tanto a formação do sujeito pautada no âmbito do ativismo migrando para uma perspectiva do reconhecimento de determinadas pautas jurídicas e não voltadas à emancipação do sujeito. Contudo, esta perspectiva permitiu sistematizar os estudos com relação à produção de “nós”, “do outro” a partir de certos dispositivos de poder. Desta forma, não estamos apenas nos referindo à produção da diferença, mas, principalmente, da produção da desigualdade. A categoria elencada de raça face ao advento da abolição veio da curiosidade do porquê da naturalização de tanta desigualdade na sociedade brasileira. A raça, o gênero, a sexualidade, a deficiência são diferenças e subprodutos de um campo que produz desigualdade social. No intuito de destacar uma desigualdade social produzida de forma estrutura com a abolição, os marcadores sociais acima destacados operam essa mesma desigualdade agora do que operaram em outrora. Coloco-me uma questão que tem sido latente desde a minha adolescência: levando em consideração todos os achados dos autores aqui mencionados bem como suas considerações, considerando o cenário econômico e social da época em questão, por que não ocorreu no momento da vigência liberdade visando promover uma economia de classes, uma reforma agrária que desse ao escravo que agora era livre, a posse da terra e os subsídios para a sua escalada social? As políticas de reparação não serão suficientes até que a decisão desta divisão ocorra e contemple principalmente aqueles que aqui serviram como escravos e todas as suas gerações subsequentes.
Bibliografia:
MOUTINHO, Laura. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em produções acadêmicas recentes. Cad. Pagu [online]. 2014, n.42. pp.201-248. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332014000100201&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0104-8333. https://doi.org/10.1590/0104-8333201400420201.
LOPES, Pedro. Deficiência na teoria - marcadores sociais da diferença e interseccionalidade. In: Deficiência na cabeça: percursos entre diferença, síndrome de Down e a perspectiva antropológica. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2020. pp 28-138.
RIOS, Flavia, & SOTERO, Edilsa. (2019). Apresentação: Gênero em perspectiva interseccional. Plural, 26(1), 1-10. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.159740
BAIRROS, Luíza. Novos Feminismos Revisitados. Revista de Estudos Feministas, (UFSC. Impresso), Florianópolis, 1995, vol. 3, nº2, pp.458-463 https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Nossos_Feminismos_Revisitados_Luiza_Bairros.pdf
ZINN, Howard, A People’s History of the United States (Harper Perennial: New York, 2003), page 253
CRENSHAW, Kimberle (1 de janeiro de 1989). «Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics». The University of Chicago Legal Forum. 140: 139–167
FERNADES, Florestan, A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Globo 2008.