ENTRE O INÚTIL E O INEFICAZ
Se nada mais der certo, ore para uma ferida ensanguentada e creia que ela vai te ajudar!
*Por Antônio F. Bispo
Recentemente voltando para casa num fim de tarde depois uma pequena viagem, a sintonia do rádio do meu carro foi mudada depois que atravessei a fronteira do meu estado.
Era por volta das 18hs, eu estava ouvindo uma coletânea de músicas do passado e um padre bem entusiasmado ocupou a frequência fazendo uma oração frenética, pedindo ajuda para UMA FERIDA ENSANGUENTADA. A oração das santas Chagas. Esse devia ser o nome.
Já ouvira aquela reza em outra ocasião, mas nunca prestara atenção ao que ela dizia, nem no arranjo das palavras e nem nas intenções do pedinte. Agora ouvindo-a minuciosamente, percebia um homem com muita fé implorando as feridas ensanguentadas de um cristo, que supostamente morreu num madeiro cerca de 2 mil anos atrás. Ele pedia favores para si, para sua família e outras coisas mais.
Pela entonação de sua voz parecia que ele tinha certeza que seria atendido. Pelo número de vezes que repetia a mesma coisa, dava-se a entender que ele mesmo duvida da eficácia de seu pedido ou de quem (ou o que) iria lhe atender.
Por um momento pensei ter voltado mil anos atrás em um ritual litúrgico da idade média, ou estar mergulhado em um dos vários livros de história medieval que tanto gosto.
Uma freada brusca no trânsito me trouxe de volta a realidade: homens com máquinas modernas faziam reparos em um trecho da rodovia BR 101 que cedera devido as chuvas fortes da semana anterior. Carros e caminhões luxuosos e potentes também estavam parado à minha frente e ao meu lado, provando que realmente eu estava no século XXI e não no X.
Me lembrei que orações desse tipo são tão comuns e tão confusas que sempre nos remeterá a momentos tenebrosos de nossa história, onde o medo, a ganancia, a ignorância e a manipulação imperavam acima de qualquer coisa lógica, razoável ou científica.
Não importa o século em que estejamos, quanta tecnologia a humanidade tenhamos criado, e quantas descobertas médicas e cientificas nossa espécie tenha feito: sempre será bizarro os métodos que os fiéis utilizam-se para agradar aos deuses, receber deles perdão, favores ou aplacar destes a ira intermitente e irracional que lhes são peculiar.
Criamos vários meios comunicação e transportes para que a distância seja diminuída entre todos os povos e as interações e troca de conhecimentos possam ser de forma fácil e instantânea. Porém o modo de comunicar-se com os deuses será sempre duvidoso e pesaroso e a maneira de “transporta-se” à presença deles ainda foge a todo tipo de racionalidade. Parece que a regra geral ao invocar ou “servir a um deus” é não usar o cérebro de jeito nenhum, ou deixa-lo desligado enquanto a liturgia durar.
Algumas vezes é preciso descer além dos limites da baixaria, da bestialidade e da racionalidade humana para ter um pedido “atendido” pelos deuses. Outras vezes, os que se dizem seus arautos colocam-se num pedestal inalcançável, julgando estar acima de qualquer outro ser vivente, por possuir “acesso direto” a essa ou aquela divindade. Os que desejam alcançar os favores dos deuses estão dispostos a pagar os favores que tais intermediários cobram, sejam favores políticos, sexuais, financeiros ou de influência. Sempre há um preço a ser pago e sempre há que os pague no intuito de “levar vantagens” sobre os outros aos corromper os deuses em detrimento próprio.
Sacrifícios humanos, de animais, com plantas, com comida, de dinheiro, de ouro e até de falos e vaginas: cada deus ou sacerdote tem seu preço para interagir e “se deixar usar”. A dizimação de povos inteiros também já solicitado em certos lugares como forma de pagamento por um favor alcançado ou a alcançar. O antigo testamento está cheio desse relato, ordenado pelo próprio “deus de amor”.
A época, o modo ou a bizarrice que os fiéis empregam nos ritos litúrgicos podem ser diferentes, mas as os motivos por trás dos ritos serão sempre as mesmas: medo, ganancia, ignorância ou tradições culturais.
Percebendo-se que determinado método não funciona, inventam-se outros meios, outras liturgias e até outros deuses. Se mesmo assim não funcionar, se a graça não for alcançada, invocar-se-á todos os deuses juntos, ou praticar-se-á todos os ritos de culto simultaneamente de forma ecumênica para que determinado problema individual ou coletiva seja resolvido.
Se ainda assim não funcionar, se deus não responder, as “bruxas” e as “pessoas sem deus” serão sempre culpadas pela ineficácia dos métodos e dos deuses. Foi assim num passado distante, durante toda idade média e tem sido assim até hoje.
Parece-me que em todas as eras, apenas um “ateuzinho de nada” solitário, sem dizer nada, sem nada fazer e sem crer em nada, terá mais poder do que milhares de crédulos juntos morando em uma cidade, cultuando a dezenas de deuses, executando centenas de rituais litúrgicos, impetrando milhões de orações, fazendo todos os tipos de rezas mandigas e simpatias.
Um ateu solitário, viajando em seus livros sempre atrapalha um mundo inteiro de crédulos mesmo estando apático aos devotos e suas devoções. Ele será sempre a criptonita de todos os deuses, crentes e religiões juntas.
Sempre que a loucura coletiva não obtiver os resultados desejado, esta irá procurar alguém ou alguns para culpar imbecilidades, suas paranoias e seus desejos egoístas inalcançados.
Desde os mais remotos tempos, aqueles que não se rendem as crendices populares tem servido de bode expiatório quando os deuses não respondem.
Ao invés de dizerem: estamos fazendo papel de gente idiota”, eles dizem: “a culpa é daquela pessoa sem deus”; Ou: “há pecado em nosso meio, por isso deus não nos atende”!
Os métodos de acesso com os deuses sempre nos remetem ao passado ou nos deixa preso nele. Isso é fato.
Não um passado nostálgico, que nos remete à boas lembranças, mas ao passado tenebroso em que os piores de nossos instintos eram despertados e vistos como se fossem virtudes divinas, a exemplo da ira, a perseguição, o ódio e o desejo de morte a todos que não fossem daquele povo ou daquela fé.
Desse modo, por mais moderno e tecnológico que alguém ou um país se julgue, quase sempre será levado de volta a idade da pedra mediante um ritual litúrgico, não importa se a entidade cultuada seja “presencial” ou metafísica. Um pé no futuro e outro no passado. É quase sempre isso que acontece quando as pessoas “falam com deus”.
Os que depositam sua confiança em deuses ou ritos não entendem que apesar de parecerem diferentes, os resultados serão sempre os mesmos não importa os deuses ou o método. Orar para uma pedra, para um pedaço de gesso, para um tronco de madeira, para um quadro pintado na parede ou para um ser imaginário produzem os mesmos resultados: nada!
Deixar de orar e tomar as rédeas da própria vida faz com que resultados reais aconteçam, mas nem todos são capazes de entender isso e alguns até que são, mas fingem não ser, pois enquanto puderem tirar proveito da situação, o que importa é o lucro! Outros entendem que “aliado aos deuses”, diante dos fracassos e as “cagadas” que fazem na vida terão sempre a quem responsabilizar, por isso mantém essa sociedade sinistra com os tais.
Quanto mais deuses e métodos para invoca-los, mais evidente fica que os demais métodos (ou todos eles juntos) não tem eficácia alguma.
O cristianismo por exemplo, é uma das religiões mais sincréticas que existe (que mistura ritos de várias crenças e povos) A maioria dos adeptos desconhecem esse fato e acreditam que ela seja uma “religião original”, como se o próprio deus tivesse inventado tudinho come em um roteiro de um filme. Eles pensam que tanto os ritos quantos os santos venerados sempre foram ou estiveram do mesmo jeito desde a fundação até os dias atuais.
No catolicismo, além de pedir ajuda a uma ferida ensanguentada, você pode pedir ajuda um senhor morto que jaz em um altar, todo ferido, prestes a ser embalsamado e levado ao sepulcro; a um jesus menino, deitado em uma manjedoura cercado de animais que alegra-se com seu nascimento; a um jesus crucificado pendurado em um madeiro prestes a dar o seu último suspiro de vida; a própria cruz que ao mesmo tempo que fora objeto de sua dor tornara-se o motivo de sua glória; a um jesus ressuscitado que ao voltar à vida subjuga a morte e o inferno; a uma mulher casada, eternamente virgem que gerou um filho de um pombo; ao próprio pombo; ao velho deus antes de virar pombo ou aos três personagens coexistindo simultaneamente em um suposto ser chamado Santa Trindade.
Se isso não for suficiente peça ajuda a são José, o velho carpinteiro que criou a jesus e tornou-se santo por assumir em silêncio um filho que não era seu; a Sant’Ana, que apenas por ser mãe de Maria e avó de Jesus também virou santa; a Tiago e outros de seus irmãos que também tornaram-se santos devido ao grau de parentesco com o “mestre” e se isso ainda não for o suficiente, solicite ajuda aos 12 discípulos e as mais de 20 mil pessoas que a igreja canonizou nos últimos 17 séculos. É possível que em sua cidade, estado ou país tenha pelo menos um desses santos canonizados.
Além disso, há sempre objetos mágicos, mistificados ou beatificados que um crédulo também pode pedir ajuda para complementar, ou se achar que os outros recursos não dão conta.
A igreja católica tem milhares de relíquias sagradas para “te ajudar” a crer ainda mais e a pedir melhor vendo ou tocando em um objeto que “comprova” a existência de tudo o que é “sagrado”.
Existe o santo sudário, as vestimentas e utensílios dos papas, escritos antigos, ossos dos santos, objetos benzidos e outros itens de valores inestimáveis que estão ali para ajudar na realização de milagres, principalmente o milagre da multiplicação de poder e riquezas da igreja.
Para quem pode e deseja ter uma interação maior, é possível visitar os “locais sagrados” e reviver cada cena, beijar cada pedra ou orar em cada canto que dizem ser santos
Os locais de onde aparições de visões ocorreram são ótimos para que pedidos sejam atendidos. Pelo menos é o que dizem! Pena que de depois da popularização das câmeras fotográficas essas aparições diminuíram, senão poderia ser você o felizardo a contemplar uma aparição como fora com as crianças de Fátima e tantos outros.
Uma pessoa que interagiu com algum tipo de visagem geralmente se torna santo, deixa sua família e cidades mundialmente conhecidos por gerações. Muito bom, não é?
Uma das primeiras pessoas a interagir com um avistamento desse tipo, se tornou o pai de mais de 4 bilhões de fieis no mundo inteiro que brigam há mais de 4 milênios, tentando provar um ao outro quem é o mais especial ou quem e quem tem a maior coleção de besteiras feitas em nome da fé.
Moisés, o homem que conversou com uma moita ardente no meio de um deserto e recebeu dela instruções, não parou mais...até o dia de sua morte conversou com pedras, cajados, nuvens, montanhas, raios, relâmpagos e trovões. Sempre sozinho como todos os outros fundadores ou no máximo na companhia de outra pessoa “de confiança”.
Para ser mais cômodo e poupar seus servos de tanto trabalho, deus prefere aparecer em um pão mofado, na parte traseira de um cachorro ou em mancha na parede. Seus planos e métodos sempre serão uns mistérios inquestionáveis.
Algumas coisas na vida podemos fazer com que sejam eternas. Outras serão consideradas apenas uma fase, uma lembrança maldita que alguns de nós tentamos esquecer ou nos envergonhamos de já ter sido parte de tal bizarrice, imbecilidade ou sofrimento desnecessário.
Libertar-se de padrões repetitivos e de comportamento de rebanho é algo que a princípio será inadmissível por parte dos que lucram com nossa ignorância e medo. Eles irão demonstrar um misto de raiva e falso amor ao nos perder como fonte de renda, poder ou manipulação.
Alguns irão ter dificuldades em libertar-se libertar das paranoias que por tantos anos fizeram parte de suas vidas do inicio até o fim do dia, sempre envolto em mistérios e sacralidades duvidosas. O medo do fracasso próprio mediante o rogo de praga de tantos “irmãos que os amavam” será evidente, mas tudo isso passa.
A reconquista de nossa sanidade é algo pessoal. O senso de moral e justiça devem ser mantidos, não sobre os padrões de favores e recompensas que um deus qualquer possa prometer ou pela hipocrisia comum aos amantes de fé que só “amam” e “respeitam” os que comungam com suas crenças, mas pela necessidade de harmonia e paz entre os que dividem os mesmos espaços conosco.
Toda mudança pode ser um choque e sofrível, mas não há nada que pague enxergar com os próprios olhos, ouvir, pensar, falar e se locomover por conta própria sem o cabrestão da fé
REVEJAM SEUS CONCEITOS!
Saúde e Sanidade a Todos!
Texto escrito em 17/10/20
*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.