Comentários Breves Sobre O Anti-Édipo de Deleuze & Guattari.
Cadeira de Introdução à Esquizoanálise.
Universidade de Pernambuco(UPE)
Prof. Responsável: Djailton Pereira da Cunha.
Texto Sintético por Raul Magalhães Brasil
I. Introduzindo: O Anti-Édipo.
Desde o seu lançamento, em 1972, O Anti-Édipo, livro que inaugura a crítica filosófica e psicológica de Deleuze e Guattari ao capitalismo e todos os corpos nele inscritos(a psicanálise e o triângulo edipiado, as instituições e as instâncias de controle, a filosofia da identidade e o hegelianismo francês, a concepção reducionista do desejo e o fascismo nas sociedades) já foi alvo das mais diversas alcunhas. Dentre as quais foi notoriamente “subversivo” para os psicanalistas, “confuso” para os leigos e “brilhante” para os jovens.
O livro gerou impressões diversas, da mesma maneira com a qual gera afetações diversas. Afinal, sua leitura é desterritorializante. Nos retira do trono estruturalista e codificante sobre o qual vemos o mundo para nos lançar na sua imanência crítica e potencialmente revolucionária, não é uma leitura simples, é difícil — dificílima inclusive — mas nunca entediante. Há um estranhamento confortável em suas linhas, numa maneira quase poética de ler e se relacionar com o livro.
Chama-se “Anti-Édipo” numa tentativa torrencial de criticar a psicanálise(e seu modelo edipiano, que reduz o inconsciente desejante a um teatro grego empobrecido). Um nome mais adequado talvez fosse “Anti-Edipianização”, no sentido em que Nietzsche chamou de “O Anti-Cristo” um de seus livros. Em ambos os casos há uma percepção de um transmundanismo perverso, despotencializante e reducionista que procura fazer a amputação da vontade de potência dos indivíduos e transformar esses Seres autônomos em Entes automatos. Ambos os livros são crítica e clínica: Um nos mostra como viver diante do niilismo, o outro, nos mostra como viver diante do capitalismo, unindo de maneira brilhante a crítica, o diagnóstico e a ética da vida.
II. O Anti-Édipo e a Psicanálise.
A obra, considerada uma continuação dos movimentos libertários de maio de 68, procura dar conta daquelas efervescências políticas e suas lutas contra o fascismo. Mais do que procura saber onde esses movimentos triunfaram, procura explorar onde eles falharam. Porquê falharam, e porquê continuam falhando. É nesse contexto de “procurar dar conta” que se encontra a crítica à psicanálise, fundamental ao Anti-Édipo. Procura-se entender onde a psicanálise falhou, porquê ela não dá conta do indivíduo, porquê ela não compreende o esquizo, porquê ela se tornou uma engrenagem de manutenção do poder e, doravante, do capitalismo.
O livro procura quebrar paradigmas, para, literalmente, criar novos. É necessário relembrar que O Anti-Édipo não é necessariamente anti-psicanálise, ele se mantém enquanto uma crítica à Freud e, talvez sobretudo, à Lacan. Se mantém enquanto uma crítica à ótica estruturalista sobre o desejo, esta, que o reduz e o esmaga a esquematismos simples demais. Em suma, o escopo da crítica está no fato de que a psicanálise não compreende o desejo em sua totalidade, isso é, em sua singularidade: em sua multiplicidade. E assim sendo, o caráter revolucionário do desejo é mutilado, o divã funciona como uma máquina-boca, que obstrui o fluxo da máquina-seio. Em detrimento disso, a psicanálise é corroborativa com a grande máquina social, que organiza as máquinas desejantes individuais em estratos, atravessando linhas duras sobre esse indivíduo, tornando-o num corpo docilizado, impotente e microfascista.
A crítica da esquizoanálise é absolutamente construtiva: ela quer salvar a psicanálise dela mesma. Quer elevar essa ciência à sua máxima potência, abrindo as janelas do consultório, saindo do divã, ligando as luzes e percebendo o social que se impõe sobre o familiar. O que se procura aqui, não é uma anti-psicanálise ou uma não-psicanálise, mas uma psicanálise que supera a ótica limitante com a qual se enxerga o homem e seu desejo. O que se procura aqui é uma psicanálise política, social e militante. Em suma, uma psicanálise revolucionária!
III. O Anti-Édipo e o Fascismo.
Como antes dito, o Anti-Édipo não pode ser retirado do contexto dos movimentos libertários no qual estava inserido, ele procura abarcá-los. E da mesma maneira que reflete sobre o anti-fascismo, reflete também sobre o próprio fascismo. Acerca desse tema, o livro carrega consigo um prefácio notável escrito por Foucault para a versão americana: Introdução à vida não-fascista. Como muitos dizem, o texto é tão egrégio que poderia ser considerado uma obra à parte. Ainda sobre o texto, é admirável perceber a maneira com a qual Foucault e a Esquizoanálise estabelecem um vínculo teórico sobre seu objeto de estudo em comum: o fascismo.
Pois bem, já nesse prefácio é possível notar como o desejo e a militância se entrelaçam, sendo o desejo a forma pela qual o corpo pode mudar a realidade, e a militância sendo o próprio desejo de mudar a realidade em si. Esses dois corpos se retroalimentam e se tornam necessários para uma vida não-fascista. Quando o desejo é obstruído, quando os fluxos são violentamente cortados, a ponto de desejarem seu aniquilamento, o desejo de mudar a realidade se torna bruma. Nessa situação, o desejo não é mais militante e agora quer que a realidade permaneça a mesma, numa repetição não-diferida: uma realidade rostificada. Os líderes fascistas são os pastores desse tipo de desejo, eles sabem canalizar a obstrução do desejo das massas e criar uma cartografia do desejo mutilado, que abrange a sociedade, criando assim, verdadeiras sociedades fascistas. É necessário relembrar que aqui o fascismo não é somente o fascismo político, ele refere-se também ao fascismo do desejo, isso é, a maneira com a qual as máquinas sociais e burocráticas organizam as máquinas desejantes individuais, de modo a esmagar o desejo revolucionário, criando um registro que flutua sobre o poder gravitacional e realiza a manutenção do status quo do poder e da sociedade.
IV. O Anti-Édipo e o Microfascismo.
Parafraseando Foucault: “o óbvio precisa ser dito novamente” quando se trata do fascismo. Esse corpo de controle se virtualiza para se atualizar, os regimes fascistas totalitários do século passado não foram o início e tampouco o fim do fascismo, mas talvez tenham sido sua potência máxima. Servem como um alerta sobre o que podem as instituições de controle e a micropolítica dos corpos de poder. E diante desse aviso, desse alarme, é necessário uma contra-medida, uma maneira de não decair ao facismo, de não permitir-se ao fascismo. É aí que entra O Anti-Édipo para Foucault:
O Anti-Édipo aqui é uma máquina de guerra contra o fascismo político e o fascismo do desejo, sua função é combatê-los numa tentativa de inviabilizá-los, talvez seja nesse sentido que Foucault nos disse que o século XX foi um século Deleuziano. Parafraseando novamente o autor: “Talvez o fascismo ainda exista porque o combatemos de forma ao alimentá-lo”, a filosofia militante e política d’O Anti-Édipo atuam nesse quesito; Em força disso, Foucault nos diz “Temos que criar alguma coisa que não existe ainda e não sabemos o que será” para combater o fascismo, O Anti-Édipo nos dá as ferramentas inventivas para criar essa nova máquina, esse novo corpo militante e revolucionário que não existe e não sabemos o que será. Sabemos apenasmente como será: Um Devir-Revolucionário. O Anti-Édipo não quer saber necessariamente da revolução em si, quer saber do devir-revolucionário dos corpos e seus recursos de emancipação desses processos de subjetivação que criam uma cartografia do desejo mutilado.
Nossa atenção sempre se volta a um ponto em comum: Os corpos. As máquinas orgânicas pelas quais correm os fluxos revolucionários e esquizofrênicos do desejo. Como Artaud brilhantemente nos aponta: é preciso remodelar os corpos, reconstruí-los, raspá-los. Isso porque ele está impregnado por uma micropolítica(isso é, por um processo de subjetivação pelas máquinas sociais e burocráticas) que o infestam com um fascismo sensorial, ético e filosófico. É nesse sentido micropolítico dos corpos que entendemos seu fascismo do desejo, e como esse fascismo subjetivo leva ao fascismo político e social. Sendo assim, não é difícil concluir: O fascismo nos corpos geram corpos fascistas. E é por isso que, antes de lutar contra o fascismo, antes da revolução e da militância em si, precisamos lutar contra o microfascista que há em nós, militarmos a nós mesmos através de uma hermenêutica do sujeito, num cuidado de si, gerando uma revolução molecular! Dentre tantas outras lições o Anti-Édipo nos atenta para um fato sublime: a revolução deve ser, sempre e antes de tudo, de dentro para fora!