Esquizoanálise Radioativa: A Vociferação Esquizofrênica do Desejo.

Texto sintético experimental referente às primeiras páginas do livro "O Anti-Édipo" para a Cadeira de Introdução à Esquizoanálise do curso de psicologia da Universidade de Pernambuco(UPE). Por Raul Magalhães Brasil.

I. O “Isso é” das Máquinas Desejantes.

“Isso funciona em toda parte: às vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. Isso respira, isso aquece, isso come. Isso caga, isso fode”. (O Anti-Édipo. P. 11. Deleuze & Guattari).

Isso me fode, enquanto isso eu fodo, isso é maquina. Isso se acopla e desacopla, se arranja, se desarranja, se arranja desarranjadamente. Isso tem cadência, tem ritmo, faz música, faz ruído, isso grita, vocifera. Isso existe, isso continua, isso para, isso vai, isso fica. Isso, isso, isso.... mas o que é isso? Isso é tudo. “Tudo compõe máquina”, e máquinas tudo compõem. Tudo é máquina de máquina, com conexões, fios, cabos, tubos. Os encanamentos podem tender ao infinito ou se reduzirem ao absurdo. Atravessamentos sem fim, às vezes escancarados, às vezes insondáveis. É quase esotérico, pois é inominável, parece não haver nada, e do nada, desejo. É tudo processo. Processo de produção incessante, atravessamentos, linhas, cordas, caminhos, vias, ruelas, com possibilidades inimagináveis de destino, uma cartografia de possibilidades de si, de ser. Tudo leva a todo lugar, e todos os lugares estão aqui. Agora. Imanência. Realidade das coisas enquanto coisas em si mesmas. Ou realidade apenas. Isso. Eu falo muito disso, estou representando-o. Sou um ator? Queria ser órfão. Mas tenho pai e mãe, sou filho. Sou casado com Jocasta, e Creonte me avisa dos maus algures:

“Direi então, o que ouvi da parte do deus.

Febo, o puro soberano, em termos claros nos manda

A imundice de Tebas, criada por este chão,

Extirpar, que ela não cresça ao ponto do sem remédio”

(Édipo Rei. P. 56. Sófocles)

Mas não te preocupais comigo, pois mais tarde arrancarei meus olhos. Não porque não aguento a realidade imanente de todas as coisas, o deus. Não porque acredito em transmundos ou na punição irremediável do tártaro escaldante. Arrancarei meus olhos pois assim poderei enxergar melhor. Tudo é muito claro, tudo é muito ordenado, tudo faz muito sentido, tudo está estruturado, e isso é um problema sem precedentes. Tudo é dado, está tudo aí. “Acredita-se muitas vezes que Édipo é fácil, que é dado. Mas não é assim: Édipo supõe uma fantástica repressão das máquinas desejantes.”(O Anti-Édipo. D&G).

Se tudo faz sentido muito facilmente, e pode ser entendido ao simples olhar então se auto-mutile. Faça em si mesmo uma autópsia, raspe seus órgãos com uma colher, a começar pelos olhos. E quando não poder enxergar nada, quando nada estiver dado, quando a sensorialidade não fazer mais nenhum caralho de sentido, então use tudo quanto lhe for possível usar e apreender a realidade. Enxergue com o paladar, cheire com as mãos, foda com o nariz, dance com o falo. Destrua a ordem natural das coisas, transforme o cosmos que te rodeia no caosmos que te habita. Transforme sua realidade, para então transformar a própria realidade em si.

“O homem está enfermo, porque ele é mal construído. Temos que nos decidir a desnudá-lo, para raspar esse animáculo que o corrói mortalmente: Deus. E juntamente com Deus, os seus órgãos. Se quiserem podem meter-me numa camisa de forças, mas não existe coisa mais inútil do que um órgão”. ( Para Acabar Com o Juízo de Deus. 1947. Antonin Artaud.)

Sangue será derramado em Tebas, e com sorte, será o meu. Eu vou me destruir e então me reconstruir por inteiro. Se nasci errado posso então voltar para o útero da minha mãe, escalando o endométrio e voltando a ser um conjunto minúsculo de células. E então moléculas, para explodir em uma revolução molecular, em algo novo, nunca antes visto, criando a mim mesmo em uma supernova que põe em xeque tudo o que me circunscreve, todo o meu cosmos.

II. A Vociferação Esquizofrênica do Desejo, A Besta.

Nosograficamente não posso ser considerado um esquizofrênico, mas me sinto como um, não porque deliro sobre a realidade, mas porque a realidade me parece cada vez mais delirante.

“Na esquizofrenia é como no amor: não há especificidade alguma e nem entidade esquizofrênica; a esquizofrenia é o universo das máquinas desejantes produtoras e reprodutoras, a universal produção primária como ‘realidade essencial do homem e da natureza’ “. (O Anti-Édipo. P. 16. Deleuze & Guattari).

Homem? Realidade? Natureza? Tudo isso me parece tão familiar e ao mesmo tempo tão estranho, um estranho-familiar. Ao mesmo tempo que reconheço, temo. Nada disso é meu, nada disso me pertence, e não me sinto pertencente a qualquer uma dessas máquinas. Fui jogado ao mundo, dado, ser-aí. Existo há tão pouco tempo mas já sei de absolutamente tudo sobre mim: Sou homem, sou negro, sou baixo, sou calvo, sou estudante, sou, sou, sou... Se sei tanto sobre mim, porque me sinto vazio? Porque meu desejo está numa camisa de forças? Ah! Sim! Pois sou esquizofrênico, estou literalmente numa camisa de forças, que me atravessam, que me perfuram e que impedem muitos de meus transbordamentos. Essa camisa de forças, de vozes e de vias criaram meus órgãos, meu corpo, meu rosto, em suma, criaram tudo o que sou e tudo o que me identifico por ser. Eu sou essa camisa de forças que me inscreve nessa máquina social perversa. Sou homem, homem com H. Mas o que é aquilo? Uma besta? Que demônio, dragão, ou alucinação é essa coisa sem nome que grita dentro de mim? Que ruge palavras intraduzíveis, que bicho é esse que quer arrebentar a minha camisa de força?! Se ficar, o bicho pega, se correr, o bicho come. Quero correr, quero ser devorado, quero escapar, quero criar linhas de fuga nessa cartografia do desejo mutilado, quero me desmutilar, para que o solo da cartografia tebana encontre remédio, bálsamo, encontre a si mesmo e se torne a si mesmo. Eu quero me tornar Ney Matogrosso, quero dançar como ele, eu quero me tornar Marilyn Manson, eu quero cantar como ele. Não, eu minto. Não quero dançar como ninguém ou cantar como ninguém, quero ser a mim mesmo, quero ser o esquizofrênico que há em mim, por baixo dessa camisa de forças que me esmaga. Não sou homem, não sou negro, não sou baixo, não sou calvo, essa imagem no espelho não me representa e não tem nada a dizer sobre mim. Eu quero é que o espelho se foda.

III. A Polifonia da Loucura de Espinoza.

Vozes e vias gritam no meu encalço me dizem o que devo ser, mas o desejo é uma besta, ele vocifera. As máquinas desejantes, quando se tornam máquinas rizomáticas do desejo e do ser, rangem, fazem barulho, vociferam e falam mais alto que qualquer voz de poder, que qualquer voz de saber, que qualquer voz de auto-referência. Não estou satisfeito com o que sou, tampouco com o que quero ser, sou fenômeno de fenômeno, máquina desejante de máquina familiar de máquina social de máquina capitalística. Quero que todo esse conjunto de máquinas exploda e crie algo tão perigoso quanto Chernobyl, tão radioativo quanto Césio-137. Eu quero ser um perigo para a ordem, eu quero ser o que não querem que eu seja, quero ser, devo ser uma única coisa: Diferença. É só sendo diferente do que sou que serei eu mesmo, e sendo eu mesmo posso ser um milhão de coisas, posso me tornar todos os fantasmas que assombram o eu-normal, o fascista que me agarra juntamente com a minha camisa de forças. A Loucura não é só bela, ela é desejável.

Quero um corpo pleno e nada mais, mas afinal, o que pode um corpo? Não sei ao certo, mas preciso experimentar as infinitas possibilidades de resposta. Assim veremos o que vai arrebentar primeiro: a camisa de forças que me sufoca ou o revolucionário que se expande dentro de mim.

“Se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos de desejo, o desejo continuará sendo manipulado pelas forças de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revolucionárias”. (Deleuze, Conversações)