O QUE É LITERATURA?

Várias são as definições sobre o que é literatura. Muitas delas apontam para caminhos distintos, sobretudo pelo fato de que há presunção de já se saber o significado do respectivo conceito e tudo o que ele acompanha. Essa presunção possivelmente de desvaneceria se, ao seu turno, parássemos para classificá-lo levando em consideração – de uma forma clara – a separação entre ciência e arte, como bem explicitou José Veríssimo em seu livro “O que é literatura? E outros escritos” (2001) .

Há duas grandezas a serem estabelecidas: o conjunto da produção intelectual (humana) que tem como objetivo sistematizar o conhecimento e o conjunto da produção intelectual que tem a expressão artística como fim último. Toda a produção que segue a primeira grandeza pode ser enquadrada como literatura de determinada área. Por exemplo, temos o conjunto de produção de conhecimentos da área da medicina, o que chamamos de literatura médica, outro da área da política, o que chamamos de literatura política, outro da área da filosofia, o que chamamos de literatura filosófica e assim por diante. Na segunda grandeza temos a literatura propriamente dita no que diz respeito à sua etimologia que classifica esta como a arte da palavra. É nela que estão os poemas, os romances, as crônicas, os contos, etc. Assim, podemos concluir essa primeira observação com a ideia de que o termo literatura pode ser utilizado em no mínimo dois sentidos diferentes: o de explicitar a sistematização do conhecimento em áreas específicas e o de classificar toda uma produção artística.

Nessa mesma direção, José Veríssimo aponta para o fato de que muitos entendem literatura como: “conjunto da produção intelectual humana escrita; conjunto de obras especialmente literárias; conjunto de obras sobre um dado assunto, ao que chamamos mais vernaculamente bibliografia de um assunto ou matéria”. (pg.23). A estas definições juntam-se outras, evidentemente.

A partir dessa perspectiva, o autor (aqui citado) direciona suas reflexões, sobretudo para uma preocupação conceitual voltada mais para a segunda grandeza, isto é, para o sentido etimologicamente mais natural do termo. Chama a atenção para o processo bastante interessante de definirmos como arte a expressão de emoções por meio da escrita, da pintura, da escultura e da música. O autor responde à sua forma que esta definição admite, por nos comover, os artifícios da língua, as maneiras de dizer, de modos de contar ou exprimir manifestações de juízos e sentimentos.

Para Veríssimo, há uma forma clara de compreendermos o que deve ser definido como literário ou não-literário. O critério de ausência ou presença de generalidade no pensamento e na emoção nos permite delimitar uma separação mais pertinente de diferenciação entre essas duas coisas. Seria o caso de dizer que as obras que apresentam generalidade no pensamento possuem aspectos científicos, sendo, portanto, não-literárias. Já as que não apresentam essa generalidade possuem valores artísticos, dessa forma, podem ser definidas como literárias. Trata-se de uma visão aparentemente reducionista, mas apresenta um contexto discursivo amplo. Com ela saímos de uma abordagem simplesmente conceitual e entramos na necessidade da história.

Para fazer essa distinção, Veríssimo apóia-se no pensamento de Moniz Barreto. Esta afirma que “tomar por objeto um aspecto ou manifestação da Vida, e exprimi-los de um modo cabal, torna literário um escrito” (pg.30). De acordo com Barreto, a obra literária trata do conjunto de assuntos que, ao seu turno, devem estar relacionados à impressão que se tem da vida.

Numa visão de conjunto, ele chega à conclusão de que se torna bastante seguro o fato de concebermos a definição por esse aspecto. Quer dizer, o poema nos suscita emoção, ao passo que esse não é o objetivo do tratado científico que da sua forma pretende suscitar inteligência e não emoção como aquele outro. “É a faculdade de provocar emoções que dá a um livro interesse permanente e conseguintemente condição literária”. (pg.31).

Para que nosso campo de visão fique mais amplo, podemos citar outra produção bastante pertinente sobre o que é literatura. É um livro de Marisa Lajolo, “O que é literatura” (1989) . Ela começa a obra mostrando divergências entre concepções sobre “literatura” e como essas divergências interferem nas reflexões que envolvem por um lado sua conceitualização e por outro os próprios seres humanos, em extensão. Para isso, começa citando dois autores: o sociólogo norte-americano Marshal McLuhan e o professor Vítor Manuel de Aguiar e Silva. Para McLuhan os escritores são “os últimos sobreviventes em uma espécie em vias de extinção”, pois, “já não serve para nada escrever e publicar livros” (p.07). Na contramão Vítor Manuel afirma que “a literatura não é um jogo, um passatempo (...), mas uma atividade artística que, sob multiformes modulações, tem exprimido e continua a exprimir, de modo inconfundível, a alegria e a angústia, as certezas e os enigmas do homem” (p. 07).

Nesse ponto, Marisa ressalta o fato de que estes dois autores são intelectuais e formaram – cada um por si – um juízo culto. Entretanto, as perguntas e respostas sobre o que é literatura ultrapassa qualquer intelectualismo e na multidão de pessoas um e outro pergunta-se já obtendo a resposta, também por si próprio sobre o que é literatura. Por isso, as “perguntas” são “permanentes” e as “respostas”, “provisórias”.

Nesse sentido, “será que é errado dizer que literatura é aquilo que cada um de nós considera literatura?” (p.10). Podemos questionar se é literatura um simples poema que alguém escreve num papel e mostra a um número reduzido e pessoas. Se é literatura um romance, história de bruxas, peças de teatro igualmente desconhecidas, como também algum dos livros conhecidos de Jorge Amado e Vinícius de Morais ou um texto escrito em spray em alguns dos muros de edifícios da cidade. “Será que tudo isso é literatura? E, se não é, por que não é? Para uma coisa ser considerada literatura tem de ser escrita? Tem de ser editada? Tem de ser impressa em livro e vendida ao público?” (p.14).

“A resposta é simples. Tudo isso é, não é e pode ser que seja literatura. Depende do ponto de vista, do sentido que a palavra tem para cada um, da situação na qual se discute o que é literatura” (p.15).

Fato é que “a obra literária é um objeto social”. E é assim porque nasce da relação social ou comunicativa entre autor e leitor.

Atrevo-me a dizer que literatura, na verdade, só existe por haver esse intercâmbio social. Não obstante, seja o conceito utilizado para explicitar a sistematização do conhecimento em áreas específicas, seja para exprimir o fazer poético não podemos compreender a sua contextualização apenas por esse aspecto. “Para que um texto seja considerado literatura (e aqui talvez, alguns leitores gostassem de uma inicial maiúscula... Literatura) é preciso algo mais do que livre trânsito entre seu autor e um eventual leitor” (p.17).

Como estamos falando do processo de dar sentido a um conceito (a saber, o que é literatura), há outro elemento que deve ser inserido nessa reflexão sem o qual nada disso seria possível. Refiro-me a linguagem. Ela sempre foi algo que fascinou o homem. Desde os primórdios da existência humana sua característica de nomear as coisas sempre esteve marcada por um processo de simbolização, sons e sinais gráficos. Nesse uso da linguagem há uma intensificação na relação entre os seres humanos e as coisas que o cercam.

Assim, o homem compreende que os nomes não são as coisas. E que a relação linguagem/mundo ora aumenta, ora diminui a “distância” e a “convenção” entre elas. É nesse exato momento que nasce a literatura. Quer dizer, ela surge na manifestação mais radical da linguagem, e parece fazer o percurso de sair do lugar comum para entrar numa complexidade intelectual marcada pelo uso de diversos símbolos ou conceitos linguístico.

Essa afirmação última (de que literatura nasce da linguagem) merece aqui uma informação mais específica. Não é o uso deste ou daquele tipo de linguagem que vai configurar a literatura. O que a configura é a relação que as palavras estabelecem com o contexto, com a situação de produção e leitura. É exatamente esse movimento o que instaura a natureza literária de um texto ou obra. Assim, não nos é possível falar em uma diferenciação que, por sua vez, separe, por exemplo, linguagem literária da linguagem coloquial. Portanto, o que torna a linguagem fundamento ou ponto de partida da literatura é a situação de uso linguístico no sentido mais amplo de criação artística.

Depois dessa exposição, podemos observar claramente que independente da definição do conceito, parece ser quase inquestionável a afirmação de que a literatura tenha um “poder transformador”. Esse “poder” reside no fato de que uma literatura, por exemplo, ainda que produzida por uma elite e a ela destinada não se limita apenas a ela – como vimos na historiografia literária. Em casos diversos ultrapassa os limites, as margens e alcança as camadas marginalizadas que estão distantes dos círculos oficiais da cultura. Essa seleção e exclusão quase que completa das camadas populares do mundo literário oficial teve seu ponto mais profundo na Idade Média e atravessou séculos reafirmando cânones em detrimento das manifestações populares como foi o cordel.

Mas, diferentemente da literatura feita com exclusividade e destinada a uma elite, – como foi o caso da Idade Média e dos séculos seguintes até chegar ao Romantismo – no movimento romântico as concepções do ser humano e da realidade no âmbito da literatura atingiram um público mais amplo. Romances e poemas, por exemplo, foram publicados em jornais de grande circulação, por sua vez, alcançando um número maior de pessoas. Uma nova cultura e uma nova linguagem começaram a ser retratadas no Romantismo que, da sua forma, não só representava o homem, mas a natureza desse homem, o mundo que ele estava inserido – assim também como abriu margem para a criação de outro mundo através da idealização artística.

Com isso, podemos concluir nossa observação com três coisas específicas: que literatura pode ser definida como o conjunto de obras de terminada área de conhecimento ou qualquer produção específica que trate a linguagem de forma artística. Além disso, pudemos perceber que apesar de haver diversas definições sobre o que é literatura, podemos chegar a uma compreensão segura sobre o assunto. E por último, literatura nem sempre foi algo acessível ao público, infelizmente. Mas, do Romantismo até nossos dias, muitos foram os passos na direção de romper com isso. Ao longo da história a literatura sempre mostrou que tem um imenso poder não só para romper com paradigmas, mas também para transformar realidades.

Referências

LAJOLO, Marisa. O que é literatura. 10. ed. - São Paulo: Brasiliense, 1989.

VERÍSSIMO, José. Que é literatura? E outros escritos. São Paulo: Landy, 2001.

(Texto retirado do livro "Ensaios Literários e filosóficos")

https://clubedeautores.com.br/livro/ensaios-literarios-e-filosoficos

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 08/10/2020
Reeditado em 08/10/2020
Código do texto: T7082508
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