A vaca olhando a lua

Já viram uma vaca olhando a lua? Acho que nem eu vi. Ou, se vi, não percebi. Mas imagino a cena: durante a noite, a vaca com as patas dobradas e o peso do corpanzil placidamente apoiado no solo macio do relvado, o pescoção elegantemente contorcido para trás, ela deslumbrada com o enorme disco de prata alteando-se no horizonte, pulverizando a paisagem campestre com aquele luminoso polvilho argento.

Uma cena cheia de significados. O início de noite enluarado no campo já é algo a inspirar armistício e devaneio. A vaca, um bicho pacífico, herbívoro, sereno, símbolo sagrado de paz e fertilidade no Oriente. Um dia, num futuro imprevisível, ainda nos penitenciaremos por incluirmos em nossa dieta alimentos que não sejam os vegetais e grãos que a natureza tão generosamente nos oferece. Ainda haveremos de compreender que a mesma superfície de terreno que usamos para apascentar umas poucas reses poderia nos produzir uma quantidade imensamente maior de alimento vegetal, mais saudável e com menor corrosão do solo e da alma.

A vaca repousada sobre o terreno, mansa na sua animalidade, com o pescoção sem nenhum excesso vigorosamente contorcido e o olhar embevecido observando nosso indecifrável satélite, deve inspirar-nos poesia e desafetação. Mesmo a rês, tida por nós como ignara, enleva-se fitando a grandeza e a beleza do firmamento. A lua está além de nosso planeta, de nossa realidade terrena, de nossa tacanha avareza. A lua é parte do céu, o início do infindável. Como fica a natureza bovina perante tal grandeza? E quem somos nós, pretensiosos seres humanos, perante a grandeza da lua, do universo, o despojamento da vaca?

Um dos exercícios da prática chinesa do Tai-Chi Chuan tem justamente o nome de “a vaca olhando a lua”. Outro nome para o mesmo exercício é “olhando para trás e deixando para trás”. Deixando o quê para trás? Dizem que as preocupações, os rancores, a tristeza, os arrependimentos, a ansiedade, a inveja, a raiva... Tudo aquilo que não nos ajuda em nossa caminhada, ao contrário, só faz nos sobrecarregar de pesos, totalmente inúteis, desnecessários.

A vaca olhando a lua parece estar encarnando bem isso: a leveza da despreocupação, da confiança, a temperança da humildade e da bondade, o firme pé no chão que para os chineses é representado pelo elemento terra, aliás, o mesmo que, no horóscopo ocidental, corresponde ao signo de Touro. Alguém já viu uma vaca disputando com outra uma touceira de capim? Nunca vi. Mas já vi muitos homens brigando por alguma inutilidade, ou por algo cujo valor só existe nas fantasias e ilusões das artificiais convenções que nos deleitamos em inventar.

Tão humano que sou, invejo a vaca olhando a lua. Ela se basta, e sonha com o universo.