- DISCURSO DOS QUATRO ELEMENTOS
Zaratustra leu e releu a oração das quatro direções e achou-a bastante apropriada para o que estava sentindo em seu espírito naquele momento. Depois traçou um círculo na terra e dividiu-o em quatro segmentos orientados em quatro direções: Norte, Sul, Leste e Oeste.
“O homem” pensou, “é um produto dos quatro elementos. Ele é feito de Ar, Terra, Fogo e Água. Por isso seu espírito caminha em quatro direções. Para o Norte ele se integra ao ar que oxigena seu sangue e dá sustância ao seu corpo. Para o sul ele se volta para a terra, que dá a vida e a cura para todos seus males. Para o lLeste ele saúda o sol, que lhe aquece o sangue e ilumina o seu caminho. Para o Oeste ele se volta para o oceano, de onde saiu e de onde retira a sustância da sua própria existência, que é a água. O homem deve honrar os quatro espíritos que presidem os quatro elementos. Zaratustra vai fazê-lo, começando com o Espírito do Sul, que corresponde ao elemento Ar.”
Enquanto se dirigia para a ponta do quadrilátero que indicava a direção sul, Zaratustra dizia para si mesmo: “Por isso há quem identifique o ar como o espírito vivificante que habita o corpo humano e há aqueles que ensinam que o homem foi feito do barro da terra e animado pelo sopro criador de um Deus. Interessante metáfora é essa, mas Zaratustra não comunga do significado que ela sugere. Pois ele não vê o homem como um milagre produzido por um Deus, mas sim como o resultado de um processo orientado pelas leis que comandam a natureza. Por isso Zaratustra ensina a doutrina da superação do pequeno homem limitado pelos valores de uma civilização que a acorrentou a um destino abjeto e servil e o concita a buscar o super-homem.”
“Mas há alguma verdade nessa doutrina porque o ar é o elemento que permite a elevação do espírito humano para além dos estreitos limites que a sua imaginação, empobrecida pelos louvores à uma humildade envilecida e castradora, o mantém. Pois com toda a certeza que a sabedoria de Zaratustra conseguiu reunir, o espírito humano precisa de ar para se elevar. E é verdade que nada que pese mais do que o ar pode alçar-se acima das forças que atraem o homem ao seu apego aos bens materiais. Por isso, o homem superior não sucumbe às razões do ego, pois este só o leva a agir pelo ter e não pelo ser.”
“Não é por acaso que os grandes guerreiros têm como direção orientadora o Norte, e seu elemento é o ar. E sua estação preferida é o inverno. Por isso Zaratustra ama as estações glaciais e encontra conforto para seu espírito na brancura das planícies geladas. Porque essa é a estação do Guerreiro, cujo espírito está associado com os grandes espaços abertos, que mantém o sangue-frio quando está em face ao perigo e faz o sangue esquentar quando a necessidade de lutar se faz presente.”
Zaratustra se colocou de frente para o norte e respirou profundamente. Ergueu a cabeça, se colocando na posição de um guerreiro pronto para a luta. Foi então que ele viu, planando nos ares, uma águia, trazendo no bico uma serpente, cujo corpo se lhe enroscava no pescoço.
“São os meus animais”, disse ele, com um sorriso. “ O arrojo e a prudência se aliam no céu para mostrar a Zaratustra o caminho do super-homem”.
Depois de saudar o Espírito do Ar, recitando a oração que escrevera para ele e praticar a respiração da tranquilidade, Zaratustra dirigiu-se para o Sul, dentro do círculo que ele havia traçado na terra.
“Dirijo-me agora ao Grande Espírito do Sul, protetor de toda vida que nasce sobre a terra. Pois Zaratustra também sente as doenças do homem. Embora ele ensine a doutrina do super-homem, ele ainda não alcançou essa superação. Por isso precisa que o Espírito da Terra o ensine a curar-se a si mesmo. Vivi muito tempo entre os homens e adquiri todas as suas moléstias. Preciso agora reaprender todos os segredos da terra para que a nossa Grande Mãe possa de novo receber-me em seus braços e curar minhas feridas como a própria mãe biológica de Zaratustra fazia quando ele era menino e se feria em suas brincadeiras.”
Então Zaratustra voltou o seu rosto para o Sul e leu a oração que escrevera para ele. Depois abaixou a cabeça, até tocar sua testa na terra. E ali se pôs em profunda meditação. Ele sabia que o Grande Espírito da Terra é o que detém o poder de curar todos os males do corpo e do espírito. Pois é na terra que se encontram todas as propriedades dos reinos, mineral e vegetal, onde estão os componentes da medicina que cura.
Depois de meditar durante alguns minutos nessa posição Zaratustra levantou-se e pegou um pequeno tambor e começou a bater nele um compasso de forma ritmada. Depois pôs-se a dançar e a entoar um canto que soava como um mantra.
“ De fato, é preciso aprender a cantar e dançar. Só compreendo o homem em seu perfeito equilíbrio quando sabe cantar e dançar. Porque o canto e a dança ativam o Espírito da cura, e só o guerreiro que sabe curar-se a si mesmo pode entregar-se à batalha sem medo de ferir-se.De fato não há um Espirito guerreiro se com ele não aliar-se o Espirito da Cura. E ambos dançam e cantam em minha mente, e fazem Zaratustra sentir-se bem.”
Por mais de meia hora Zaratustra homenageou, com cantos e dança, o Espírito da Terra que se encontra na direção Sul. Depois acalentou a terra e as pedras sobre as quais pisavam os seus pés descalços e acariciou a grama que nascia no entorno do círculo onde ele praticava o seu ritual. Nesse momento, ele viu sair detrás de uma moita, a alguns metros do local onde ele estava, um cervo, que ao ver Zaratustra, parou e voltou para ele a sua bela cabeça coroada com uma vistosa galhada. O animal fitou-o por alguns instantes, depois bafejou e desapareceu rapidamente dentro do bosque espesso que circundava a caverna onde Zaratustra fizera a sua morada.
“Esse é o meu animal de cura” disse Zaratustra para si mesmo. “Pois são eles, os animais de quatro patas, aqueles que têm em seus organismos, com mais vigor e competência, a propriedade de curarem a si mesmos.”
Então Zaratustra voltou seu rosto para a direção Leste e recitou a oração que havia escrito para o Espírito que habita ele. Em seguida ergueu os olhos para cima e contemplou o sol que despontava no horizonte.
“Eis o nosso grande pai que surge no horizonte para iluminar os nossos caminhos que até agora estavam povoados de sombras. Sede o nosso guia e provedor dos nossos sonhos. Desperta em nós o espírito da criação e a virtude de poder dizer a verdade sem culpar nem julgar. Fazei-nos autênticos sem sermos irreverentes; ousados sem sermos temerários, criativos sem sermos irresponsáveis, imaginativos sem sermos quiméricos e joviais sem sermos irresponsáveis. Que possamos ter intuição, percepção e discernimento, pois esses são as virtudes do super-homem”.
Então Zaratustra começou a cantar uma canção antiga que havia aprendido com um mestre egípcio. Essa canção homenageava o sol nascente com belas palavras que deixavam seu coração leve e a sua mente fluída como nuvens no céu, que ora assumiam uma forma, ora outra. E Zaratustra percebeu que essa era a função do Espírito do Fogo, dado pelo Sol, que percorre a abobada do céu, iluminando a terra e despertando nos homens as visões do Ser.
“Com efeito” pensou Zaratustra, “não se pode respeitar um homem que não canta e não dança, porque se ele não é capaz disso, também não o será de sonhar. E são dos sonhos que nascem a emoção que nos leva a superar a estreiteza da tradição que nos limita e conforma. Se Zaratustra quiser que o povo o escute deve fazê-lo com música e danças, por que estas são veículos mais eficientes para transmitir mensagens do que o discurso. Decididamente, todo mestre precisa aprender a compor e a dançar, se quiser ser ouvido.”
E foi então que Zaratustra viu passar, rápido como um raio, à sua frente, um lagarto.
“Esse é o animal de poder do Espirito das Visões. Os animais de quatro patas, leves e ágeis. Parecem frágeis, como são todos os sonhos e visões do espirito visionário, mas são eles que traçam o caminho do super-homem.”
Então Zaratustra voltou-se para o Oeste, onde, do ponto em que estava, se localizava o grande oceano, no qual habitava o Espírito das Grandes Águas. As águas que formam a chuva, os lagos, as geleiras e toda a massa líquida da terra, espalhada em mares e oceanos. O avô Oceano, útero da vida e nutriz da terra. “Com efeito” pensou Zaratustra, “estão certos aqueles que atribuem ao Oceano a qualidade de grande Mestre da humanidade. Pois foi nas suas águas que medraram a primeiras sementes de vida. A visão do grande Oceano desperta em minha mente o poder de aprender e ensinar.E quando me vem essa sensação de poder, vejo que devo estar aberto aos resultados e não ficar preso a eles. Porque o bom resultado é tudo que se busca em qualquer ação. Mas, obtido esse resultado, é preciso olhá-lo como uma etapa vencida de um processo, e imediatamente olhar para a frente em busca de outro. O super-homem não vive no passado. Ele o utiliza como fonte de sabedoria e experiência, mas não se apega a ele. Vive no presente, contemplando o futuro. Assim, seu espirito tem clareza e objetividade; e da aceitação do natural e do imponderável, ele se torna ponderado e adquire a verdadeira humildade, que não é a conformidade lastimosa do covarde que tudo aceita porque tem medo de lutar, mas sim, a força do valente que tem o valor que subjuga o fraco, mas dele só faz uso para a elevar-se acima do comum e do conforme.”
Com esse pensamento Zaratustra fechou seu pensamento acerca do que devia ser o homem novo.
“;Sim” concluiu ele “. Confiante, desapegado e flexível. Eis o Espírito do homem novo. O Espírito Mestre dos novos tempos.”
Quando terminou o seu ritual de saudação ao Espírito das Águas, Zaratustra teve fome. E naquele dia ele comeu apenas peixe, porque esse era o animal de poder do Espírito Mestre das Águas.
Com isso Zaratustra completou o seu ritual de homenagem aos quatro espíritos da Natureza. Sentia-se tranquilo e feliz.
“De fato” concluiu, “ tudo que o homem precisa para superar a si mesmo e chegar ao super-homem está nele mesmo. A natureza já lhe deu tudo que necessita para cruzar essa ponte. Mas para fazê-lo precisa ele submeter-se as três transformações do espírito.”
(continua)