Todo Incogniscível 4 - Falácia da Objetividade

INTRODUÇÃO

A intuição cética, isto é, a intuição de que o acesso à Verdade é impossível surgiu diversas vezes e criou escolas filosóficas na Índia, na China, na Grécia clássica… Já que a perspectiva cética é a mais adequada para lidarmos com as limitações do nosso conhecimento (o que é o objeto desta série de ensaios ‘O Todo Incogniscível) e é uma intuição relativamente recorrente, por que não é a perspectiva dominante na nossa sociedade? Um palpite é a ‘Falácia da Objetividade’, a qual criei neste ensaio.

COMUNICAÇÃO PARCIAL - SIGNIFICADO DA PALAVRA

Suponhamos que uma criança de oito anos vá ao mercado com a mãe e ela lhe peça para escolher três tomates maduros. A criança volta com três tomates vermelhos. A mãe examina cada um deles, recusa o mais firme e diz: meu filho, eu disse “maduros!”. A criança pega o tomate recusado e o troca por outro tomate, também vermelho, mas mais cheiroso e macio e o leva para a mãe. “Agora sim! Muito obrigada!”.

COMUNICAÇÃO PARCIAL - GESTOS

Suponhamos que no mercadinho de uma feira de produtores orgânicos (daqui de Brasília) há uma pessoa alemã. Ela aponta para as mandiocas, em seguida para sua carteira. A vendedora então mostra uma plaquinha com “R$ 12/kg”. A alemã aponta uma mandiocas pesa e a paga. Elas não falam a mesma língua, a alemã nunca viu uma mandioca na vida, mas a compra para ter uma experiência gastronômica.

COMUNICAÇÃO SE DÁ EXCLUSIVAMENTE NA MEDIDA EM QUE FUNCIONA - PALAVRA

No caso da criança e da mãe a comunicação se deu parcialmente. Houve uma intersecção entre as subjetividades (ou seja, houve uma intersubjetividade) sem a qual a comunicação é impossível. Entretanto houve também uma parte das subjetividade que a mãe tentou comunicar e ficou fora do campo de entendimento do filho - situação evidenciada pelo tomate insuficientemente maduro que ele trouxe. A interpretação da mãe é que o filho não entendeu seu comando (interpretação adequada). A interpretação do filho foi a de que o seu entendimento (a sua definição) de tomate maduro estava errada, portanto deveria ser alterada (interpretação adequada). Para ambos a comunicação funcionou apenas no aspecto específico em que ambos tiveram o mesmo entendimento. Em outras palavras, a comunicação funciona exclusivamente quando ocorre a intersecção do entendimento (intersubjetividade). A questão de que o entendimento da criança (de que um tomate vermelho seria considerado maduro pela maior parte das pessoas) é irrelevante. A disputa pela “essência” da maturidade do tomate é irrelevante. O ceticismo consiste nesta percepção: a de que a busca pelas essências é infrutífera.

COMUNICAÇÃO SE DÁ EXCLUSIVAMENTE NA MEDIDA EM QUE FUNCIONA - GESTOS

No caso da Alemã ela apontou para uma raiz com apenas uma vaga ideia do que aquilo seria. A pessoa que vendeu a mandioca tem uma história com aquela alimento, a consome desde a infância, relaciona à refeições com a família e com o esforço que teve em cultivar a mandioca. Ainda assim a subjetividade entre cliente e vendedora é suficiente para efetivar a transação comercial. Poderia se supor que a situação desta comunicação seja um exemplo extremo, pessoas de formação completamente diferente que nem sequer compartilham a mesma língua. Ao contrário, este é o exemplo típico de como se dá a comunicação: através de um mínimo de intersubjetividade que garante o funcionamento da comunicação. Qualquer intersubjetividade a mais é redundante - se a alemã soubesse articular em português a frase “Me venda aquela raiz de mandioca, por favor.” não faria a menor diferença naquele contexto (embora abrisse portas para outras comunicações).

A RIQUEZA DA SUBJETIVIDADE

A subjetividade de qualquer individualidade é extremamente rica: cada palavra, cada conceito, cada experiência, cada imaginação, cada hipótese são afetivamente carregadas. Isso vale tanto para as elaborações racionais (como um conceito) como para as intuições não racionalizadas (como uma experiência sobre a qual não pensamos a respeito). Cada conceito é como um nó em uma rede (ligado a outros conceitos), mas não como em uma rede bem comportada em que todos os nós tem a mesma quantidade de ligações e todas são equidistantes entre si. Cada nó exerce uma força atrativa diferente. Seria mais como uma galáxia: todos os corpos exercem gravidade proporcional à sua massa. Um sol exerce mais força do que uma lua, um sistema solar grande exerce mais força do que um sistema solar pequeno. Um corpo próximo exerce mais força do que um corpo distante (mesmo o sol sendo extremamente maior do que um planeta a força exercida por um planeta em sua lua é maior do que a força que o sol exerce).

ESPECIFICIDADE DA INTERSUBJETIVIDADE

A intersubjetividade consiste na intersecção das subjetividades. No exemplo da venda a mandioca: para quem vende significa um sustento, um trabalho, uma mandioca frita com cerveja ou uma venda. O conceito de ‘mandioca’ seria como um grande planeta no sistema de entendimento da vendedora. Para a alemã a mandioca se relaciona com ousadia, com exótico, com típico do Brasil, com experiência gastronômica, com aventura, com novidade e com raiz à venda. ‘Mandioca’ significa muito naquele contexto, naquela experiência, mas em relação ao sistema de entendimento da alemã seria como um pequeno cometa. Ainda assim há algo em comum no que ambas entendem, é uma raiz que é vendida como alimento - isto é o suficiente e o necessário para se efetuar a comunicação.

APERFEIÇOAMENTO DA TÉCNICA

A vida inteira aperfeiçoamos a técnica da comunicação. Aprendemos a elaborar as nossas falas, nossa entonação, nossos maneirismos de maneira a enfocar o que pode se tornar intersubjetivo - desta maneira excluímos diversas possíveis elaborações que seriam pouco eficientes (embora sejam elaborações que sob outros aspectos pudessem ser mais precisas ou mais ricas).

DURANTE A COMUNICAÇÃO PERCEBEMOS OS ASPECTOS COINCIDENTES (A INTERSUBJETIVIDADE) E IGNORAMOS OS ASPECTOS DIVERGENTES

Para cada pessoa cada conceito é carregado de afetividades e de ligações com outros conceitos, especialmente os conceitos que usamos no dia a dia - em que já tivemos a oportunidade de relacionar a diversas situações da própria vida e a diversos outros conceitos. Na comunicação a intersecção de subjetividades é mínima (pois cada pessoa relaciona os conceitos com suas próprias experiências subjetivas). Entretanto, dado que a comunicação funciona, as diferenças nas atribuições de afetividades (ou seja, as diferenças em cada subjetividade) são ocultas. Ao passo que as semelhanças são explícitas.

INDUÇÃO

Como mostrou David Hume nós, assim como todos os mamíferos aprendemos por indução. Se uma situação se repete e produz o mesmo resultado diversas vezes atribuímos instintivamente uma relação de causa/consequência: se diversas vezes jogo uma bola em outra ela todas as vezes elas colidem eu aprendo aprendo. Tal aprendizado (que duas bolas se chocando colidem) se dá por indução. Se eu nunca tivesse visto um encontro de dois sólidos em movimento o resultado do encontro entre eles seria imprevisível: um engoliria o outro? Apenas mudariam de cor? Se transformariam em um sapo? Instintivamente usamos experiência como um guia para o futuro, tal processo (de generalização de experiências passadas em perspectivas futuras) se chama indução.

INDUÇÃO DE INTERSUBJETIVO PARA OBJETIVO

Em cada comunicação percebemos o aspecto que há de intersubjetivo (aspecto necessário para a comunicação). Dada esta experiência intuitivamente generalizamos da seguinte forma: nesta comunicação o aspecto ao qual me refiro é intersubjetivo, nesta outra outra comunicação o aspecto ao qual me refiro também é intersubjetivo, nesta também…. Se em toda comunicação existem aspectos intersubjetivos logo há existência objetiva das coisas às quais me refiro:

Intersubjetivo 1 + Intersubjetivo 2 + Intersubjetivo 3 + Intersubjetivo 4…. => Objetivo

A FALÁCIA DA OBJETIVIDADE

A generalização de “intersubjetivo 1, intersubjetivo 2, intersubjetivo 3… -> objetivo” é uma falácia pelos seguintes motivos: primeiro porque é uma indução (ou seja, a conclusão não é uma dedução lógica das premissas). Segundo porque cada conceito ao qual nos referimos é uma construção individual, particular. Ficamos cegos a este aspecto porque a comunicação evidencia apenas o aspecto intersubjetivo do que é comunicado. O caráter contingente de cada conceito fica patente quando vemos que os conceitos são diferentes temporalmente (a explicação que Aristóteles dava a algo caindo não era o conceito de gravidade). Também são diferentes regionalmente - o que entendo por geleia é diferente do que entende um gaúcho (no sul fazem uma distinção entre geleia e um outro tipo de doce de compota que, para mim, é tudo geleia). Da mesma maneira são diferentes entre individualidades - cada uma atribui um sentido específico de acordo com suas experiências.

RESUMO

Em cada comunicação nos concentramos em entender o que a outra individualidade comunica, ou seja, nos esforçamos para prestar atenção àquilo que ela diz e que eu posso entender (nos concentramos no que é intersubjetivo). Deste modo ignoramos toda a riqueza de sentidos e de afetividades que a outra atribui a cada palavra, conceito, sentido, hipótese (ou seja lá o que estiver sendo comunicado). Cada comunicação apenas funciona na medida em que a subjetividade é compartilhada (intersubjetividade). Em cada comunicação percebemos a intersubjetividade e fazemos a seguinte generalização: “Já que nesta comunicação havia algo intersubjetivo, nesta também e também nesta, oras, então a comunicação ocorre devido a algo que é objetivo.” Isto é, concluímos falaciosamente pela existência de entidades de existência independente de qualquer interpretação.

Isto é uma falácia porque ignora que cada individualidade passa a vida inteira aprimorando a técnica de se concentrar no que é intersubjetivo para tornar a comunicação possível. E não é apenas cada individualidade! O conjunto de individualidades aprimora os conceitos, palavras, modos de pensar: várias gerações de pessoas aperfeiçoam a cultura de maneira a facilitar a intersubjetividade. E não são apenas as culturas que evoluem no sentido de favorecer a intersubjetividade! O nosso próprio corpo orgânico (assim como o corpo dos animais e o hardware dos computadores) é resultado de um processo de evolução. Processo este pautado (entre outros) pela capacidade de nos comunicarmos.

CONCLUSÃO

Aceitar a existência da Falácia da Objetividade é aceitar que a comunicação não se dá ancorada pela existência objetiva das coisas. Se aceitarmos também que o domínio de um saber não implica em ter acesso à Verdade (Todo Incogniscível 2 - O lastro do entendimento) a pessoa está a dois passos de se tornar um cético. Entretanto suponho que a dificuldade em elaborar uma narrativa em que o conhecimento cético substitui o conhecimento do crente (crentes são aqueles que acreditam em existências objetivas, essências, átomos, universais…) ainda seja uma dificuldade para abraçar inteiramente o ceticismo (O Todo Incogniscível 1 - Falácia da Falta da Narrativa). De maneira que nesta série de ensaios também irei me dedicar à construção do conhecimento a partir de uma perspectiva cética, especialmente mostrando que teorias consagradas (como o negativismo de Popper) são céticas. Ao fim espero que quem me acompanha decida optar por uma maneira cética de enxergar o mundo e tomar decisões, tanto pessoais como políticas.