Esquizoanálise e Autopoiese: Rosto, Raspagem e Reterritorialização.

Cadeira de Introdução à Esquizoanálise.

Universidade de Pernambuco(UPE).

Prof. responsável: Djailton Pereira da Cunha

Texto Sintético por Raul Magalhães Brasil.

Introdução

I. O Corpo, O Rosto e O Self: O Que Seria Tudo Isso?

Todas as abordagens psicológicas têm alguma concepção do que seria o self, isto é, o “Eu”. E esse Eu está sempre atrelado a algo que não ele mesmo, nunca auto-determinante mas sempre determinado, o self nunca está livre, encontra-se sempre enclausurado e suas prisões são tão intrínsecas que chegam a ser invisíveis. A estas prisões invisíveis a esquizoanálise — perspectiva psicológica e filosófica fundada por Deleuze e Guattari — chamará de processos subjetivadores, estes, sempre calcados e dirigidos pela lógica maquínica, reducionista e multiladora que produz o inconsciente capitalistico, essencialmente normalizador.

Ora, se o nosso self em momento algum construiu a si mesmo ou determinou a si mesmo, como então podemos chamá-lo de “nosso”? A verdade é que não podemos. Nosso self é um fenômeno de um self mesmo, isso é, o nosso si está fora-de-si, o nosso eu não é eu-mesmo, somos um ser que ainda não-é. Todos esses processos multiladores construiram para nós um rosto e também um corpo: ou, aquilo o que chamamos de identidade, sendo esta apenas uma reprodução fenomênica e despotencializadora da nossa singularidade. Utilizamos esse rosto para interpretarmos a nós mesmos no teatro social, lugar onde nos reduzimos infinitamente a um “Eu”, que por sua vez é apoucadíssimo. Esse rosto, ou melhor, essa máscara, sufoca aquilo o que há por baixo dele, a nossa singularidade de potência infinita, porém, jamais explorada.

O que seria o nosso rosto sem o seu corpo? O corpo é onde se encontram as coisas mais logarítimizadoras da experiência humana: os órgãos. Os órgãos são as vias pelas quais a nossa singularidade tem sua experiência normalizadora de mundo. Isso é: essa maneira determinada, constitutiva, modelizada, massificante e mutiladora de viver a experiência humana que o inconsciente capitalístico nos impõe. Que permeia não só a nossa forma de pensar e agir, mas também a forma com a qual experienciamos cognitivamente o próprio mundo.

Sendo o órgão uma produção normalizadora, a esquizoanálise procurará uma produção absolutamente singularizadora, buscando abolir esses órgãos, criando para este indivíduo, este eu-fora-de-si, um Corpo-Sem-Órgãos.

Desenvolvimento.

II. O Esquizoanalista Enquanto Micromecânico.

Quando lançamos olhar ao indivíduo determinado por esses processos subjetivantes, percebamos algo: esse arranjo está desarranjado, como diria Marilyn Manson. Sua experiência normalizadora, pré-estabelecida, semiótica e moralizante produz esse indivíduo-capitalista(ou melhor, capitalizado) que é também o Indivíduo Endividado(sempre em falta de bens ou de sentido) e o Indivíduo do Cansaço(de Byung-Chul Han: ansioso, mentalmente exausto).

O homem foi construído da maneira errada. Não é preciso extensa ponderação para entender que essa maneira com a qual o corpo foi construído é corrosiva e decompositora, há nesse sujeito um animálculo, que precisa ser raspado.

O esquizoanalista deve intervir nessas sínteses ilegítimas do inconsciente maquínico, procurando consertar essas máquinas, desentupindo esses canos que deveriam jorrar fluxos desejantes. Ele deve olhar para essa configuração determinada desse desejo e desarranjar esse arranjo-desarranjado, falamos aqui de desterritorialização, do corpo, do self, da mente. Literalmente desrrostificando o indivíduo, arrancando fora esses seus órgãos cancerígenos, ou melhor, desorganizando-os. O esquizoanalista nada mais é que um mecânico, um micromecânico que estabelece pontos de fuga do inconsciente maquínico em relação à máquina social, criando uma deriva continental potencializadora que busca separar absolutamente o vir-a-ser múltiplo do indivíduo desse seu rosto-normalizado e logaritmizado. O que se procura é desvincular-se desses processos subjetivos determinantes dando voz à própria voz, isso é, dando voz ao ranger que têm os fluxos desejantes e através da experiência criativa e inventiva criar para si um ser que é eu-mesmo, um vir-a-ser legítimo de sínteses absolutamente legítimas. Assim, o indivíduo terá esse poder da autopoiese, esse poder de criar para si um eu-aposteriorístico, pós-estabelecido, genuíno, em suma, um eu que determinou a si mesmo.

E esse processo molar, micromecânico se dá necessariamente pela Tarefa Positiva que tem a esquizoanálise, essa tarefa destrutiva-construtiva (ou triádica como apontaria Domênico Hur). Pois, ora, se o homem foi construído da maneira errada, deve-se, portanto, destruí-lo. Tombar esse monumento neurótico e, dos seus restos, construir algo inteiramente novo, experimentando as infinitas possibilidades com as quais suas partes podem se rearranjar e se agenciar. Desterritorializar para reterritorializar, tornar a imagem em movimento, derrubar a árvore para plantar rizomas isso tudo através de uma revolução que deve ser, sempre, absolutamente molar e micropolítica.

Conclusão.

III. O Primeiro Esquizoanalista: Antonin Artaud e Seu Corpo-Sem-Órgãos.

Alguns apontariam como equívoco citar Antonin Artaud como o primeiro esquizoanalista, talvez a predileção seja pensar em Nietzsche para tanto ou, quem sabe, em Max Stirner. Isso porque, temporalmente falando, foram os primeiros a pensar em uma obra que aponta para uma esquizo-revolução de si, para novas formas de viver, Nietzsche com seu Zaratustra e Stirner com seu O Único e a Sua Propriedade. Mas perceba: a terminologia usada foi “pensar em uma obra” e não “ ‘viver’ uma obra”. Nietzsche e Stirner são mais como profetas, preâmbulos ou presságios daquilo o que podia a suas obras. Nietzsche fala do Übermensch(Super-Homem), mas não o é, e Stirner fala do anarquismo individualista, mas não o pratica. Há um claro abismo entre o Homem e a sua Obra; como diria Nietzsche em Ecce Homo: “Uma coisa sou eu, outras são meus escritos”.

Mas o que acontece quando o Autor é a Obra? Acontece Artaud. Esse corpo-acontecimento singular fez de si a sua própria obra de vida e pôs em prática como ninguém essas formas potencializantes de viver e experimentar o mundo. Sua influência permeia toda a segunda metade do século XX. Na arte influenciando Francis Bacon e o Butoh e na filosofia influenciando Michel Foucault, Deleuze e Guattari. Mesmo sendo tão influente, porque é tão desconhecido? Ora, sua obra está em si e é praticamente insondável, ele, como ninguém deu voz ao inominável daquilo o que há na experiência humana.

Seus episódios manicomiais de loucura beiravam a própria esquizofrenia, e na arte ele escapava de si para então se reencontrar, poeta, desenhista, ator, não se restringia a uma forma de experimentação de mundo, mas talvez seja no teatro que Artaud encontrou a sua enésima potência. É com o seu incrível texto-poema “Para Acabar Com o Juízo de Deus” dramatizado através de uma transmissão radiofônica que ele mostra ao mundo o tão influente conceito de corpo-sem-órgãos, e a necessidade de destruir esse homem empobrecido para então se reconstruir por inteiro. Raspar esses órgãos e jogá-los fora ou reorganizá-los!

Quando se fala de Juízo de Deus, prepotentemente se pensa no Deus cristão, absolutamente não! Aqui Artaud fala da maneira apriorística com as quais os processos subjetivantes ditam como devem acontecer os processos intelectivos e de sensibilização, o que ele ataca é ao juízo em si e a como esse juízo sufoca e mutila as infinitas possibilidades da experiência humana.

Em consonância com Marco Antonio Machado, eu afirmo: esse conceito[o de Juízo de Deus] muito se aproxima com os conceitos de Intuição em Henri Bergson e Pré-Individual em Gilbert Simondon, autores que apontam a necessidade de uma ruptura com o modelo organicista, pré-estabelecido e apriorístico com a qual experienciamos a nossa singularidade. Para que, com tal ruptura, possamos produzir nossa própria experiência de vida e nossos próprios valores, transvalorizando esses valores sociais mutiladores e logaritmizadores, desrrostificando nossos rostos, desorganizando nossos órgãos para que possamos, finalmente, nos tornarmos a nós mesmos!

Raul Brasil
Enviado por Raul Brasil em 21/09/2020
Código do texto: T7068289
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