A IMPORTÂNCIA DO SIMBOLISMO ALQUÍMICO PARA JUNG

A importância do simbolismo alquímico para o pensamento de Jung se deve ao fato de que este conteúdo riquíssimo ser um produto de nossa psique inconsciente. Tal simbolismo é responsável por trazer um material fundamental para a compreensão dos conteúdos mais profundos do psiquismo humano, ainda que os sábios da alquimia não tivessem entendido tão bem o papel dessa ciência para o estudo de tais fenômenos de natureza psíquica, pois estavam mais focados na transmutação da matéria e dos conhecimentos ocultos relacionados.

A alquimia é uma palavra de origem árabe que está associada com a terra de solo negro. Ela também é derivada de uma técnica egípcia de embalsamento, tingimento de tecidos, joalheria e cosmética. No grego, a palavra, chymia se refere a fundição ou fusão de metais, cujo objetivo é obter uma nova substância. Desse encontro de duas tendências trabalhadas pela ciência química, surge uma matéria mais aperfeiçoada.

Marie-Louise Von Franz, no seu livro "Os sonhos e a morte" (um livro que aborda uma visão da psicologia analítica sobre os múltiplos simbolismos do estágio final da vida), a respeito dos textos alquímicos mais antigos do ocidente vai dizer que: "são originários do Egito e, portanto, estão desde o início, imbuídos da ideia de vida após a morte; pois, pomo é sabido, a cultura egípcia voltava-se em grande parte para a morte e o que depois dela ocorria. Os relatos sobre a arte da mumificação e a liturgia dos mortos são os mais significativos documentos a este respeito".

No livro ''Psicologia e alquimia'', Jung dá uma boa definição a respeito da alquimia: ''Como sabemos, a alquimia descreve um processo de transformação química e dá inúmeras instruções para a sua realização. Apesar de que dificilmente dois autores sejam da mesma opinião no tocante ao decurso exato do processo e à sequência dos seus estágios, a maioria concorda sobre os principais pontos, desde os primeiros tempos, isto é, desde o começo da era cristã''.

Mais adiante, referente a natureza psíquica da obra alquímica, o nosso autor estudado comenta de uma maneira bem elucidativa: ''O opus alquímico não concerne em geral aos experimentos químicos, mas a algo semelhante aos processos psíquicos, expresso numa linguagem pseudoquímica. Os antigos conheciam aproximadamente o que eram os processos químicos; deviam saber pelo menos que o que praticavam não era química comum''.

Nos tempo mais remotos, em especial na idade média, bem como na era posterior, na era moderna, a alquimia se refere a tentativa de transformar materiais pesados, como chumbo ou mercúrio, em substâncias de maior leveza e valor, como por exemplo, o ouro. Não deixa de ser uma ciência mística que reunia várias áreas do conhecimento, como medicina, física, química, arte, metalurgia e geometria, e que estava, portanto, preocupada em criar a pedra filosofal. Alguns cientistas até buscavam desenvolver o elixir da vida, cujo intento era encontrar uma forma de obter a imortalidade ou o rejuvenescimento. A respeito dos alquimistas na sua tentativa de transformar a matéria em algo mais valioso, o nosso autor estudado vai dizer na mesma obra que: ''Seu trabalho com a matéria constituía um sério esforço de penetrar na natureza das transformações químicas. No entanto, ao mesmo tempo era- e às vezes de modo predominante- a reprodução de um processo psíquico paralelo; este podia ser mais facilmente projetado na química desconhecida da matéria, uma vez que ele constituía um fenômeno inconsciente da natureza, tal como a transformação misteriosa da matéria. A problemática acima referida do processo do desenvolvimento da personalidade, isto é, do processo de individuação, é expressa no simbolismo alquímico''.

Saindo do campo físico e ainda para o plano psíquico, poderíamos pensar a alquimia como a transformação operada pelo encontro de dois seres, encontro esse importante para uma boa relação psicoterapêutica. Não é toa que Jung, no livro ''A prática da psicoterapia'', aborda a questão do encontro de dois seres como responsável pela mudança não só do analisando, como também do analista: ''O encontro de duas personalidades assemelha-se ao contato de duas substâncias químicas: se alguma reação ocorre, ambos sofrem uma transformação.''

O simbolismo da alquimia sempre nos remete a algo que passa por um processo de evolução, de renascimento tal como uma Fênix ou por um caminho onde as transmutações profundas são operadas. E o que torna interessante para a psicoterapia é o fato de que tais imagens evocadas por ela (as quais podem aparecer numa sessão terapêutica) serem integrantes do processo de evolução e mudança que o paciente passa no decorrer do seu tratamento psicoterapêutico, imagens essas que guarda grandes semelhanças com os símbolos alquímicos. Como a alquimia visando a transformação de algo no seu estado bruto em algo valioso, assim também podemos pensar sobre o paciente no processo terapêutico que o conduz à autonomia e à individuação, processo esse cujo significado nos remete ao autoconhecimento e a integridade pessoal.

Na introdução do livro ''Anatomia da psique'', vemos justamente essa ideia expressa por Edward F. Edinger de maneira bem clara e objetiva: ''O que toma a alquimia tão valiosa para a psicoterapia é o fato de suas imagens concretizarem as experiências de transformação por que passamos na psicoterapia. Tomada como um todo, a alquimia oferece uma espécie de anatomia da individuação. Com efeito, suas imagens serão mais significativas para aqueles que tiverem tido uma experiência pessoal do inconsciente''. Jung vai chamar essa experiência pessoal do inconsciente como função transcendente, até porque não é qualquer um que consegue alcançar um equilíbrio mediante tendências tão opostas e inconciliáveis, e uma harmonização com conteúdos tão divergentes. Sabemos, pois, que o que a consciência aspira, muitas vezes, nem sempre consegue estar de acordo com nossas tendências inconscientes, daí os grandes conflitos da alma para confirmar as nossas suspeitas.

No seu livro autobiográfico, Memórias, sonhos e reflexões, Jung deu seu próprio testemunho sobre a influência da alquimia para a compreensão dos fenômenos psíquicos: ''Cedo percebi que a psicologia analítica coincidia de modo bastante singular com a alquimia. As experiências dos alquimistas eram, num certo sentido, as minhas próprias experiências, assim como seu mundo era meu mundo. Foi, com efeito, uma descoberta marcante: eu encontrara a contraparte histórica da minha psicologia do inconsciente. A possibilidade de comparação com a alquimia, bem como a cadeia intelectual ininter- rupta que remontava ao Gnosticismo, davam-lhe substância. Quando me debrucei sobre aqueles antigos textos, tudo encontrou o seu lugar: as imagens-fantasia, o material empírico que recolhera em minha prática e as conclusões que deles retirara. Eu começara a entender o significado desses conteúdos psíquicos a partir de uma perspectiva histórica.''

Com efeito, há inúmeros textos onde Jung se preocupou em estudar a fundo o mundo gnóstico repleto de conhecimentos alquímicos, bem como as religiões orientais, como forma de lançar uma luz sobre o significado do que seria o processo da individuação e o símbolo do si-mesmo. No livro Psicologia e Alquimia, vemos uma excelente explicação da fenomenologia desse conceito que remete a totalidade: ''O si-mesmo não só é definido, como também comporta paradoxalmente o caráter do definido e até mesmo da unicidade. Provavelmente esta é uma das razões pela qual as religiões que foram fundadas por personalidades históricas se tornaram religiões universais, como no caso do cristianismo, do budismo e do islamismo. A inclusão de uma personalidade humana, única (especialmente quando ligada à natureza divina indefinível), corresponde ao individual absoluto do si-mesmo, que liga o único ao eterno e o individual ao mais geral''. Já no livro ''Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo, o psicólogo suíço relaciona o símbolo de peixe com a figura arquetípica de Cristo, o qual não deixa de ser a personificação do arquétipo da totalidade e do Self: ''O símbolo do peixe representa, portanto, uma ponte entre a figura histórica de Cristo e a natureza psíquica do homem na qual repousa o arquétipo do redentor. Por esta via, Cristo se converteu na experiência interna, no 'Cristo em nós' ''.

Uma das maneiras de alcançarmos a compreensão de nossa totalidade psíquica, é realizarmos a função transcendente, ou seja, a união da consciência com o nosso inconsciente. Um símbolo que tem haver com essa unificação é, sem dúvida, a pedra, símbolo de totalidade e do si-mesmo. No mesmo livro, Aion, vemos que: ''A união dos contrários, na pedra, só será possível se o próprio adepto se tornar uno. A unidade da pedra corresponde à individuação, a unificação do homem. Diríamos que a pedra é a projeção do si-mesmo unificado. Essa formulação é psicologicamente correta. Mas não leva suficientemente em conta o fato de que o lapis (a pedra) é uma unidade transcendente. Por isso, é preciso afirmar expressamente que o si-mesmo pode certamente tornar-se um conteúdo simbólico da consciência, mas é também, sem dúvida, transcendental como grandeza inevitavelmente superior à consciência''.

Segundo Jung, existem algumas operações alquímicas pelas quais conseguimos chegar mais próximos de nossa individuação. Vou abordar duas delas, indispensáveis para que compreendamos a nossa dinâmica rumo a descoberta de quem somos. A primeira delas é a separatio, que é a purificação de nossa psique com relação as nossas identificações inconscientes, ou seja, saber separar quais são as minhas projeções e aquilo que diz respeito ao meu próprio ser. E, além do mais, não se deixar dominar pelo poder que os arquétipos têm sobre o nosso psiquismo, conquistando assim maior autonomia frente a eles.

No livro ''Jung e o caminho da individuação'', Murray Stein aborda que a obra de individuação, uma lição aprendida muito bem por Jung, é um imperativo psicológico, o qual exige uma análise redutiva em duas frentes: ''(...) no que se refere a persona, ela consiste no fato de o indivíduo diferenciar-se da persona psicossocial e dissolver a identidade que se formou ao longo do tempo na história pessoal; no que se refere a sigízia, ela exige que o indivíduo se diferencie das imagens e fantasias arquetípicas que emergem e propõem identificação grandiosa como compensação pelo que se perdeu com a análise da persona''.

Uma persona bem rígida, dependendo do caso, pode ser responsável por grande parte das limitações do indivíduo no que diz respeito ao saber que ele tem de si mesmo e de seu lado mais sombrio e desconhecido, o qual é cunhado por Jung de sombra (um arquétipo que dificilmente buscamos reconhecer em nós mesmos). Mas quando, aprendemos fazer essa separação e reconhecemos que somos dotados de uma sombra, conseguimos ter a humildade de falar mais abertamente sobre nossas falhas e, como isso, temos mais facilidade de aprender quem de fato somos, até ao ponto de compreendermos a dinâmica de nossa individualidade.

A outra operação é, depois desse processo, a que diz respeito a unificação e a síntese, ou seja, a operação coniuntio, um termo que tem haver com integração, conjunção, união. Para isso, é importante que uma pessoa se liberte dos padrões impostos pelo seu passado e passa a viver o seu tempo presente, fazendo planos e desenvolvendo uma tendência de se responsabilizar por tudo o que faz. Quando vivemos mais plenamente o nosso presente e passamos a prestar mais atenção em nosso inconsciente, estamos mais próximos de adquirir autonomia dos conteúdos arquetípicos que podem nos possuir de uma forma avassaladora.

No mesmo livro de Murray Stein, Jung e o caminho da individuação, podemos entender que: ''O grande insight de Jung sobre a relação do inconsciente com a consciência foi que o inconsciente não é apenas a presença do passado sempre a espreita no presente (...), mas também a presença ativa de um espírito vivo e em progressão no aqui e agora. O que chega à visão quando a pessoa aprende essa dinâmica torna-se decisivamente útil para orientar-se no presente e no futuro''.

Uma técnica que o psicólogo de Zurique desenvolveu para nos comunicarmos com o nosso inconsciente se chama imaginação ativa que, ao contrário dos sonhos, somos nós mesmos que podemos desenvolver uma certa comunicação com os conteúdos do inconsciente para compreendermos mais quem somos. Mais a frente, Murray Stein vai dizer sobre esse método que: ''Nesses trabalhos (O segredo da flor de ouro e Psicologia e alquimia), Jung sustenta que a individuação é um esforço cooperativo entre o consciente e o inconsciente, um processo irracional abordado antes, em 1916''.

A imaginação ativa vem a ser, portanto, um meio de um encontro mais direto com a realidade inconsciente e promove um amadurecimento significativo da personalidade do indivíduo. Se os sonhos não há participação do ego para a sua manifestação, onde há apenas o inconsciente agindo; na imaginação ativa, há uma colaboração tanto da consciência, quanto do inconsciente a nível do imaginário, formando uma experiência de vida que contém os elementos de ambas instâncias psíquicas.

Através de toda essa transformação que pode ser operada durante as sessões terapêuticas mediante a técnica da imaginação ativa e das operações alquímicas de separação e conjunção (separatio e coniuntio), o indivíduo consegue, quando persevera e se esforça verdadeiramente, obter melhores condições de tornar-se o que se é, mas para isso exige uma grande coragem da parte do mesmo. Jung nos mostra claramente qual o objetivo da terapia nessas condições: ''O principal objetivo da Terapia não é transportar o paciente para um impossível estado de felicidade, mas sim ajudá-lo a adquirir firmeza e paciência diante do sofrimento. A vida acontece num equilíbrio entre a alegria e a dor''.

Quando um paciente alcança esse equilíbrio, certamente aprende a ter mais serenidade enquanto aprende mais sobre o dinâmica de seu psiquismo e enquanto vivencia uma ampliação de sua personalidade.

Jung, utilizando a linguagem dos alquimistas, vai comparar a sessão terapêutica como ambiente sagrado onde serão desvelados as complexidades do indivíduo e onde serão trazidos à tona os seus segredos, sem que haja julgamentos precipitados, mas apenas respeito a dor e compreensão profunda de seu sofrimento mediante o exercício da escuta e do amor por outra alma. ''Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana'', já dizia o próprio psicólogo suíço na sua busca por compreender o que há profundo e desconhecido no psiquismo humano. É certo dizer que o objetivo da terapia é trazer uma contribuição para que o paciente, como alguém que aprendeu a discriminar os componentes da sua alma, torne consciente a sua escuridão, visando justamente se aproximar do seu lado oposto, ou seja, da luz que o tornará autêntico e sábio.

Alessandro Nogueira
Enviado por Alessandro Nogueira em 20/09/2020
Reeditado em 07/03/2023
Código do texto: T7067933
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