Um Anteâmbulo à Esquizoanálise.

Cadeira de Introdução à Esquizoanálise.

Universidade de Pernambuco(UPE).

Prof responsável: Djailton Cunha.

Texto sintético por Raul Magalhães Brasil

Introdução.

I. Maio de 68: Um Acontecimento.

A esquizoanálise nasce ante o contexto fortemente revolucionário e político em que se encontrava a França das décadas de 60 e 70. A revolta, a insatisfação e o desejo de mudança levaram a movimentos e articulações como o “maio de 68”. Onde estudantes da universidade de Nanterre fizeram protesto contra a divisão do dormitório entre homens e mulheres, essa greve estudantil foi o estopim para uma sequência de greves e revoltas que aconteceriam ainda naquele mês e ano. Maio de 68 pode ser entendido como o desdobramento de conflitos políticos e filosóficos protagonizados pela euforia juvenil que lutavam contra o conservadorismo e o fascismo crescente na França. Esse episódio na história da França teve repercussões mundiais e inspirou protestos em todo o globo.

É notória a efervescência ideológica, filosófica e política em que se encontravam aqueles jovens. Nesse contexto, uma fusão incomum acontece: O filósofo Gilles Deleuze conhece o psicanalista Félix Guattari, suas concepções críticas do sistema capitalista, da filosofia ocidental e do método psicanalista dialogam-se entre si, seus pontos notáveis conjugam-se uns aos outros e aqueles dois corpos-acontecimento se alinham intelectualmente em função de uma única obra: Capitalismo e Esquizofrenia, escrita “a quatro mãos”.

II. A Diferença Deleuzeana.

Na academia francesa era perceptível uma forte tendência hegeliana entre os acadêmicos, e as produções intelectivas muitas vezes reduziam-se ao âmbito da História da Filosofia. Percebemos em sua produção que Deleuze herda um pouco dessa veia, no entanto, ao mesmo tempo em que trabalha com a história da filosofia e filósofos já conhecidos, ele também produz a sua própria filosofia e o seu próprio pensamento. O processo de criação de Deleuze é o processo da conceituação. Como diz o mesmo em seu livro “O que é a filosofia”: “a ciência cria pensamento criando funções, a arte cria pensamento criando sensações, a filosofia cria pensamento criando conceitos”.

A filosofia em Deleuze é um sistema de relações não-estruturadas de conceitos, onde a voz do Deleuze ecoa na voz do seu jardim de filósofos. Trazendo para perto de si pensadores como Nietzsche, Deleuze consegue partir dos conceitos de vontade de potência, eterno retorno e diferença para criar seus próprios conceitos de filosofia da diferença e enésima potência. Através de Spinoza e seus conceitos de imanência, afecções e univocidade, Deleuze cria conceituações próprias sobre imanência, e por fim, através de Bergson, o atual, a atualidade/virtualidade, tempo e movimento ecoam também em uma repetição diferenciada.

Deleuze não é nada ortodoxo ao escrever sobre esses autores. Críticos costumam dizer que Deleuze “continua” o pensamento desses autores de onde eles pararam, criando novas pontes, novas conexões, novos platôs. Deleuze procura pensar rizomaticamente os filósofos com os quais trabalha, e dos conceitos desses filósofos tirar os seus próprios conceitos. Isto não se resume aos filósofos claro, de escritores como Proust e Kafka ele tira seu conceito de signos e desterritorialização, de artistas como Artaud e Bacon ele herda o conceito de corpo-sem-órgãos. Do cálculo diferencial da matemática ele pensa a diferença e da biologia ele pensa o rizoma. Sua filosofia é, portanto, interdisciplinar, não ordenada ou estruturada, intermediária e singular, características que são umbilicais à esquizoanálise.

Desenvolvimento.

III. Finalmente, A Esquizoanálise.

Antepostas as considerações sobre as implicações políticas da esquizoanálise e a influência direta da filosofia da diferença de Deleuze sobre a mesma, nos resta agora saber uma única coisa: finalmente, o que é a esquizoanálise? Podemos dizer que a esquizoanálise se apresenta como um campo de conhecimento interdisciplinar que permeia principalmente as áreas da filosofia e da clínica psicológica, ela nasce no contexto de uma indagação criticista, lançando questionamentos cirúrgicos sobre a hegemonia da teoria freud-marxista no pensamento ocidental do século XX e sobre a veia predominantemente hegeliana em que se encontrava a filosofia da época. A esquizoanálise tem um caráter de cisão com tudo o que a filosofia e a psicanálise tinham a dizer até aquele momento da história, fortemente influenciada por Nietzsche ela procura uma diferenciação do pensamento, abrindo mão do pensamento reducionista da identidade(que limitou toda a produção filosófica até aquele momento a meras notas de rodapé nos livros de Platão e Aristóteles) e trazendo a tona uma filosofia inteiramente nova, diferida, e que não cessa em se diferir, literalmente uma Filosofia da Diferença.

Não se reduzindo a isso, a esquizoanálise é uma ética-estética do indivíduo, que apresenta uma lógica própria, singular, abrangente e não-reducionista. Crítica o pensamento calcado no Ser e sua forma arbórea de produzir conhecimento, onde tudo o que se conhece se resume a “isto ou aquilo”. Com isso, nos apresenta ao pensamento do vir-a-ser, rizomático, que considera não somente as coisas como são mas todas as suas potencialidades e possíveis formas de Devir(ou de virem-a-ser) na multiplicidade. Assim sendo, o pensamento binário para a esquizoanálise é imediatamente abolido, não pensa-se mais com o “isto ou aquilo” mas sim “isto e isto e isto e aquilo…” possibilitando uma infinidade de formas criativas que possam atender ao escoamento dos fluxos esquizo pelas máquinas desejantes, apresentando uma cartografia rizomática do pensamento permeando não só a forma de pensar e de fazer filosofia, mas permeando o próprio indivíduo em sua vivência de singularidade na multiplicidade.

IV. A Clínica Esquizoanalítica.

Com toda essa diferença, o que busca, portanto, a esquizoanálise? Ao contrário do que pensa a psicanálise, a esquizoanálise encara o desejo não como uma falta constitutiva mas sim como uma possibilidade de potência e produção, a esquizoanálise vê a psicanálise e sua clínica centrada na reprodução do teatro familiar como uma engrenagem da máquina capitalista, essa, por sua vez, ulterior à própria família. O capitalismo aqui é visto como uma máquina que por sua vez louva a própria lógica maquínica onde os corpos perdem potência e homogeneizam-se, construindo uma economia narcísica do sujeito, onde os processos de subjetivação são limitantes, reducionistas e guiados pelas convenções sociais, pela mídia e pelos diversos outros equipamentos coletivos de subjetivação. Rejeitando essa lógica maquínica, é proposta uma lógica pulsátil de se enxergar a singularidade, que procura a afecção, a sensorialidade, a corporeidade, numa tentativa de produzir um corpo-sem-órgãos, uma subjetivação desterritorializada, que escapa para a diferença onde o indivíduo cria para si uma forma infinitamente própria de viver a própria vida, afirmando-a potencialmente, o resultado disso seria uma vida pulsante, vibrátil, que rejeita dualismos. Uma vida que se vive em sua enésima potência.

É perceptível portanto que a perspectiva(entendendo que não se trata de uma metodologia) da clínica esquizoanalítica abomina a reprodução de modelos prontos de expressar a própria subjetividade no mundo, visto que se entende que esses modelos são engendrados em um inconsciente capitalístico que procura docilizar e despotencializar os corpos. Muito ao contrário disso, a esquizoanálise valoriza o ato criador e estético; o ato de criar seu próprio modelo de expressão de si mesmo na vida e na multiplicidade. Abolindo rótulos, classificações e verdades absolutas, acreditando por fim, que a vida do indivíduo pode ser julgada somente pela própria vida.

Conclusão.

V. Retomando Nietzsche.

Concluímos portanto que a esquizoanálise é uma forma crítica de encarar o capitalismo e suas formas de intervenção na subjetividade do indivíduo, formas estas que se reconfiguram na filosofia ocidental circunscrita na lógica da identidade, na psicanálise e em sua forma reducionista de enxergar o desejo e na “mecanização” dos processos de subjetivação que ocorrem em detrimento da construção social de um inconsciente capitalístico. Buscando uma via contrária a estas vozes que circundam a singularidade do indivíduo contemporâneo, a esquizoanálise nos trás uma perspectiva umbilicalmente ligada às formas criativas e inventivas de viver a vida, dando voz aos desejos do indivíduo e à capacidade criadora que têm esses desejos. Ela se aproveita do vazamento desses fluxos desejantes e procura construir uma clínica que enxerga o indivíduo como uma máquina desejante, uma usina pulsante de subjetividade que tem o poder de não cessar de inventar a si mesmo. O indivíduo, na esquizoanálise, deixa de ter a obrigação de se uniformizar com o restante da sociedade capitalista e o seu imperativo categórico, que contempla tanto a clínica esquizoanalítica quanto a filosofia Nietzscheniana é o do “torna-te quem tu és”, esse é o objetivo último desta perspectiva, uma intervenção que eleve a vida do indivíduo à sua enésima potência, que traga à tona a sua vontade de poder. A esquizoanálise quer que o indivíduo domine a si mesmo e crie a si mesmo, à sua própria maneira singular de criar, expressar e existir, afirmando a identidade da diferença na vontade de potência, diferenciando assim, a própria diferença!

Raul Brasil
Enviado por Raul Brasil em 17/09/2020
Código do texto: T7065763
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.