Prefácio escrito por Olavo de Carvalho para a edição brasileira de "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley
Se houve no século XX um escritor que nunca cedeu ao cansaço e ao tédio, que conservou até o fim um apaixonado interesse pela vida e pelo conhecimento, que não cessou de se elevar a patamares cada vez mais altos de compreensão, até chegar, em seus últimos dias, às portas de uma autêntica sabedoria espiritual, esse foi Aldous Huxley.
Como artista, é cheio de imperfeições. Nenhuma de suas obras dá a medida integral da riqueza da sua personalidade ou da solidez de seus recursos intelectuais. Ao contrário, cada uma delas, se tem o brilho de um achado literário premiado por um êxito retumbante, desperta em seguida a suspeita de ter sido apenas um golpe de sorte. Por isso Huxley, amado pelo público, foi com frequência visto com certo desdém pelos críticos eruditos (o nosso Otto Maria Carpeaux, por exemplo). Mas a crítica erudita julga livros e não almas. O homem Aldous Huxley, visto na perspectiva integral de sua vida e de suas obras, é bem melhor do que a crítica deste ou daquele livro em particular pode revelar. Nessa escala, o público o enxergou melhor do que os críticos. Poucos homens de letras souberam honrar tão bem, pela seriedade de sua luta pelo conhecimento, o amor que o público lhes devotou.
Símbolo e resumo de sua trajetória vital é a luta de décadas que ele empreendeu contra a cegueira. A doença que aos 17 anos reduziu sua visão a aproximadamente um décimo do normal não foi para ele, como provavelmente o seria para muitos outros escritores numa era de egocentrismo e autopiedade, ocasião de especulações vãs sobre a maldade do destino. Foi a oportunidade de um mergulho nas fontes corporais e espirituais da percepção, mergulho que acabou por fazer dele o autor de reflexões epistemológicas bem mais interessantes do que muitas obras de filósofos acadêmicos sobre o assunto. Algumas dessas reflexões surgiram ao longo de sua experiência com os exercícios do dr. Bates, um despretensioso oftalmologista norte-americano celebrizado pelo sucesso na cura de Huxley. O dr. Bates era inimigo dos óculos. Achava que todo olho doente tem momentos de sanidade que são estrangulados pela camisa de força de uma lente de grau fixo. Muito de sua técnica consistia apenas em restaurar no paciente a curiosidade visual e o amor à luz. Talvez ele nunca tenha atinado para a formidável importância filosófica de sua técnica. Mas Huxley, à medida que recuperava a visão graças aos exercícios de Bates, ia fazendo duas descobertas filosóficas fundamentais. A primeira delas estava sendo elaborada simultaneamente, sem que Huxley o soubesse, pelo filósofo basco Xavier Zubiri, uma das mais poderosas mentes filosóficas do século XX e de muitos séculos. Segundo Zubiri, não existe aquela coisa kantiana de dados sensíveis brutos, caóticos, colhidos pelo corpo e sintetizados na mente segundo padrões a priori. A percepção humana é, inerentemente, percepção intelectiva ou, na fórmula zubiriana, "inteligência senciente". Isso tapava, de um só golpe, o abismo que três séculos de idealismo filosófico haviam cavado entre conhecimento e realidade. "Realidade", diz Zubiri, "é o aspecto formal que o ser oferece à percepção humana." Não há uma "coisa em si" a ser apreendida para além da percepção, porque, precisamente, o que o ser oferece à nossa percepção é o seu "em si" e nada mais, ou, como diria Zubiri, aquilo que ele é "de suyo", de seu, de próprio, de real.
Huxley, que nunca ouviu falar de Zubiri (as obras do filósofo só vieram a difundir-se no mundo a partir da década de 1970, após a morte do romancista), chegou, pela experiência pessoal da luta pela visão, a conclusões similares. A "arte de ver" (The art of seeing, 1943) não consistia no esforço interrogativo que, segundo Kant, equiparava o buscador do conhecimento ao juiz de instrução que inquire ativamente a testemunha em vez de deixá-la falar o que quer. Bem ao contrário, consiste numa aceitação passiva e gentil daquilo que as coisas, "de suyo", queiram nos mostrar. A redução da libido dominandi intelectual às suas justas proporções fazia do ato de ver uma devoção contemplativa ante a realidade do mundo.
A segunda descoberta filosófica de Huxley, no curso de seus exercícios ópticos, filia-o a uma tradição ainda mal conhecida no Ocidente de hoje, e praticamente desconhecida no mundo acadêmico do seu tempo. A natureza do mundo objetivo, nas suas experiências, revelava-se essencialmente como luz -- luz no sentido físico, sustentada, porém, desde o íntimo, pela luz espiritual. A ativação desta última, no sujeito cognoscente, despertava a sua contrapartida objetiva sob a forma da luz inteligível que se revelava nas coisas vistas, simultaneamente à sua revelação pela luz física. A meditação deste ponto remonta à "filosofia iluminativa" de Shihaboddin Sohrawardi (1155-1191) filósofo persa cujas descobertas só encontraram, no Ocidente, um eco acidental e longínquo em observações casuais de Grosseteste (c. 1168-1253). Huxley soube algo de Sohrawardi, anos depois, pois menciona-o de passagem em algum ensaio. Mas, na época em que fazia as experiências relatadas em The art of seeing, já estava mergulhado, sem saber, numa atmosfera inconfundivelmente sohrawardiana.
Esses pontos já bastam para mostrar a intensidade filosófica do mundo interior de Aldous Huxley, o que o coloca num patamar intelectual bem superior ao da média dos romancistas do seu tempo.
Mas a especulação vivenciada dos mistérios da percepção levou-o a algumas interessantes experiências no campo da técnica ficcional. Em Contraponto (1923), ele esboça a reconstituição da unidade de uma atmosfera emocional pela justaposição de detalhes aparentemente separados. Isso poderia fazer pensar, à primeira vista, na síntese kantiana. Mas, lida com mais atenção, cada cena do romance já traz em si, como em miniatura, o tônus emocional do conjunto. Não se trata, pois, da unificação intelectual de um significado a partir de detalhes insignificantes, mas sim de uma mesma realidade vista em dois planos: de perto e de longe. Mais que "dados" atomísticos kantianos, os episódios de Contraponto são mônadas de Leibniz, cada uma refletindo, desde o seu ângulo próprio, a forma do conjunto.
Algo dessa técnica se repete nas primeiras páginas de Admirável mundo novo. Flashes da produção de bebês in vitro, do doutrinamento de crianças para a cidadania padronizada, das diversões programadas como parte da disciplina civil, vão recompondo, aos poucos, a imagem global de um mundo do qual a liberdade de escolha foi excluída e onde as criaturas repousam confortavelmente na submissão hipnótica à ordem estatal perfeita. A sociedade futura aí descrita, que o autor situa no século VII d.F ("depois de Ford", ou às vezes "depois de Freud"), é aparentemente uma utopia, no sentido definido por Goethe: "Uma série de ideias, pensamentos, sugestões e intenções, reunidos para formar uma imagem de realidade, embora no curso ordinário das coisas dificilmente venham a se encontrar juntos". Um universo assim construído teria uma constituição nitidamente kantiana: síntese mental de dados que, na realidade, se encontram dispersos. Mas essa não é, definitivamente, a estrutura do romance de Huxley. Nenhum dos elementos da Nova Ordem Mundial que ele nos apresenta pode ser concebido separadamente. Não se pode controlar administrativamente as emoções humanas sem a ajuda química (as pastilhas de soma), nem habituar as multidões à satisfação bovina de uma auto-hipnose permanente sem controle laboratorial de suas predisposições genéticas; nem, muito menos, fazer tudo isso ao mesmo tempo na escala limitada de um Estado nacional, sem o controle simultâneo de todo o globo terrestre. Mundialismo, controle genético, adestramento comportamental e intoxicação coletiva não são dados soltos para a mente construir com eles uma utopia: são órgãos solidários e inseparáveis de um mesmo e único sistema. Onde quer que apareça um deles, os outros o seguirão, mais cedo ou mais tarde. A lógica deste romance imita e condensa a lógica da História.
Por isso mesmo o Admirável mundo novo é menos uma utopia, uma especulação sobre um futuro possível, do que a percepção imediata do nexo interno por trás de uma pluralidade de modas e escolas de pensamento que floresciam na época em que o romance foi escrito, e que constituem a matriz unificada, não somente do mundo possível no século VII d. F., mas do mundo em que vivemos hoje. Huxley, com efeito, nada inventou. Tudo o que fez foi perceber a unidade subjacente às ideias dominantes do seu tempo, que geraram nosso modo de existir atual. A atmosfera em que vivemos foi, de fato, determinada pelas concepções de Lenin e Ford, Margaret Mead e H. G. Wells, Malinowski e Pavlov. As referências, sutis ou abertas, a estes e a muitos outros "maîtres à penser" da década de 1920 abundam nas páginas deste livro, que portanto pode ser lido menos como uma utopia no sentido goetheano do que como um diagnóstico da unidade de sentido por trás de tendências de pensamento que se ignoravam umas às outras no instante mesmo em que, às cegas, concorriam para erguer as paredes de um mesmo edifício: o edifício da Nova Ordem Mundial.
O Sr. Wells, um autor menor que acabou por ser quase esquecido, é mencionado de passagem neste livro como um dos principais construtores da Nova Ordem. Passados oitenta anos, poucos observadores da realidade de hoje se dão conta de quanto ele contribuiu para formá-la, coisa que no entanto já estava óbvia para Aldous Huxley em 1931. O Sr. Wells, no livro A revolução invisível (1928), foi o primeiro a apresentar o projeto integral de uma Nova Ordem, que parece ter inspirado de algum modo os srs. Clinton e Blair. Que feito de tão magna importância fosse obra de um autor que representa mais do que ninguém a mediocridade satisfeita do progressismo moderno é coisa que não deve nos estranhar, pois a Nova Ordem, com seus clones, seus tribunais mundiais e seu controle da internet, não é outra coisa senão a mediocridade materializada em escala global -- o mundo onde o sr. Wells se sentiria tão à vontade quanto Bouvard e Pécuchet.
As contribuições menores não devem porém ser desprezadas. Nossas concepções atuais sobre o prazer sexual ilimitado como um direito a que o Estado deve assegurar o acesso igualitário das massas não teriam sido possíveis sem o relativismo antropológico de Margaret Mead. Se enquanto cientista ela foi tão precária quanto é minguado o talento literário do sr. Wells, nada mais justo: somente a pseudociência e a pseudoliteratura podem gerar mundos. Sua função, como já dizia Karl Marx, não é compreender o real, mas mudá-lo. Mas as ideias não precisam ser inteiramente falsas para esse fim. Basta que sejam infladas para além de seus limites razoáveis. Pavlov, por exemplo, descreveu com acerto a psicologia dos cães. O homem não pode ser compreendido integralmente à luz da psicologia canina, mas pode ser integralmente manipulado desde a parte canina do seu ser, transformando-se em algo praticamente indiscernível de um cão, o que dará à psicologia de Pavlov, na prática, um alcance inigualável enquanto teoria. De modo análogo, todos podemos ser levados a comportar-nos como pacientes psicanalíticos, militantes proletários ou peças de uma linha de produção, dando um espécie de "segunda realidade", como diria Robert Musil, às ideologias de Freud, Marx e Henry Ford. Depois disso, contestar essas teorias se tornaria tão difícil quanto tentar provar o valor da vida a um suicida que, tendo saltado do décimo andar, já se encontrasse à altura do sexto ou quinto. A dificuldade que os personagens deste livro encontram para perceber a irrealidade do mundo social que os rodeia é dessa mesma índole: elas constroem essa irrealidade a cada instante, com a própria vida, e se aprisionam nela no ato mesmo de tentar contestá-la em pensamento.
A unidade maciça do pesadelo descrito neste livro não é um produto da mente, construído com indícios esparsos, um vulgar "silogismo imaginativo" eisensteiniano em que, dadas duas imagens reais, o espectador constrói uma terceira, fictícia, e nela crê. É antes a visão real da unidade da atmosfera cultural do anos 1920 e 1930 condensada em imagens e projetada -- erroneamente -- num século futuro. Erroneamente, digo eu, porque o próprio Aldous Huxley, em 1959, confessava seu erro de datas: "As profecias feitas em 1931 estão para realizar-se muito mais depressa do que eu calculava", afirmou ele em Brave new world revisited, uma atemorizante coletânea de ensaios sobre lavagem cerebral, persuasão química, hipnopédia, influência subliminar e outras técnicas de manipulação comportamental que, previstas para o século VII d. F., já estavam prontas para o uso na segunda metade do século XX. Passado mais meio século, porém, já transcendemos a época das descobertas técnicas e entramos, em cheio, na da sua aplicação rotineira em escala mundial. Uma boa descrição parcial desse estado de coisas encontra-se no livro de Pascal Bernardin, Machiavel pedagoge ou le ministère de la réforme psychologique (Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1998), que analisa as técnicas educacionais hoje padronizadas em todo o mundo sob os auspícios de governos e de prestigiosos organismos internacionais. As conclusões do seu exame são duas. Primeira, a educação das crianças no mundo de hoje despreza a sua formação intelectual e se dedica quase que inteiramente ao adestramento comportamental dos perfeitos cidadãozinhos da Nova Ordem Mundial. Segunda: as técnicas usadas para esse fim pouco têm a ver com o que se denominava tradicionalmente "pedagogia", mas se constituem essencialmente de manipulação pavloviana. Que isso ocorra simultaneamente a experimentos de clonagem humana, à formulação de uma ética padronizada para abolir todas as diferenças culturais e religiosas, à instauração de um poder médico global incumbido de receitar e vetar condutas a pretexto de higiene e saúde, à criação de tribunais mundiais para impor a toda a humanidade o direito penal de Wells, Bouvard e Pécuchet -- nada disso é coincidência, nada disso é síntese mental de dados esparsos. É a unidade de um sistema de erros, cujas sementes Aldous Huxley identificou em 1931 e cujo crescimento ultrapassou, em velocidade, os seus mais sombrios diagnósticos.
No entanto, o mundo em que vivemos ainda não se parece, no seu todo, com o Admirável mundo novo. A diferença principal é que neste os "selvagens", isto é, as pessoas que rejeitavam a existência antisséptica na sociedade perfeita e continuavam presas de hábitos bárbaros como ler a Bíblia, rezar e educar seus próprios filhos em vez de entregá-los ao Estado, se encontravam isolados geograficamente, vivendo em reservas e milhares de quilômetros dos centros civilizados. No mundo de hoje, essas pessoas vivem soltas nas grandes cidades, misturadas aos seres humanos normais que só acreditam nos noticiários da TV e que entregam não só seus filhos como também seus pais à guarda do Estado. Por isso a vida moderna não tem a uniformidade tediosa das cidades de Huxley.
Mas isso não quer dizer que, no domínio da estrutura social, ao contrário do que acontece no da tecnologia, o cumprimento da profecia esteja atrasado. Nas últimas quatro décadas, a elite bem-pensante inventou meios tão eficazes de isolar psicológica, cultural e socialmente os indesejáveis que separá-los geograficamente passou a ser uma despesa desnecessária. A presença de um crente nas altas cátedras universitárias ou nos cargos de destaque do jornalismo, por exemplo, tornou-se tão inconcebível que todos os selvagens que poderiam ambicionar esses postos recuam espontaneamente para os bas-fonds da vida social, deixando o palco inteiramente à disposição dos bons cidadãos. A ex-secretária de Estado dos EUA Madeleine Albright foi explícita: qualquer americano que contribuísse regularmente para um igreja e se preparasse ativamente para o Juízo Final se tornariam virtual candidato a ter a sua vida vasculhada pelo FBI. As reservas de "selvagens" não estão nos confins da Terra como no romance. Elas estão entre nós.
Nas suas últimas décadas de vida, Aldous Huxley adotou decididamente uma escala de valores "selvagem". Mergulhou no estudo das literaturas sapienciais e místicas, adquirindo uma antevisão daquilo que Frithjof Schuon viria a chamar "unidade transcendental das religiões", tão diferente do ecumenismo burocrático de hoje quanto as visões de Santa Teresa ou Jacob Boehme diferiam da leitura de uma circular da CNBB. Com isso, tornou-se estranho e incompreensível, simultaneamente, aos materialistas da linha Wells e aos paladinos de ortodoxias exclusivistas. Aventurou-se mesmo numa tentativa -- falhada -- de descobrir nas drogas alucinógenas a rota de fuga para fora da percepção padronizada. Mas a experiência fracassada não foi estéril. Se não abriu para quem quer que fosse "as portas da percepção", despertou Aldous Huxley para a temível realidade dos novos recursos da manipulação química do comportamento, que ele denuncia corajosamente em Brave new world revisited, e para os aspectos falazes e ilusórios da democracia, que ele caricatura impiedosamente em seu último romance, A ilha, espécie de contrapartida dialética de Admirável mundo novo.
Da observação microscópica do mecanismo da percepção até a intuição global dos rumos da história humana, o olhar de Huxley jamais perdeu de vista a unidade do real e, em consequência, o senso da integridade humana, que tantos romancistas, seus contemporâneos, cedendo à suprema tentação, não fizeram senão dispensar numa poeira de estilhaços.
Nenhum de seus livros dá conta integral da riqueza de sua experiência do mundo. Mas em nenhum deles está ausente a tensão entre o apelo unificante do alto e as brutais forças centrífugas que tentam dissolver a unidade da consciência para mais facilmente amoldá-la à mera uniformidade exterior de um mundo forjado. Voltar a si, reconquistar perenemente o senso da verdadeira unidade e, com isto, redescobrir a luz do espírito em seus reflexos no mundo exterior -- eis o sentido da vida e da literatura de Aldous Huxley. Poucos escritores, no século XX, souberam colocar a ocupação literária a serviço de finalidade tão alta e tão nobre. Por isso a obra de Aldous Huxley, malgrado seus múltiplos defeitos, sobreviverá. Ela tem o interesse permanente de tudo aquilo que se volta para "a única coisa necessária".