A PRESENÇA DO ELEMENTO GÓTICO EM "O MORRO DOS VENTOS UIVANTES", de Emily Bronte
Whutering Heights, único romance da escritora inglesa Emily Brönte, traduzido para o português como, O morro dos ventos uivantes foi publicado em 1847, tendo recebido inúmeras críticas na época a respeito de sua construção narrativa. Como uma moça de temperamento recatado e fechada em si mesma (sob o pseudônimo masculino de Ellis Bell), residente num pequeno distrito do condado de Yorkshire, na Inglaterra, avessa às relações sociais e cujo único contato com as coisas do mundo e da vida se dava através da leitura e de exercícios de composição literária, produziu uma obra tão inteiramente fora de seu universo?
Primeiramente, Emily, bem como suas irmãs, Charlotte e Anne sempre alimentaram o sonho de se tornarem escritoras. Após publicarem em conjunto um pequeno livro de poesias, elas se aventuraram pelo romance, cada uma escrevendo o seu. Charlotte produziu Jane Eyre; Anne pôs à luz Agnes Grey e Emily criou o mais polêmico e aclamado dos três, O morro dos ventos uivantes.
Para os críticos da época a obra de Emily, cujo cenário é a própria região em que ela cresceu, foi considerada rústica demais e com personagens inverossímeis, uma vez que os camponeses iletrados e fidalgos não refinados daquelas paragens não poderiam externar paixões de forma intensa e brutal nem se utilizar de uma linguagem forte, dadas as condições em que eram criados e os ensinamentos que recebiam num ambiente rude e de contenção de sentimentos.
Mas a narrativa centrada na sombria, confusa e atormentada história de amor de Heathcliff e Catherine Earnshaw entre as propriedades de Wuthering Heights e a Granja Thrushcross ultrapassou as críticas recebidas e foi aclamada muitos anos mais tarde depois de sua publicação como um clássico da literatura universal.
A história contada em flashback através de um narrador-testemunha, na figura da bondosa e prestativa Nelly Dean no ano de 1801, num tempo presente da narrativa ao novo inquilino, Mr. Lockwood, da propriedade agora pertencente a Heathcliff, em princípio causa uma certa confusão a respeito do verdadeiro narrador, uma vez que nos 3 primeiros capítulos é Lockwood quem nos conta como chegou à Granja Thrushcross e seu primeiro e único contato com Heathcliff.
A partir do capítulo 4 ao solicitar à Nelly Dean que fale mais sobre a história do lugar e a vida de seus habitantes, é a governanta quem assume a tarefa de relatar os fatos em torno do romance não concretizado de Heathcliff e Catherine até o capítulo 31. No capítulo 32, agora no tempo presente, no ano de 1802, a narrativa volta momentaneamente para o Sr. Lockwood, em passagem por Wuthering Heights a caminho de Gimmerton, onde cede a palavra para Nelly Dean outra vez para que esta lhe narre os últimos acontecimentos, encerrando-se a narrativa no capítulo 34.
No início do enredo, Heathcliff, um pequeno órfão, de origem não revelada na história e que todos pensam ser cigano é trazido para Wuthering Heights após uma viagem empreendida pelo Sr. Earnshaw. Entre diversos acontecimentos, o garoto e Catherine, sua irmã adotiva logo se sentem afeiçoados um pelo outro, nascendo daí um amor desesperado, confuso e sombrio que nem a morte nem o tempo apagará. Após a morte do Sr. e da Sra. Earnshaw, Heathcliff é submetido a constantes humilhações pelo irmão também adotivo, Hindley, passando a se tornar um homem cada vez mais bruto, amargurado e melancólico.
Sua dureza e amargura ficam ainda mais acentuadas quando Catherine confidencia a Nelly Dean seus sentimentos por Heathcliff, mas sua recusa em casar-se com ele devido à sua condição financeira, escolhendo assim casar-se com Edgar Linton, o jovem vizinho mais bem dotado de posses. Heathcliff que ouve a conversa escondido se revolta e parte de Wuthering Heights, retornando 3 anos depois rico e cheio de desejos de vingança.
Pondo seus planos em prática, casa-se com Isabel, irmã de Edgar, que o abandona e tem um filho dele, Linton. Catherine e Edgar também tem uma filha, a quem chamam de Catherine (Cathy). A Catherine mãe morre. Heathcliff vinga-se ainda de Hindley, aproveitando-se de seu alcoolismo e toma-lhe os bens, bem como de seu filho Hareton. Depois faz com que seu filho, Linton case-se com Cathy. Edgar morre. Em seguida morre Linton, que em vida passara todos os seus bens a Heathcliff pressionado por ele e Cathy se descobre na miséria.
Heathcliff é retratado no romance como um personagem melancólico, sombrio, amargurado, vingativo, apaixonado e atormentado, sentimentos que quase beiram à loucura, sendo considerado uma espécie de arquétipo do herói byroniano, que cultiva suas paixões de forma tão intensa e profunda que por vezes destrói a si próprio e as pessoas ao seu redor. Sua própria aparência descrita como cigano, de pele escura, com olhos e cabelos escuros e de origem desconhecida associada ao seu temperamento sombrio o tornam um modelo de elemento gótico, bem como algumas cenas do romance em que se percebe contornos destes mesmos elementos.
As seguintes palavras de Catherine sobre um sonho que tivera, para Nelly Dean, acerca de seus sentimentos por ele: "Não tenho mais razão para casar com Edgar Linton do que para estar no céu e, se esse homem perverso que é o meu irmão não tivesse feito Heathcliff descer tanto, eu nem teria pensado nisso. Mas agora eu me degradaria se casasse com Heathcliff, por isso ele nunca há de saber o quanto o amo [...]" (BRONTE, 1987, p. 98), são o estopim para que Heathcliff desenvolva ainda mais a sua amargura e seu comportamento vingativo.
É a partir daí que seus sentimentos vem com mais intensidade à tona. Ao mesmo tempo em que ama apaixonadamente Catherine, com um amor que transcende a ele mesmo, Heathcliff se torna também este homem seco, duro e cheio de ódio contra aqueles que o humilharam. Seu amor ao mesmo tempo terno e carinhoso para com ela, faz com que sinta um estranho prazer em puni-la por ter escolhido Edgar, como demonstra o fragmento a seguir, ao saber da morte da amada:
-- Oxalá tenha um despertar tormentoso! -- exclamou ele, numa voz terrível, batendo com o pé e rosnando num acesso de descontrolada paixão. -- Ela mentiu até o fim! Onde está ela? Não está lá... não está no céu... não morreu... onde é que ela está? Oh, você disse que não se importava com os meus sofrimentos! Pois bem, vou rezar. Vou rezar até não ter mais fôlego, para que você, Catherine Earnshaw, não possa ter descanso enquanto eu esteja vivo! Você disse que eu a tinha matado... Pois bem, assombre-me! As vítimas costumam assombrar os seus algozes. Sei de fantasmas que erraram de verdade pela terra. Persiga-me, assuma a forma que quiser, enlouqueça-me até! Mas não me deixe neste abismo, onde eu não posso encontrá-la! Oh, meu Deus, é impossível! Eu não posso viver sem a minha vida! Eu não posso viver sem a minha alma!
Bateu com a cabeça contra o tronco nodoso; e, erguendo os olhos, uivou, não como uma criatura humana, e sim como um animal selvagem espetado até a morte com facas e lanças. Vi vários salpicos de sangue no tronco da árvore e notei que ele tinha a mão e a testa ensanguentadas; provavelmente passara a noite naquele desespero. (BRONTE, 1987, p. 190)
O termo "gótico" vem do latim gothicu e é um adjetivo referente à tribo dos godos, um povo de cultura germânica, habitante da região do rio Danúbio, que posteriormente se espalhou pela Europa. A literatura gótica surgiu no século XVIII na Inglaterra, com a obra, O castelo de Otranto, de Horace Walpole (1764), o qual tinha como subtítulo a expressão "a gothic story". Tem como características genéricas o uso de cenários medievais; os personagens melodramáticos; os temas e símbolos recorrentes; o uso da chamada psicologia do terror, na qual se explora sentimentos como o medo e a loucura; o uso do imaginário sobrenatural, na qual aparecem figuras como fantasmas, demônios, monstros e espectros; presença de aspectos religiosos; concepções estéticas e filosóficas, entre outras.
Quer-se crer que não se trata duma ficção menor, votada ao entretenimento do leitor, mas de romances, ou novelas, dotados de outro interesse, na medida em que os protagonistas, antes que meros fantoches, seriam autênticos casos psicológicos. Além disso, o gótico busca envolver o leitor, mantendo-o em suspense, alarmá-lo, chocá-lo, incitá-lo, provocando-lhe, em suma, uma resposta emocional. Portanto, "a marca distintiva da ficção gótica é a sua atmosfera e o uso que dela se faz"[...]: os vários expedientes cenográficos (castelos em ruínas, trevas, etc.) apenas colaborariam para formular a ambiência em que se pretende imergir o leitor. A atmosfera pode ser de terror ou de horror, conforme dependa do suspense ou medo, no primeiro caso, ou de o leitor ser atingido "frontalmente com acontecimentos que o chocam e o perturbam", no segundo. (MOISÉS, 2002, p. 261-262)
Em Wuthering Heights, Heathcliff é em muitas passagens do romance comparado a um demônio pelas outras personagens, devido à sua aparência e suas constantes mudanças de comportamento durante a narrativa. Já no início da história, quando o Sr. Earnshaw o leva para casa, assim se refere a ele ao apresentá-lo para sua esposa: "Veja só, mulher! Nunca vi coisa igual; mas você tem de encará-lo como uma dádiva do Senhor, embora seja tão escuro que mais pareça vir do Diabo". (BRONTE, 1987, p. 52)
Mais tarde quando Heathcliff morre, o empregado Joseph também o considera um discípulo do Demo, conforme demonstram suas palavras:
-- O Demo carregou a alma dele! -- falou. -- Pode levar também a carcaça! Credo! Até da morte ele caçoa! -- e o velho pecador fez uma cara de troça. De repente, porém, recobrando a compostura, ajoelhou-se, ergueu as mãos ao céu e deu graças por ficar Hareton, o legítimo dono, novamente na posse de seus direitos. [...] (BRONTE, 1987, p. 368)
Outra característica gótica presente na obra se revela nesta passagem, logo no início do romance, na qual após a morte de Catherine Earnshaw/Linton, o Sr. Lockwood vendo-se obrigado a passar uma noite em Wuthering Heights devido a uma nevasca muito forte, tem um contato sobrenatural com a morta:
O peitoril, onde coloquei a vela, tinha, empilhados a um canto, alguns livros embolorados, e a sua pintura estava coberta de escritos, que, examinados de perto, mostravam ser apenas um nome, repetido em todos os tipos de letras, grandes e pequenas: Catherine Earnshaw, aqui e ali alterado para Catherine Heathcliff, e depois para Catherine Linton.
Entopercido, apoiei a cabeça no peitoril e continuei a soletrar Catherine Earnshaw... Heathcliff... Linton, até que os meus olhos se fecharam; mas eles não tinham descansado nem cinco minutos, quando um brilho de letras brancas surgiu do escuro, como espectros, enchendo o ar de Catherines. Abrindo os olhos para dissipar aquele nome, vi que o pavio da vela se encostava num dos volumes embolorados e perfumava o aposento com um cheiro de couro queimado. Soprei o pavio, e, sob a dupla influência do frio e da náusea, sentei-me e abri o volume queimado contra o joelho. [...] Aquilo despertou imediatamente, em mim, um interesse por aquela desconhecida Catherine, e pus-me a tentar decifrar os seus desbotados hieróglifos.
[...] lembrava-me de que estava deitado no compartimento de carvalho e ouvia distintamente a ventania e o bater da neve contra o telhado; ouvia, também, o galho do pinheiro roçar contra a vidraça e sabia o que provocava aquele barulho impertinente; mas a tal ele me incomodava, que resolvi silenciá-lo. Levantei-me e tentei abrir a janela. A lingueta estava soldada, fato que eu observara quando acordado, mas que esquecera. -- Tenho de acabar com esse barulho, seja como for! -- murmurei, partindo a vidraça com o punho e esticando um braço para agarrar o importuno galho. Em vez disso, porém, os meus dedos pegaram uma mão pequenina e gelada! O intenso horror do pesadelo tomou conta de mim: tentei retirar a mão, mas a mãozinha agarrou-se ainda mais a ela e uma vozinha melancólica soluçou: -- Deixe-me entrar... deixe-me entrar! -- Quem é você? -- perguntei, enquanto lutava por me libertar. -- Catherine Linton -- respondeu a voz, como se tremesse de frio (por que razão fui pensar em Linton? Tinha lido o nome Earnshaw vinte vezes mais do que Linton). -- Voltei. Perdi-me na charneca! -- Enquanto ela falava, distingui, na escuridão, um rosto de criança olhando através da janela. O terror tornou-me cruel; e, vendo que era inútil livrar-me da criatura, puxei-lhe o pulso através da vidraça partida, para a frente e para trás, até que o sangue escorreu e encharcou a roupa de cama. Mesmo assim, a voz continuou a gemer: -- Deixe-me entrar! -- e a manter a mão agarrada à minha, quase me enlouquecendo de pavor. -- Como é que eu posso? -- consegui, por fim, dizer. -- Solte-me, para que eu a possa deixar entrar! -- Os dedos relaxaram um pouco a sua pressão. Recolhi depressa a minha mão através do buraco, empilhei os livros numa pirâmide, a fim de tapá-lo, e levei as mãos aos ouvidos, para não ouvir o lamentoso pedido. Acho que os conservei fechados mais de um quarto de hora; mas, logo que os destapei, ouvi de novo o triste gemido. -- Fora! -- gritei. -- Nunca deixarei você entrar, nem que fique aí pedindo durante vinte anos! -- Faz mesmo vinte anos -- gemeu a voz --, vinte anos. Há vinte anos que ando perdida! -- Ouvi arranhar levemente a vidraça, e a pilha de livros começou a se mexer, como se alguém a empurrasse. Tentei levantar-me, mas não consegui mover-me... e então soltei um grito, no auge do pavor. (BRONTE, 1987, p. 35-41)
Não muito diferentes são os relatos de visões fantasmagóricas e espectrais de Heathcliff e Catherine, que se encontraram somente na morte, conforme atesta esta passagem dos últimos momentos do romance:
Foi sepultado, para escândalo de toda a região, segundo o seu desejo. Eu e Earnshaw, o coveiro e seis gatos-pingados -- eis o acompanhamento. Os seis gatos-pingados foram embora assim que puseram o caixão na sepultura; nós ficamos para vê-lo ser coberto. Com o rosto lavado em lágrimas, Hareton arrancou tufos de grama verde e colocou-os sobre a terra: atualmente, a sepultura está tão verdejante quanto a da companheira -- e espero que o seu ocupante tenha um sono igualmente sossegado. Mas a gente do campo, quando se lhes pergunta, jura pela Bíblia que o vê caminhar: há quem diga que o enxergou perto da igreja, na charneca e até mesmo nesta casa. Histórias, dirá o senhor, e eu também. Contudo, aquele velho sentado diante do fogo afirma que vê os dois, olhando pela janela do quarto dele, todas as noites de chuva, desde que o patrão morreu -- e uma coisa estranha aconteceu-me, há cerca de um mês. Eu estava indo para a granja, uma noite -- uma noite escura, ameaçando trovoada --, e, bem na encruzilhada que leva ao Morro, encontrei um rapazinho com um carneiro e duas ovelhas; chorava horrivelmente e eu supus que as ovelhas estivessem assustadiças e se recusassem a obedecer-lhe.
-- Que foi, meu homenzinho? -- perguntei.
-- Heathcliff e uma mulher estão ali, perto do morro -- gaguejou ele --, e estou com medo de passar.
Nada vi; mas tanto as ovelhas quanto ele se negavam a passar, de modo que lhe disse para ir pela estrada de baixo. Provavelmente ele imaginara os fantasmas de tanto pensar, ao atravessar sozinho a charneca, nas bobagens que ouvira os pais e os colegas repetirem. Mas a verdade é que já não gosto de sair no escuro e nem de ficar sozinha neste casarão. (BRONTE, 1987, p. 368-369)
Além disso, como nos conta o Sr. Lockwood acerca da origem do nome Wuthering Heights: "A propriedade do Sr. Heathcliff chama-se, adequadamente, Wuthering Heigths, sendo wuthering um significativo adjetivo provinciano para designar o tumulto atmosférico ao qual ela está sujeita em tempo tempestuoso" (BRONTE, 1987, p. 20). Portanto, nada mais apropriado para o contexto em que se desenrola o conflito da narrativa.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BRONTE, E. O morro dos ventos uivantes. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 2002.
WIKIPÉDIA. Wuthering Heights - O morro dos ventos uivantes. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Wuthering_Heights