A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS NA PSICOLOGIA JUNGUIANA
Sonhar é una experiência que pode se assemelhar a alguns acontecimentos da vida desperta e vígil, cuja lembrança de seu conteúdo pode dar a ideia de estarmos num lugar que não estamos acostumados em viver habitualmente, transcendendo as fronteiras do tempo-espaço.
James A. Hall, no livro sobre Jung e a interpretação dos sonhos, vai justamente dizer isso, definindo a atividade inírica como: "(...)uma experiência humana universal. Em sentido fenomenógico, o sonho é uma experiência de vida que se reconhece, em retrospecto,ter ocorrido na mente enquanto adormecida, embora no momento em que tenha acontecido contivesse o mesmo senso de verossimilhança que associamos a experiência da vida vígil; ou seja, parece acontecer num mundo 'real' que só em retrospecto é reconhecido como um mundo 'onírico'".
A forma de compreender os sonhos dos pacientes, na visão psicólogo Jung, se distingue da perspectiva freudiana pela ênfase dada aos conteúdos manifestos (e não latentes) no âmbito onírico, conteúdos esses que são norteadores e dizem muito a respeito sobre a vida de um ser humano; são eles, de fato, reveladores acerca de nosso estado psíquico. Baseado nessa perspectiva, não podemos afirmar que disfarçam os seus verdadeiros propósitos.
James A. Hall, mais adiante no seu livro sobre Jung e a interpretação dos sonhos, vai salientar essa diferença marcante entre o pai da psicanálise e o criador da psicologia analítica: "Freud atribuiu ao sonho o papel de guardião do sono,impedindo a irrupção de impulsos reprimidos, uma posição que geralmente não se considera de acordo com as mais modernas pesquisas sobre o sonho. Em contraste, a posição de Jung é que o sonho compensa as visões limitadas do ego vígil, finalidade em harmonia com a hipótese de processamento de informação da atividade onírica, mas que vai muito além da assimilação de novos dados".
No livro ''Psicologia do inconsciente'', o próprio Jung vai dizer da seguinte maneira sobre os sonhos: ''Há muito tempo venho venho contrapondo a esta posição o meu ponto de vista, de que não tem cabimento acusar o sonho de manobras como que para mistificar deliberadamente. Muitas vezes, a natureza é obscura, sem transparência, mas ela não usa de artimanhas, como o homem. Por isso, devemos acreditar que o sonho é exatamente o que deve ser, nem mais, nem menos''.
O significado de tais símbolos presentes nas manifestações oníricas, portanto, só pode ser expresso e compreendido pelo próprio sonhador que, forma atenciosa, consegue identificar com a ajuda do analista aqueles elementos que fazem parte da sua vida e que são carregados de uma verdade que só ele pode ajudar no seu ato exaustivo de decifrar em meio a tantos enigmas subjcentes.
E a melhor atitude que o analista precisa ter nesse caso, segundo o nosso autor, é: "Portanto, aconselhável, in praxi, considerar aquilo que o símbolo significa em relação à situação consciente, ou seja, tratar o símbolo como se ele não fosse fixo. Em outras palavras, é melhor renunciar a tudo o que se sabe melhor, e de antemão, para pesquisar o que as coisas significam para o paciente" (O.C. €342)
Se Freud defendia a concepção de que os sonhos são os guardiões do sono e responsáveis por impedirem a irrupção de impulsos reprimidos no inconsciente, Jung via o sonho como uma forma compensadora do inconsciente de transmitir mensagens de orientação e admoestação, se utilizando de uma linguagem às vezes obscura e enigmática, ao mesmo tempo podendo ser de natureza transformadora e educativa. Enquanto Freud considerava que o significado dos sonhos é o resultado de pensamentos ou conteúdos latentes e defendia a concepção de que os mesmos tem haver com os nossos desejos não realizados, Jung considerava os sonhos como manifestações provenientes das profundezas da psique e que podem se originar tanto inconsciente pessoal do indivíduo, quanto do inconsciente supra-pessoal ou coletivo, o qual pode trazer temas de caráter mitológico.
Os símbolos são o alfabeto da linguagem onírica, componente fundamental para que possamos expressar os nossos sonhos. E a melhor maneira para compreendermos o que os símbolos querem dizer, é prestarmos atenção em nosso inconsciente pela via da imaginação, dos sonhos, dos devaneios e de nossas intuições. Um método utilizado por Jung para interpretar um sonho é o da amplificação, que não tem nada haver com aquele adotado por Freud, a livre-associação. Esse método se baseia em estabelecer paralelos entre aquilo que foi sonhado e conteúdos semelhantes, além de buscar fazer uma compreensão da importância de tal simbolismo para a vida do paciente e, se possível, fazer correlações com conteúdos arquetípicos e mitológicos.
Num dos discursos referentes aos fundamentos da psicologia analítica, Jung vai dizer a respeito desse método utilizado frequentemente por ele: ''O que faço é o seguinte: Adoto o método do filólogo que está bem longe de ser livre-associação, aplicando um princípio lógico- a amplificação, que consiste simplesmente em estabelecer paralelos. Por exemplo, no caso de uma palavra muito rara, com a qual nunca antes nos defrontamos, tenta-se encontrar passagens de textos paralelos, se possível, aplicações paralelas, onde a palavra ocorra. Aí tentamos colocar a fórmula que adquirimos através dos conhecimentos de outros textos frente à passagem que nos trouxe dúvida: 'Agora é fácil compreendê-la'. Foi assim que aprendemos a ler hieróglifos e inscrições cuneiformes, e dessa forma poderemos ler os sonhos''.
O nosso autor estudado, deixa muitas vezes claro que o que ele busca é saber o que o inconsciente pode dizer sobre os complexos do analisando, um trabalho que exige cautela para decifrar, junto com o paciente, os simbolismos no sonho. Ele vai dizer nessa mesma conferência, quando os seus interlocutores pedem que ele aborde sobre as manifestações oníricas, o que se segue: ''Não me interesso por saber os complexos dos meus pacientes. Quero saber o que os sonhos têm a dizer sobre os complexos e não quais são eles. Quero saber o que o inconsciente de um homem está fazendo com os seus complexos. Eis o que decifro num sonho''.
O pensador suíço considerava os sonhos como os mensageiros da alma e são imprescindíveis para se compreender a verdadeira situação em que um indivíduo se encontra e os dilemas de sua alma. Freeman, a respeito dos símbolos que aparecem na linguagem dos sonhos (manifestações de nosso inconsciente), vai dizer de maneira bem assertiva: ''A linguagem e as pessoas do inconsciente são os símbolos, e os meios de comunicação com este mundo são os sonhos. Assim, um estudo do homem e dos seus símbolos é, efetivamente, um estudo da relação do homem com o seu inconsciente''.
Apesar de Jung fazer várias críticas ao pensamento de Freud a respeito dos sonhos, não deixa de valorizar a importância do fundador da psicanálise no que diz respeito ao estudo das manifestações oníricas no livro ''A interpretação dos sonhos'', escrito em 1900. No livro ''A natureza da psique'', o psicólogo de Zurique reconhece que: ''O grande mérito de Freud foi o de ter aberto uma pista para a pesquisa e a interpretação do sonho. Ele reconheceu, antes de tudo, que não podemos empreender nenhuma interpretação sem a colaboração do próprio sonhador''.
Através dessa intuição, o psiquiatra suíço elaborou o seu próprio estilo de compreender o mundo do paciente, dando condições para que o mesmo possa abordar os conteúdos mais profundos de sua psique com o auxílio não somente da escuta, mas também mediante o recurso de desenhos, pinturas e mandalas.
Além disso, o criador da psicologia analítica valorizou os conteúdos das mitologias, os enredos dos contos de fada, as concepções das filosofias gnósticas e uma profusão de ideias extraídas da alquimia para fazer aproximações com todos aqueles conteúdos expressos pelos sonhos de seus pacientes. Foi dessa forma que ele conseguiu enriquecer a sua psicologia analítica e aprimorar a prática psicoterapêutica e clínica.
Jung, depois de mencionar numa de suas conferências (ou seja, a quarta conferência para uma platéia de intelectuais e estudiosos do seu pensamento) a degradação do rei Nabucodonosor numa condição animalesca devido a sua prepotência e arrogância, bem como o sonho que lhe sobreveio anteriormente como aviso de seu declínio e loucura caso continuasse persistindo numa vida de megalomania e altivez, também vai salientar nesse estudo ''Sobre os fundamentos de psicologia analítica'' que os sonhos podem servir como um indicador e cuja função também pode ser compensatória: ''Os sonhos históricos, bem como todos os outros, têm função compensatória: são indicações- sintomas, se os senhores assim o preferirem- de que o indivíduo não está em sintonia com as condições do inconsciente, sendo prova de que, em qualquer ponto, ele desviou-se do seu caminho natural. Em algum ponto tornou-se vítima de suas próprias ambições, de seus propósitos ridículos''.
Em outro parágrafo, esmiuçando esse assunto de grande importância, o psicólogo vai falar que: ''Os sonhos são a reação natural do sistema de autorregulação psíquica. Tal formulação, a que consegui chegar, é a que está mais próxima de uma teoria sobre a estrutura e função oníricas. Afirmo mais uma vez que os sonhos são tão complexos, imprevisíveis e incalculáveis como as pessoas que observamos na vida de todos os dias''.
Para Jung, a interpretação dos sonhos tem como missão descobrir o que o inconsciente quer dizer a respeito dos complexos. Essa instância psíquica chamada inconsciente diverge da consciência por abrigar não só nossos conteúdos reprimidos e os complexos, mas também os arquétipos enraizados nas camadas mais profundas da psique.
O inconsciente, certamente, não obedece aos comandos de nossa vontade consciente. No livro ''A natureza da psique'', o criador da psicologia analítica enfatiza a autonomia do inconsciente em relação a consciência: ''Como o sentido da maior parte dos sonhos não coincide com as tendências da consciência, mas revela divergências singulares, devemos admitir que o inconsciente, a matriz dos sonhos, tem um funcionamento independente. É o que eu designo por autonomia do inconsciente. Não somente o sonho não obedece a nossa vontade, mas muitas vezes se opõe, até mesmo muito fortemente, às intenções da consciência'' .
Baseado nessa perspectiva, dá para compreender que essa oposição fica claro quando uma pessoa sonha com conteúdos dotados de uma carga bem pesada e angustiante. O trabalho do analista junguiano consiste então em ajudar o paciente a compreender melhor os símbolos dos seus sonhos e tudo aquilo que produziu aflição e inquietação. Os sonhos são os grandes sábios e às vezes eles podem trazer materiais de grande teor premonitório, profético ou até mesmo de alerta. Ele pode também apontar sinais indispensáveis para o destino de um ser humano em busca de autoconhecimento.
É muito interessante observar que os sonhos nessa abordagem são uma fonte rica que pode auxiliar o paciente no seu processo de individuação, até porque, para Jung, os sonhos nunca se esgotam e há sempre novas interpretações e análises que podem ser feitas, especialmente quando um sonho é dotado de grande força premonitória ou é rico em simbologias que remetem as histórias infantis dos contos de fadas ou aos enredos das mitologias mais remotas e inusitadas.
O psicólogo suíço, a respeito dos sonhos para o processo de individuação, vai dizer no ensaio ''A essência dos sonhos'' que: ''O sonho se serve de figuras coletivas porque tem como finalidade exprimir um problema eterno que se repete indefinidamente, e não um desequilíbrio pessoal''. E mais a frente, ele vai dizer sobre a individuação o que se segue: ''Todos aqueles momentos da vida individual em que as leis gerais do destino humano rompem as intenções, as expectativas e intenções da consciência individual são, ao mesmo tempo, etapas do processo de individuação. De fato, este último é a realização espontânea do homem total.''
Como não temos controle do que vamos sonhar, certamente podemos em nossa viagem onírica nos deparar com revelações que nos encaminham para a compreensão de nosso destino individual e que podem nos ajudar na descoberta de quem somos, que é um verdadeiro estímulo para o nosso autoconhecimento e para o encontro com a nossa totalidade.
Jung, evidentemente, extraiu muitos aprendizados com os seus próprios sonhos e também de seus pacientes; em diversas obras, procurou dimensionar a riqueza das imagens oníricas, deixando um legado riquíssimo de quadros de mandala que pintou e uma enorme quantidade de descrições de fantasias e viagens oníricas, algumas delas de ordem proféticas.
No livro ''O homem e seus símbolos, num artigo que escreveu sobre o universo onírico, o pensador suíço deixa claro sobre a função compensadora dos sonhos: ''A função geral dos sonhos é tentar restabelecer a nossa balança psicológica, produzindo um material que reconstitui, de maneira sutil, o equilíbrio psíquico total. É o que chamo a função complementar (ou compensatória) dos sonhos na nossa constituição psíquica''.
Para interpretar um sonho, o psicólogo analítico recomenda a seus alunos que esqueçam tudo o que aprenderam de forma teórica sobre os símbolos no sonho. Ele diz da seguinte forma em ''homens e seus símbolos'': ''Por essa razão disse eu sempre a meus alunos: 'Aprendam tanto quanto puderem a respeito do simbolismo; depois quando forem analisar um sonho, esqueça tudo' ''. Pois, de fato, não há receitas para uma boa interpretação de sonhos; e tudo vai depender da relação do psicoterapeuta e do seu paciente, ou seja, de como cada um vai contribuir para o prosseguimento e evolução das sessões de terapia. O sonho na visão do mestre suíço nunca pode ser compreendido perfeitamente, até porque ele é algo que diz respeito ao indivíduo e a sua boa vontade para revelar aquilo que é tão difícil de ser exprimido.
É interessante observar que para compreendermos um sonho, é necessário entender o significado dele para quem sonha. Às vezes um sonho, em meio a tantos sonhos corriqueiros, pode surgir um que se torna o grande sonho de uma vida. É através dessa constatação que Jung fez um paralelo com os sonhos de algumas tribos primitivas que ele visitou. É bem raro que haja um sonho cuja descrição é importante para o destino de toda comunidade. Mas quando isso acontece, o integrante comunica para a tribo e então todos participam do seu mistério. Essa é a grande diferença entre as sociedades tribais, para quem o sonho de um indivíduo é dotado grande poder místico e espiritual e as sociedades modernas, para quem o sonho dos seus cidadãos se tornou empobrecido de significados espirituais.
No ensaio ''A essência dos sonhos'', há uma bela exposição de Jung do que foi mencionado a respeito dos sonhos na vida dos povos primitivos: ''Nem todos os sonhos têm a mesma importância. As próprias tribos primitivas distinguem entre 'os grandes sonhos' e 'os pequenos sonhos'. Nós os chamaríamos de 'sonhos significativos' e 'sonhos banais'. Se examinarmos mais de perto, 'os pequenos sonhos' nos aparecem como fragmentos da fantasia noturna corrente, que derivam da esfera subjetiva e pessoal, e sua significação se esgota no âmbito dos fatos ordinários de cada dia. Por isto, os esquecemos facilmente, porque sua validade não ultrapassa as variações do equilíbrio psíquico. Os sonhos importantes, pelo contrário, ficam gravados muitas vezes na memória por toda a vida e constituem, não raramente, a joia mais preciosa do tesouro das experiências psíquicas vividas''.
E no que se refere aos símbolos, a presença deles nos sonhos transcendem o seu significado. Eles sempre vêm geralmente carregados de muita afetividade e mobiliza a totalidade do psiquismo. Como foi possível notar, a interpretação dos sonhos na abordagem junguiana leva sempre em consideração os seus símbolos subjacentes e tudo o que eles podem significar para uma alma. Assim, não só as experiências são importantes para uma análise de sonhos, mas também os arquétipos revelados pelos símbolos no processo onírico, os quais podem muitas vezes se repetir na vida de uma pessoa. Nesse caso, requer um cuidadoso trabalho de investigação para entender o porquê de tamanha persistência.
Focado nessa demanda, Jung buscou, através de muitas vivências em viagens a países exóticos e atendimentos a uma enorme quantidade de pacientes (onde ficou a par de centenas de sonhos), elaborar uma teoria que porventura desse conta de compreender melhor tudo o que se passa no psiquismo humano. Foi observado por ele que a consciência, como uma aquisição mais tardia da humanidade, é apenas uma parte de nossa psique, onde o ego é apenas o leme que dirige o nosso complexo psiquismo e nunca deve ser encarado como a nossa totalidade sob pena de levar o ser humano a um completo fracasso e desastre existencial.
Há também, então, o horizonte do inconsciente onde estão presentes as nossas memórias reprimidas, as percepções que já não lembramos mais, bem como os nossos complexos que têm certo grau de autonomia e que muitas vezes podem se mostrar nos sonhos. Por fim, o pensador suíço postulou o inconsciente coletivo para dar conta de compreender tantos fenômenos psíquicos e espirituais. Nessa camada, como enfatizada por esse cientista de renome, pode ser encontrada tudo o que a humanidade viveu; e pode acontecer de surgir em qualquer manifestação onírica de caráter prognóstico e de ordem espiritual. No livro ''A natureza da psique'', Jung expressa as suas concepções a respeito do inconsciente coletivo e os seus conteúdos recorrentes: ''E o essencial, psicologicamente falando, é que nos sonhos, nas fantasias e nos estados excepcionais da mente, os temas e símbolos mitológicos mais distantes possam surgir autoctonemente [sem causa evidente] em qualquer época, aparentemente como resultado de influências, tradições e estímulos individuais, mas também, mais frequentemente, sem estes fatores. Essas "imagens primordiais" ou "arquétipos", como eu os chamei, pertencem ao substrato fundamental da psique inconsciente e não podem ser explicados como aquisições pessoais. Todos juntos formam aquele estrato psíquico ao qual dei o nome de inconsciente coletivo”.