Todo Incogniscível 3 - Regressão ao Infinito

REGRESSÃO AO INFINITO

Tudo tem uma origem, certo? Está muito frio e uso um casaco verde. Tal casaco vem de uma loja, a loja comprou o casaco de uma fábrica, a fábrica pegou o algodão de uma transportadora, por sua vez este algodão veio de um galpão, antes do galpão veio de plantas. Acabou a história? Não, as plantas foram sementes e tiveram progenitoras, tais progenitoras vieram de outras progenitoras, se seguirmos com paciência rastrearemos a origem da espécie algodoeira, a origem das próprias plantas, se seguirmos ainda mais após algumas eras geológicas chegaremos à origem da vida. Acabou aí? Claro que não! Tais condições em que surgiram a vida também tiveram uma origem. A busca é infinita!

RACIONALIDADE

David Hume aplicou este raciocínio não em relação a origem do material da roupa que visto, mas em relação ao próprio pensamento. Se risco um fósforo ele ascende. Posso explicar este fenômeno em termos físico/químicos. O ponto é que a própria teoria físico/química se embasa em algum arcabouço teórico. Tal arcabouço teórico, por sua vez, também demanda um arcabouço teórico. Assim sucessivamente até o infinito.

ONDE RODA O SOFTWARE

A situação tratada por David Hume em relação ao conhecimento é exatamente a mesma que se dá em um computador. Trabalho com um programa de efeitos em vídeo (After Effects), este programa tem dentro de si diversos outros programas. Tais programinhas (plug-ins) só rodam dentro do After. Já o After só roda dentro de um sistema operacional (como o Windows). Assim sucessivamente até o infinito! Opa, mas espera! O computador em que eu trabalho é finito! É impossível instalar infinitos programas nele! Da mesma maneira cada pessoa é finita, é impossível recorrer infinitamente atrás de um arcabouço intelectual do arcabouço intelectual do arcabouço intelectual…..

POR QUÊ?

Quando eu era criança eu sempre perguntava ‘por quê’. Minha família (de professores) tentava responder a cada pergunta de maneira respeitosa, didática e honesta… quase sempre. Tem uma hora que é impossível continuar a cadeia de “por quê?” , lembro do meu avô (normalmente paciente e incentivador da minha curiosidade) dando um grito e dizendo algo como “Você nunca se cansa!”. O ponto é que é impossível chegar a um resultado final (ups! inicial), sempre é possível questionar mais uma vez o ‘por quê’ de alguma coisa. Agora imagine fazer esta cadeia, mas com algo diferente: ao invés de buscar a causa da causa da causa…. Buscar a fundamentação da fundamentação da fundamentação….

APRENDIZADO

As pessoas ignoram a fundamentação do seu aprendizado, mas aprendem! Um bebê não faz divagações profundas acerca da natureza do movimento. Ele apenas observa como as pessoas andam, como se comunicam, como gesticulam... Um gato não faz uma divagação profunda sobre o comportamento de uma barata. Mas quando ele brinca com uma ela aprende como a barata reage a cada situação - aprendizado muito útil nas próximas caçadas. Perceber que o pão se desfaz à medida que o mastigamos é um aprendizado. Ele se dá por indução, passamos anos mastigando alimentos. Sabemos que o resultado disso é a maceração dos alimentos (se o resultado fosse a maceração dos dentes só nos alimentaríamos através de líquidos). O aprendizado por indução se dá a partir da generalização dos casos que observamos.

INSTINTO

Um bebê ou um gato não fazem grandes raciocínios filosóficos sobre o embasamento do seu aprendizado. Já que é assim (já que não há um aprendizado da capacidade de aprender) tal capacidade é inata, é um instinto! E o mais incrível: tudo aquilo que chamamos de “razão” ou “racionalidade” tem origem neste instinto. Com o computador se dá o mesmo, ele também nasce com um “instinto” que o permite aprendizado. Usando um jargão inorgânico: o computador é construído com a memória ROM, a memória de inicialização sem o qual nenhum outro programa pode rodar.

OBJEÇÕES À IDEIA DE QUE A RACIONALIDADE SE ASSENTA NO INSTINTO

Poderia se objetar que humanos não nascem com instinto, pois instinto é exclusivo a animais. Essa é uma objeção não se aplica pois a humanidade é uma espécie animal (somos mamíferos). Também poderíamos objetar que a racionalidade não é um instinto, pois o instinto é um comportamento fixo, já a racionalidade é um comportamento flexível. Concordo que se definirmos instinto como um comportamento fixo excluiremos racionalidade, entretanto excluiremos até a confecção de teias de aranhas (foi observado que aranhas mudam o padrão de suas teias conforme o sucesso em suas caçadas). O que chamamos de instinto é um padrão com alguma flexibilidade. Darwin mostrou que até minhocas tem capacidade de aprendizado.

O COMEÇO PARA O COMPUTADOR

A memória ROM é o começo dos “arcabouço teórico” do computador (seria o seu instinto). Mas, como em qualquer regressão ao infinito, a história começa antes. Começa com o desenvolvimento de computadores anteriores, sistemas anteriores. E se formos ainda mais atrás buscaremos o começo em teorias matemáticas… e enfim, a busca é infinita.

CONCLUSÃO

David Hume usa o raciocínio da regressão ao infinito para mostrar, primeiro que a nossa capacidade de entendimento tem uma restrição (a nossa finitude), segundo mostra que a nossa racionalidade é compreendida dentro do instinto. A compreensão deste raciocínio é importantíssima para o passo que darei nesta série de ensaios ‘O todo incogniscível’: a proposta de que o acesso a qualquer informação objetiva é impossível. Vou argumentar que esta maneira (cética) de ver o mundo não apenas não leva ao niilismo como é a maneira mais apropriada de pautar a ação no mundo.

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 14/09/2020
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