LUIZ NICANOR: O POETA EM SINTONIA COM O SEU TEMPO

“O artista é, em boa medida, o doente e o médico de si mesmo.”

Stanley Kunitz, poeta americano.

Há pessoas que são imprescindíveis à sua comunidade, porque esta necessita de suas presenças, de suas disponibilidades, de suas diuturnas prestações para atender às demandas quotidianas, ainda mais num país em busca de sua identidade como nação e de seu necessário desenvolvimento social e político.

Qualquer povo, grupo social ou etnia necessita deles, porque são especiais: percebem o que está a fazer falta, especialmente quanto à liberdade de expressão e à axiologia de justiça e equidade, no cadinho de sua fermentação social.

O Brasil dos tempos atuais precisa dar conta ao mundo de sua grandeza territorial, tornando-a útil aos seus mais de duzentos de dez milhões de habitantes necessitados de atenção e zelo no tocante ao comer, beber, trabalhar, ganhar dinheiro e conviver em paz.

Há profissionais que detêm este viés social e sobre eles se acumulam esperanças. Dois desses grupos de pensamento e ação podem ser elencadas como exemplo: os médicos e os poetas.

O primeiro é o cidadão que fez o juramento de Hipócrates, prometendo cuidar do corpo humano, de sua complicada psique e do funcionamento dos milhões de células que compõem o homo sapiens – um organismo exemplar nascido pronto por e para o mistério da vida sobre o planeta.

O Absoluto de Tudo o colocou neste território de desafios às aptidões para que possa ser útil ao outro, numa gestão de fidedignidade à fonte original que o pôs no planeta.

A teleologia do humano ser é a alteridade: o semelhante necessita de compartilhamentos emocionais para que o exercício do viver individual torne o conviver possível ao outro, sem ser motivo de apreensão ou de opressão, ainda mais num mundo globalizado como o da contemporaneidade.

Bem, o segundo ser em pauta é o escritor/poeta, uma figura pitoresca e singular, porque esses exemplares raros, por sua composição anímica perceptível desde o mais simples questionamento, possuem uma interlocução assentada no altruísmo, e, por esta razão, vivem e morrem pelas causas em que acreditam.

São tipos humanos amalgamados, cediços de verdades autênticas em suas mais íntimas plenitudes, muito diferentemente do cidadão comum. Regem-se pelo aforismo de Benedetto Croce, o poeta-senador italiano do início do séc. XX: “O homem, contrariamente aos animais e os deuses, está condenado a pensar.”.

E o meu ego (racional), ainda que humildemente, a este atrelaria um conceitual de cunho filosófico-existencial: “... e a dizer algo sobre a sua reflexão e o consequente acréscimo ao seu estado de consciência”.

Bem, o poeta é um servo de suas mais íntimas funcionalidades: questiona tudo o que está a sua frente e emite sua opinião numa linguagem em sentido conotativo, contendo uma apreciável dosimetria de codificação – nunca sentencial ou direta, de fácil compreensão – com a clareza de uma assertiva executiva imediata, como é usual acontecer com o ser do lugar comum da vida.

Na verve do poeta há um véu que cobre sua palavra dotada de replicante voz, porque “sua condenação anímica é também a de fazer o outro pensar”, com o fito de descobrir caminhos para lograr um melhor vir a ser.

Vive no espiritual do poeta o espírito inquieto e mudancista. Para o receptor ele nunca tem resposta definitiva, e sim em cada verso, a cada estrofe ou poema, somam-se mais e mais perguntas.

Copiando esse perfil expositivo-teleológico, numa silhueta bem-acabada na vida de relação e de prole numerosa, assim é Luiz Nicanor Araújo da Silva, um gaúcho de Santo Antonio da Patrulha, no Rio Grande do Sul, nascido em 1944, médico formado em 1974, com jornada diária de prestação de serviços estimada em cerca de dezesseis horas até 2013, quando se aposentou e logrou obter mais tempo para sua criação em prosa e verso, mercê de seu engajamento na vida comunitária em seu ofício de cuidar da vida e também de sua saúde, que apresentava alguns percalços.

Diz o seu biógrafo literário que Nicanor desejou ser escritor desde a infância, mas o Dr. José Bonifácio da Silva, seu pai, queria um herdeiro na medicina, e a juventude cedeu aos desejos patriarcais, o qual lhe forneceu raiz tutelar para o entendimento do mundo através da filosofia e da poética.

Tenho para mim que a poesia é a voz do Mistério, o único que faz Poesia.

Também creio que o Ego não faz poesia, não escreve poemas – o formato poético da contemporaneidade – e, sim, oferece a sua lavratura no gênero Prosa, visto que, em seu egocentrismo, aciona a intelecção e se propõe a ser o dono da razão, ainda que a enfeite com alguns laivos de pulsão sensorial, por vezes de belo efeito estético e rítmico.

Portanto, aquele que transita na poesia é o seu alter ego, esse hóspede incômodo e erradio, que nos habita nos territórios da emoção, tão bem identificado pelo genial poeta português Fernando Pessoa, para o qual especificamente criou e inaugurou o vocábulo “heterônimo”. A maioria das pessoas diz que Poesia se faz com os sentimentos vigentes no poeta-autor naquele momento do fazer criando ou dele defluem efeitos do exercício do sentir, mas não é bem assim.

O poema (com Poesia) se faz com palavras e não com profusão de ideias e sentimentos aplicados à peça escritural. A poesia está nas palavras, são elas que conformam o belo estético.

Para Octavio Paz, filósofo e poeta mexicano, prêmio Nobel de literatura de 1990, “(...) há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e acontecimentos podem ser poéticos: são poesia sem ser necessariamente poema.”.

Estes últimos, os poemas, são nômades caracóis – que carregam a sua casa nas costas – nos quais está alojado o intimismo sentimental, com novos e originais significantes e significados da palavra capazes de formatar o Poema – um organismo verbal que contém, emite, inspira ou suscita poesia.

Não se confunde nem pode ser apenas o confessional do poeta, e sim a coleção de imagens que reproduz a vida, no útero do poema.

Vejamos, o que nosso poeta Luiz Nicanor oferece à posteridade, numa apresentação gráfica linear – uma singela tentativa de formatação decodificadora que me pareceu correta e razoavelmente bem ajustada. São versos de boa consignação estética e rítmica. Saltam aos olhos vários excertos em que a poética comparece vivamente, nos quais constatamos até alguns laivos surrealistas de alta complexidade. Degustemos:

“As mãos que sacrificam os animais podem até matar mãos domesticadas ferramentas de ofício// A ventania é a bruxa louca soltando a cabeleira da touca// A ventania sopro de monstros apagando as velas do aniversário// O poeta ara a página o grão do poema debulha com a pena lavra// O plantador ceifa a colheita prepara a tulha escreve o poema do grão// A casa velha com o alívio do estômago abriga fantasmas com tranca de ferro// O céu é uma boca de fornalha e um cartaz de soalheira// A cigarra não desliga a serra elétrica// O inverno abre a sua coleção de adagas e experimenta no dedo o fio// Nalgum canto do cosmos meteoros chorosos se suicidam longínquos por mais um sonho a espocar// a falta de jeito apanha Cupido com dor no peito o proibido rasga do dicionário que não foi lido// o manuseio da luz em tuas curvas garatujam estrelas// O nácar dos mamilos destaca-se dos pomos – uma montanha nevada num pôr de sol escarlate// Onde me levará esta noite morta este vazio tão íngreme e longínquo que se espraia sem fim na minha porta?// na esquina o olho é dúbio tênue a linha divisória da faísca e da pólvora// cada beijo fere a boca de dentes afiados cada desejo recebe o malho do preconceito// trinchar nos dentes o caroço das nuvens// O que ao alto ascende mais fácil cai e só lá permanece quem não se engana e com altivez humilde pelo mundo vai// Na epiderme das ruas e no estômago dos salões o ar lascivo ondula a mistura de curvas de nádegas e seios// uma estrela caiu abraçada à lua e o sol veio atrasado podre de bêbado// O silêncio é uma bigorna solta no vácuo// O poema é a palavra em roupa de festa// O horizonte molha as nádegas na distância // O mar é um aquário de naufrágios// o mel que te é lambido calça a meia e o pé do fel // o olho vesgo da tarde põe-te a língua de arame// a noite vai alta e esboroa nos tênues albores da aurora em guarda a estátua conversando com a solidão// a uva é roxa e te espera na promessa do vinho// Teu espírito é pacato não está imunizado às navalhas do mundo// Aninhada nos braços do meio-fio uma cabeça de boneca olhos muito arregalados repensa o inferno de Dante”.

Por último, seguem os meus mais sinceros cumprimentos ao homenageado e à professora Véra Lúcia Maciel Barroso e a sua equipe, que produzem há 31 anos o legado documental biobibliográfico do “Poesia na Praça”.

Necessário é ressaltar que todos os versos aqui elencados são fragmentos poéticos colhidos do livro AS PRESAS DO TIGRE. Porto Alegre: Evangraf, 2015, 104 p., Coleção Poesia, segunda fase do poeta-autor Luiz Nicanor.

Porto Alegre, RS, 21 de agosto de 2020.

Joaquim Moncks é escritor, poeta e ensaísta. Membro titular na Academia Rio-Grandense de Letras – ARL, sediada em Porto Alegre/RS. Exerce a Coordenação Executiva da Casa do Poeta Brasileiro – POEBRAS Nacional desde 2003.

MONCKS, Joaquim. A BABA DAS VIVÊNCIAS. Obra inédita em livro solo,1978/2020.

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