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Jacques de Molay cochilava quando ouviu os passos dos soldados que se dirigiam para a porta da sua cela. Sabia serem soldados por causa do barulho das botas ferradas que ressoavam nas pedras do piso do calabouço onde ele estava acorrentado e pelo ritmo marcial desses passos, que contrastavam com o passo lerdo e displicente do gordo carcereiro que vinha lhe trazer a magra ração do dia, que consistia, normalmente, de pouco mais que pão e água. O andar do carcereiro era silencioso como o de um rato, enquanto o dos soldados era pesado como os de um cavalo.
O rangido dos gonzos da velha porta despertou-o de vez. Sentou-se na enxerga que lhe servia de cama – único móvel existente na cela – esfregando os olhos, ainda mal acostumados com a luz do archote, brilhando nas mãos gordurentas do carcereiro, que precedia a entrada dos soldados. Atrás dele vinha o preboste de Paris, acompanhado por quatro soldados, com seus piques na mão, prontos para serem usados. O carcereiro tirou de uma sacola presa na sua cintura um martelo e um buril e com a maestria de quem fez aquilo a vida inteira, soltou, em questão de segundos, o resistente rebite das argolas que prendiam os tornozelos do prisioneiro às grossas correntes de ferro, chumbadas na parede da cela. O prisioneiro saudou, com um suspiro de alívio, aquele momento de liberdade. Friccionou as mãos ossudas contra os tornozelos magoados pelas argolas e levantou-se com dolorosa lentidão. 
– Vinde conosco, monsenhor de Molay, – comandou o preboste, sem nenhuma emoção na voz.
     Jacques de Molay olhou para todos os cantos da sua cela. Seria a última vez que a veria? O que haviam decidido fazer com ele? Definitivamente estava cansado daquilo tudo. Quantas e quantas vezes, naqueles terríveis últimos sete anos, se repetira aquela cena, de um carcereiro rompendo os rebites das correntes para levá-lo para um interrogatório frente a uma comissão de prelados da Santa Inquisição? E depois voltava ele, novamente, para ser atado a outras correntes. Quando terminaria esse suplício?
§§
    
    O tempo estava frio e brumoso naquela segunda-feira, dia 18 de março de 1314. A névoa subia do Sena e envolvia todos os contornos da Cité. A respiração dos homens que acompanhavam o velho alquebrado e andrajoso, que subia com extrema dificuldade os degraus do calabouço, formava fluídas nuvens brancas que saiam de suas bocas em cada expiração que emitiam, no esforço de vencer a íngreme escadaria que levava ao pátio do Templo. A cada instante tinham que parar para sustentar o prisioneiro, cujas forças pareciam ser insuficientes para fazer aquela jornada.
Jacques de Molay já conhecia de sobejo aquele caminho tortuoso feito de escadas íngremes e sombrias. Quantas vezes ele não tinha visitado prisioneiros no calabouço daquele castelo? Afinal, aquele era o seu castelo. Aquele era o edifício do Templo. Ele mesmo supervisionara os Irmãos maçons do Templo construindo muitas obras ali. Erguera aquelas torres, cujas ameias eram vistas, agora, despontando como velhos fantasmas, em meio à espessa neblina. Reformara aquele pátio para onde estava sendo conduzido, tornando-o muito maior, em condição de recepcionar e comportar mais de quinhentos cavaleiros. Ah! que saudade daqueles tempos!
O aparato policial concentrado no pátio do castelo fez o idoso grão-mestre pensar que finalmente alguma coisa diferente estaria acontecendo. Nenhuma troupe daquela qualidade havia se reunido antes para acompanhá-lo à uma seção de interrogatório. Ele divisou, entre as dezenas de soldados postados como um batalhão preparado para avançar, o capitão dos arqueiros, o nobre Alan Parreiles. Lembrou-se que esse homem estivera presente, naquela fatídica manhã da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, quando fora preso, naquele mesmo castelo.  “Volto  ao  lugar  onde  tudo  começou e com as mesmas pessoas que lá estavam”, pensou, com amargura, de Molay.
     Messier de Parreiles estava mais velho, observou. Nas têmporas, o cabelo castanho claro do capitão dos arqueiros começava a embranquecer. Tufos prateados, em meio à sua barba escura e cerrada, que escondiam velhas cicatrizes de batalhas, começavam a crescer. Sua face estava crispada e seus olhos, frios como o tempo que fazia em Paris.
– Messier de Parreiles, para onde estão me levando? – perguntou Jacques de Molay.
– Para Notre Dame, monsenhor de Molay. Ali serão lidas as vossas sentenças.
– Outra vez? Mas ela já não foi dada? Não fomos sentenciados a morrer na prisão? ─ perguntou, ofegando, o grão-mestre.
– Não sei vos dizer, monsenhor de Molay. Só tenho ordens de levar-vos para lá – respondeu de Parreiles.
Em meio à bruma que escondia os rostos naquele pátio, onde, por nove anos, presidiu a muitas reuniões dos seus cavaleiros, Jacques de Molay, de repente, viu surgir um rosto macilento, todo coberto com uma barba desgrenhada e hirsuta, parecendo um matagal de murtas. Logo, um corpo alquebrado, esquelético, coberto com os andrajos do que fora, um dia, o vistoso manto dos Templários, tomou forma à sua frente. Nele de Molay reconheceu o seu velho amigo, o monge-cavaleiro Geoffrey de Charney.
Deu um abraço emocionado no seu Irmão de armas. Lágrimas copiosas escorreram dos olhos de ambos, que eles secaram com a manga dos seus puídos mantos. Ambos haviam sido concitados a vestir o velho uniforme da Ordem, o manto branco com a cruz vermelha no peito, para que fossem devidamente reconhecidos pelo populhaço.
– O que vão fazer conosco? – perguntou Charney.
– Eu não sei, meu Irmão. Mas seja o que for, vamos enfrentar com coragem. Afinal, somos Cavaleiros Templários – respondeu de Molay. Jean de Janville, o carcereiro, aproximou-se deles e perguntou. – Quereis que vos tire essas cadeias, monsenhores?
Molay respondeu.–Somos gratos, mas não temos como pagar-vos, Messier de Janville.
Essa era uma lei que vigorava em relação a prisioneiros, cujas sentenças finais ainda não haviam sido pronunciadas. Como cabia ao estado a sua manutenção, havia uma verba destinada para cobrir esses custos, da qual eram retiradas as despesas com comida, transporte para os interrogatórios e a até o preço das correntes com que eles eram presos em suas celas. A verba era tão pequena que os carcereiros costumavam cobrar dos próprios prisioneiros algumas das despesas que eles ocasionavam. As correntes e cadeados com que eles eram presos em suas celas eram algumas dessas despesas.
– Tirai essas cadeias dos prisioneiros –, ordenou o capitão dos arqueiros – Eu pagarei por eles.
Sacou algumas moedas de uma bolsa presa em sua cintura e as entregou ao carcereiro. As correntes foram imediatamente soltas.

– Deus vos pague por isso –, disse de Molay ao capitão Parreiles, esfregando os pulsos libertos dos incômodos braceletes.
O capitão não respondeu. Apenas se dignou a lançar um olhar   inexpressivo para os dois andrajosos anciãos, como se não os es-tivesse vendo.
– Andando senhores. Somos esperados em Notre Dame. Vamos acabar logo com isso –, ordenou.

 
Uma carroça aberta esperava por eles. Foi ordenado aos dois prisioneiros que subissem nela. Vinte e cinco soldados, portando piques e balestras, se postaram em ambos os lados da carroça, que se moveu em direção ao enorme portão do castelo do Templo. Parreilles e seus oficiais montaram em seus cavalos. Jacques de Molay passeou os olhos pelas imensas muralhas que desapareciam na bruma. Seria a última vez que estaria contemplando aquele edifício, que para ele, era um lugar sagrado?
 Por mais de cem anos os Templários haviam exercido seu poder na terra, cumprindo as ordens que emanavam daquele castelo. Aquilo não podia estar acontecendo. Parecia um pesadelo interminável.  Jacques de Molay pensava que de repente iria acordar e ver que tudo aquilo não passara de um sonho mau. Mas não. Ao se abrirem as pesadas folhas do grande portão, um alarido ensurdecedor, formado por milhares de vozes, veio arrancá-lo desse torpor. Não imaginava que houvesse tanta gente do lado de fora do castelo. Era uma verdadeira multidão que se aglomerara em frente aos portões do Templo. Uma turba que gritava, vociferava, dizia impropérios, esperava pela saída dos dois altos dignitários da Irmandade. Como não pudera ouvi-los antes?
A carroça rolava lentamente pelas estreitas vielas do bairro do Templo. Saíram pela rua de La Bretonnerie; passaram em frente ao Convento de Saint Merry; rodaram por toda a extensão da Rua dos Blancs Mantoux. As pessoas, aglomeradas nas ruas, espremiam-se contra as pedras dos muros. Por onde passava, o cortejo era saudado com impropérios e insultos.
– Hereges malditos!
– Assassinos!
– Sodomitas!
– Á fogueira com esses desgraçados!
     Mas nem toda a multidão aglomerada nas estreitas ruas que conduziam à praça de Notre Dame atirava impropérios e insultos aos desgraçados e imundos prisioneiros. Uma boa parte dos rostos, naquela multidão, estava muda. Alguns pareciam até mostrar alguma tristeza. Talvez até tenham vertido algumas furtivas lágrimas, na passagem do triste cortejo com aqueles dois velhos e andrajosos cavaleiros a caminho dos seus tristes destinos. De cabeça erguida, eles seguiam, em pé sobre a carroça que rolava, lentamente, pelo piso de pedra que cobria a rua que desembocava na praça da catedral. O que os comandantes do Templo ainda não sabiam, toda aquela turba parecia saber.
     Jacques de Molay e Geoffrey de Charney gostariam de ver tristeza naqueles rostos e talvez até imaginassem ter visto algumas mulheres se persignando quando eles passaram e lágrimas furtivas brilhando nos olhos delas. É sempre um consolo pensar que alguém se incomoda com a nossa desgraça. Faz com que ela pareça menor.
     Lentamente, o cortejo atingiu a ponte que conduzia à ilha. Do outro lado da ponte, a Praça de Notre Dame. À direita da igreja, como uma mancha no meio do rio, a pequena Ilha dos Judeus. A espessa neblina que subia do Sena não deixava ver muita coisa.  Os sinos de Notre Dame, durante toda a manhã, repicaram com ensurdecedora insistência. A carroça atravessou a ponte e parou no meio da praça, onde uma enorme multidão estava concentrada.
     Então, de repente, os sinos pararam de repicar. Um silêncio mortal invadiu a praça. Nem nas janelas das casas em volta do quadrilátero que cercava o enorme edifício não se ouvia um único murmúrio. Paris ficou silente, imóvel, esperando. Como por milagre, toda a bruma que envolvia a praça se dissipou e um sol, um tanto pálido e mirrado, apareceu por trás de uma das imensas torres de Notre Dame. Por todos os lados do imponente edifício podiam ser vistos os andaimes dos maçons que ainda trabalhavam para dar acabamento ao grande e magnífico Templo, que era o orgulho de Paris. A rosácea central brilhava como uma coroa de luzes, destacando os grandes pórticos dessa magnífica obra da Arte Real que se erguia no centro da ilha de La Cité, como se fosse o próprio rei dos edifícios. Os onze degraus que separavam seu pórtico do chão lajeado da praça faziam com que o maciço colosso parecesse estar suspenso no ar. As pequenas casas de madeira e tijolos, de dois e até três andares, que a cercavam como se fossem cortesãos em volta do seu rei, destacavam ainda mais seu aspecto de sagrada majestade. No meio da praça o monólito sagrado de Febígeno, como sentinela silente e perene, ainda resistia à fúria dos elementos e ao vandalismo do populacho, para dizer a todo mundo que essa Paris que parecia tão devota a fé cristã, já fora, um dia, uma cidade de adoradores do sol e da lua.
     De pé sobre a carroça, de costas para a grande multidão silenciosa, mas de frente para um grande grupo formado por membros do clero em seus hábitos cardinalícios, nobres cavaleiros em suas quotas de malha, o preboste de Paris com seu traje de veludo negro e seu chapéu de plumas coloridas, os dois grandes dignitários do Templo, andrajosos, esqueléticos, alquebrados, pareciam dois espectros egressos do mundo dos mortos.
     Monsenhor Arnaud d’Auch, cardeal de Albano, nomeado secretá-
rio do Tribunal de Inquisição para aquele processo, estava começan-
do a ler a sentença.
.     – A comissão de Inquisição, no exercício de seus poderes, à vista dos autos, condenou os acusados Hugues de Peyráuld e Geoffroy de Gonneville ao silêncio perpétuo, pelo resto dos seus dias, para que, no confino da masmorra e na solidão da clausura, possam remir os seus pecados pelo arrependimento e pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois só ele pode conceder perdão (...).
      ─ Quanto aos acusados Jacques de Molay e Geoffroy de Charney, por terem se recusado a aceitar a sentença de prisão perpétua, são, de acordo com a lei, considerados relapsos. Assim, devem ser levados à Ilha dos Judeus, para ali serem purificados pelas chamas (...)
    Monsenhor Arnaud deu por encerrada a sua leitura. Enrolou a última folha do pergaminho e entregou-a ao clérigo que lhe servia como secretário. Persignou-se e olhou para a multidão.
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    Os jardins do palácio real ficavam de frente para a Ilha dos Judeus. Uma das torres do palácio, a chamada Torre da Água, tinha uma galeria que dava de frente para ela. Dali, não obstante a distância, se obtinha uma bela vista da Praça de Notre Dame e de todas as cercanias da Ilha de La Cité.
    Em pé, na galeria da torre, o rei, acompanhado por seus filhos e conselheiros, observava o cortejo que se formava na praça da catedral para acompanhar os dois altos dignitários do Templo até a pequena ilhota, que não era mais que uma pequena mancha de terra em meio às águas escuras do rio. Percorreu com os olhos a massa que seguia o cortejo conduzindo os prisioneiros e viu, com algum prazer, que o povo estava ao seu lado. Havia um entusiasmo espontâneo naqueles rostos que sorriam, gritavam e lançavam insultos e impropérios aos dois anciãos.
Uma prancha de madeira, à guisa de ponte, foi estendida entre a praça da catedral e a pequena ilha, onde uma pilha de lenha fora erguida. Pouco mais de dez metros de uma água escura e viscosa separava a Praça de Notre Dame da Ilha dos Judeus. Há pouco mais de cem metros, do outro lado do rio, estavam os jardins do palácio real. Outros cinquenta metros adiante, ficava a galeria da Torre da Água, onde o séquito de Filipe se ajuntara para ver o macabro espetáculo. Dali eles podiam ver muito bem o que acontecia na praça e na ilha.
Os condenados foram guiados pela prancha até o terreno da pequena ilha. Por uma escada, foram levados até o topo da pilha de lenha, onde dois soldados os amarraram aos postes, um ao lado do outro.
Os soldados que os havia amarrado desceram e logo em seguida subiu um padre.
– Vós fostes homens de Cristo e lutastes por ele. Mas perdestes a fé e injuriastes a sua Igreja. Este é o momento de vos reconciliardes com Cristo, a quem negastes, e mostrar sincero arrependimento, para que vossas almas sejam salvas –, disse o padre.
Jacques de Molay olhou para o padre e disse:
─Ficai com vossa Igreja, vosso rei e com vosso Papa. Eles logo terão o que merecem. Deixai-me apenas voltar os olhos para o céu e orar. Este é o momento próprio. Eu vou morrer agora e Deus sabe que injustamente. Mas logo a desgraça alcançará quem nos condena sem justiça. Deus vingará a nossa morte. Morro com esta convicção. Só quero, agora, voltar meu rosto para a Notre Dame, nossa mãe viúva, e orar.
Então virou o rosto para catedral e começou a pronunciar uma oração, em voz baixa, numa língua desconhecida do padre. O padre persignou-se, como se o condenado estivesse invocando um demônio.
– Confessai os vossos pecados e dizei se estais sinceramente arrependidos, para que possais receber o perdão de Deus e os sacramentos da extrema-unção, sem a qual vossas almas não encontrarão repouso no outro mundo –, insistiu o padre.
─ Nada temos a confessar ─, disseram ambos os prisioneiros. A nossa inocência já a provamos a Deus.
O padre balançou a cabeça, como quem reconhecia a inutilidade de tudo aquilo. Por fim, persignou-se e começou a rezar uma ladanha
em latim.
Do alto da galeria da Torre, Filipe e seus conselheiros observavam tudo. O gesto do padre, ao balançar a cabeça, desconsolado, não escapou a Nogaret.
– Até com a morte a fungar no cangote deles, esses malditos hereges não se entregam –, disse ele.
– Eles são cavaleiros, Messire Nogaret – disse Charles de Valois.
A tirada não escapou a Filipe.
– Cavaleiros que perderam seus títulos, sua fé e sua honra –, disse o rei. – São podres e queimarão como carne podre –, completou com desprezo.
Um silêncio sepulcral invadiu a praça quando o padre terminou a sua ladainha mortuária, feita em latim. Alain de Parreiles fez um sinal a um arqueiro que portava um archote de estopa embebida em óleo. O archote foi aceso e no momento em que as chamas azuladas brilhavam na já quase noite que se iniciava, um murmúrio se ergueu junto ao populacho que se aglomerava na praça, em frente à pequena ilha. A um sinal do capitão, o arqueiro enfiou o archote no meio da pilha de lenha, que começou a crepitar. Línguas de fogo surgiram em meio à madeira seca e uma fumaça espessa principiou a subir.
Não havia se passado cinco minutos e a enorme pilha de madeira seca se transformara numa impressionante pira crepitante, de achas que estalavam e brasas que caiam, soltando infernais línguas de fogo que começaram a lamber os esvoaçantes e puídos mantos dos prisioneiros.
– Vejam – gritou um dos espectadores que estava na frente da multidão –, eles começam a assar.
Para ele e para aquela turba que ali se aglomerava, aquele era um espetáculo verdadeiramente atraente. As línguas de fogo dançavam como ninfas infernais, exercendo sobre a plateia um fascínio diabólico. Havia algo de sensual naquilo. As pessoas gozavam um prazer mórbido ao ver os dois velhos cavaleiros se contorcendo no poste, como se estivessem se esfregando nele em busca de um orgasmo. As chamas refletiam nos olhos brilhantes da turba fascinada, como se fossem fogos de Santelmo, em noites de tempestade no mar.
– Vejam – gritavam os espectadores. – Eles não parecem tão arrogantes agora.
─ Assam como os porcos que são!
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Foi então que ocorreu o fenômeno. De repente, uma rajada de vento soprou sobre a ilha e a fumaça se dissipou. A turba, fascinada, pode divisar bem os dois anciãos em meio às chamas, que já começavam a se aproximar de seus corpos. Filipe, o Belo, seus filhos e conselheiros, postados na sacada da Torre da Água, também não puderam deixar de notar o inusitado da situação. A própria madeira em chamas parara de crepitar. Um silêncio fantasmagórico se espalhou pela ilha. As pessoas esticaram os pescoços para ver e aguçavam os ouvidos para ouvir. O grão-mestre ia falar.
– Nekan Adonai. Chol begoal!─ gritou o ancião.
– O que ele disse? – perguntou Filipe.
– Parece que está clamando a Deus – disse o bispo Marigny, que havia reconhecido a palavra Adonai.
– Devia ter feito isso antes –, comentou Nogaret, com sarcasmo. – Deus não pode salvá-lo agora.
A observação impiedosa não escapou ao bispo Jean de Marigny, que conhecia bem a história de vida de Nogaret.
– Não devíeis blasfemar Messire de Nogaret –, disse o bispo.
Nogaret sorriu. Marigny, que tinha conhecimento de latim e hebraico pensou que o inflexível ministro de finanças do rei não teria sorrido se fosse judeu e soubesse o que queria dizer aquelas misteriosas palavras do ancião, cujas chamas já começavam a consumir as bordas do seu manto. Ele, que temia os encantamentos e os bruxedos, certamente não iria se sentir confortável se tivesse esse conhecimento.
Com efeito, Jacques de Molay, em meio às chamas que começavam a consumir suas carnes, clamava por justiça. Chamava pelo anjo vingador, o Elohin da vingança, conhecido pelos mestres cabalistas pelo nome de El Nekan.
– Ele deve estar invocando algum demônio –, disse Luís, o Cabe-
çudo, filho mais velho de Filipe, persignando-se.
– Seria próprio desses hereges –, comentou Enguerrand de Marigny.
– Nenhum demônio pode salvá-lo agora –, disse o rei.
Nessa altura as chamas haviam começado a queimar as roupas do altivo ancião. A sua longa barba hirsuta e desgrenhada, que antes balançava ao vento, se transforara numa lavareda azulada; e um cheiro de carne queimada se espalhou pelos ares misteriosamente parados, para àquela hora e local. Então Jacques de Molay, reunindo as forças que lhe restavam, olhou para a balaustrada, onde Filipe, o Belo, seus filhos e conselheiros, estavam presenciando a cena e gritou: 
– Rei Filipe, Papa Clemente! Antes que se passe um ano sereis convocados para comparecer perante o Tribunal de Deus para serdes julgados por este crime! Malditos sóis vós e a vossa descendência, até a décima terceira geração!
Então, como se uma mão tivesse desligado o tempo e os sons do mundo, e de repente os tivesse ligado de novo, o vento voltou a soprar sobre a ilha. As línguas de fogo subiam, aumentando de tamanho. Recomeçaram sua estranha e diabólica dança em volta dos corpos dos dois anciãos, que a essa altura já haviam perdido a consciência. A fogueira, constantemente alimentada com madeira pelos arqueiros do rei, começou a crepitar novamente.
Os corpos dos dois altos dignitários da Ordem do Templo tinham se transformado em dois tições fumegantes. Não se podia mais distingui-los dos pedaços de madeira que ardiam. O cheiro de carne queimada era agora quase insuportável. A pira, transformada em um monte de carvão incadescente, começou a desmoronar. Em poucos minutos, os dois torrões, nos quais tinham se transformado os corpos de Jacques de Molay e Geoffroy de Charney, afundaram em um mar de cinzas, chamas e fumaça.
No alto da balaustrada da Torre das Águas, Filipe olhava o dantesco espetáculo. Não pronunciara palavra quando o grão-mestre do Templo lançara a sua maldição sobre ele, sua família e o Papa.
– Acabou, Majestade –, disse Nogaret.
– É, acabou – respondeu o rei, maquinalmente.
– Pareceis preocupado, Majestade – disse Charles de Valois. – Não estais levando a sério a maldição que o velho grão-mestre vos lançou, estais?
– Não essa maldição, meu irmão, não essa maldição – disse, pensativamente, o rei.
E, inconscientemente, voltou sua vista para o colosso maciço que era a Catedral de Notre Dame. Na luz do crepúsculo que se esvanecia e no contraste com a fantasmagoria das chamas, que ainda saiam da fogueira, o reflexo que elas projetavam nas águas do Sena lhe trazia um estranho sentimento. Sem querer, seus olhos pousaram nas estranhas esculturas que ornavam o frontispício do majestoso edifício.
– Nekan, Adonai –, uma voz murmurou, nas suas costas. Filipe se admirou ao ver que alguém estivera seguindo seus pensamentos e pronunciara exatamente as palavras que seu cérebro acabara de articular, mas a língua não ousara pronunciar.
O rei se virou maquinalmente, como se uma lâmina em brasa tivesse sido encostada nas suas costas. Mas só viu o seu ministro, William de Nogaret, olhando fixamente, como ele, no momento anterior, para as estranhas carrancas que os “Obreiros do Bom Deus”, os mestres da Compagnonnage, haviam esculpido no frontispício da Catedral de Notre Dame.
“O que significa Nekan, Adonai?”, perguntava, a si mesmo, o inflexível ministro dos Selos Reais.
Mais preocupado teria ficado o ministro se tivesse visto, na madrugada daquela mesma noite, aqueles sete indivíduos usando mantos negros e pontudos capuzes da mesma cor, que se aproximaram da fogueira, que ainda ardia, e recolheram um punhado de cinzas. Como se cumprindo estranho ritual, que mais parecia uma dança fantasmagórica, eles sopraram as cinzas na direção do palácio real, recitando, em voz pausada e mântrica, um estranho cântico na lingua hebraica. Era o canto do Mac benagh, cantado pelos sacerdotes de Salomão por ocasião do funeral do arquiteto do Templo, Hiram Abiff. Esse canto também era entoado pelos sacerdotes Kadosh da Sagrada Assembleia dos judeus, quando um dos rabinos dessa seleta confraria de sábios partia para o Oriente eterno.
 
 ( CAP 27 DO LIVRO TEMPLÁRIOS- OS SANTOS MALDITOS)- 2020 EDITORA 24X7)