Valor no Livre Mercado

MANEIRA SIMPLES DE VER ATRIBUIÇÃO DE PREÇOS

Qual é o valor das coisas? No ensaio anterior apresentei uma proposta de como enxergar este problema de acordo com Marx - mais precisamente defini o valor como o agregado de trabalho para mostrar que esta maneira de ver nem descreve como as coisas são, nem tampouco podem ser uma ferramenta para elaborar como o mercado deveria ser. Neste ensaio apresento uma proposta alternativa - e muito mais simples - de entender o valor e os preços.

VALOR

O valor de alguma coisa é uma atribuição de uma individualidade em uma determinada circunstância, ou seja, é subjetivo. Não reflete uma essência, uma substância, não reflete uma propriedade objetiva do mundo e, muito importante, uma pessoa que não me conhece não pode determinar o que tem valor para mim. Reflete apenas as minhas necessidades, minhas prioridades e minha leitura de mundo. A título de exemplo, aceito pagar um alto preço pelo aluguel de um imóvel pequeno porque valorizo muito ele ser próximo ao meu trabalho. O valor de ir à pé para o trabalho é maior do que o custo do aluguel na minha corrente situação. Se meu salário fosse corroído pela inflação talvez eu optasse por morar mais longe a um preço menor.

PREÇO

Preço é um sinal. O preço é um número que sinaliza um custo de oportunidade. Cada pessoa valoriza cada produto diferentemente. Do lado de quem consome o preço é o custo de oportunidade de outras coisas que eu poderia consumir. Quando encontro um chocolate de que gosto muito vejo seu preço, se tiver com bastante dinheiro até me disponho a pagar um pouco mais caro, se eu estiver quase zerado só comprarei o chocolate se eu avaliar que o preço está bem acessível. Do lado da produção o preço sinaliza o apetite do mercado, isto é, o preço sinaliza se tem muita gente querendo consumir àquele custo. Então alguém pode decidir que àquele preço vale a pena ingressar nesta aventura de produzir chocolate. Um empreendedor pode avaliar “consigo produzir chocolate com mais qualidade do que este a um preço equivalente, se este aí vende, o meu também deve vender.”

SUBJETIVIDADE DO VALOR

É fácil notar que o valor de quem consome é extremamente subjetivo: caso eu esteja sem xícara alguma em casa ter uma xícara é algo extremamente importante para mim (que gosto muito de café). A oferta é igualmente subjetiva. Se vou me mudar do país o meu carro passa a ter muito pouco valor e eu tentarei vendê-lo mesmo que por um preço muito inferior ao que comprei. Da mesma forma em empresas, uma empresa especializada em produzir roupas pode responder rapidamente à demanda por saias. Mas ela precisará de uma sinalização muito forte (preços muito altos) para entrar em um mercado em que ela não é especialista (digamos, tênis). Se me oferecessem mil reais para fazer manutenção em um computador eu não aceitaria, mesmo sendo muito acima do preço de mercado. Se me oferecessem um milhão de reais para fazer uma manutenção de um computador eu faria (mesmo que eu tivesse que fazer um curso de manutenção só para isto). Valor é tão subjetivo na oferta quanto na demanda.

PREÇO É INTERSUBJETIVO

O valor é completamente subjetivo tanto para quem vende como para quem compra, mas a transação é um acordo entre partes. Se as pessoas envolvidas acham que vão melhorar sua situação elas aceitam o acordo. Ou seja, quando o valor do produto é maior do que o dinheiro que será dispensado (aos olhos do comprador) e quando o valor do dinheiro é maior do que o valor do produto (aos olhos do vendedor) eles efetuam a transação. Assim, no livre mercado, o preço é dado intersubjetivamente - um preço extraordinariamente alto pode ser dado, mas ninguém vai comprar.

TRANSAÇÃO AGREGA A TODAS AS PARTES

A transação só se dá quando todas as partes entram em acordo de que ficam melhor após ela. Eu, como comprador, só pago pelo chocolate quando avalio que fico melhor com ele do que com 4 reais que ele custa. Da mesma maneira o mercado só me vende o chocolate a 4 reais por que ela avalia que está melhor com aquele dinheiro do que com a mercadoria. Já como vendedor vendo meu tempo e meu esforço ao meu empregador porque avalio que estou melhor com o meu salário do que com aquele tempo disponível (eu até gostaria de reduzir minha carga horária proporcionalmente ao meu salário, mas esta opção não está à mesa).

IMPOSIÇÕES AO MERCADO

Quanto mais imposições ao mercado menos ele é livre. No mercado de ônibus de Brasília ainda há o acordo através dos preços (qualquer um pode decidir não andar de ônibus). Mas tanto o preço como os prestadores de serviço são determinados pelo Estado. Assim uma pessoa pode fazer lotação clandestinamente (muita gente o faz), mas ela deverá evitar a polícia e a chance de ter seu carro apreendido é muito alta.

FORA DO MERCADO

A transação livre entre as partes envolvidas é a forma mais eficiente de alocar recursos, esforços e orientar a ação - e, por este motivo, é a maneira que que defendo que deve ser realizada. Entretanto há um ponto com consequências diversas e intensas que deve ser abordado: o mercado desconsidera o que está fora dele. Se um mercadinho ao lado do meu apartamento botar uma bazuca à venda tenho certeza de que aparecerá um doido para comprá-la. Até imagino a situação em que alguém transtornado a use (sou pacifista, mas teria muita vontade de dar um disparo nos caras que botam um som alto até duas da manhã em dia de semana). Neste caso extremo, a venda da bazuca acarreta um malefício a toda vizinhança: o medo de ser alvo de um maluco. Da mesma maneira sacos plásticos gratuitos (para transporte da mercadoria) são uma cortesia consagrada pela tradição, entretanto tais sacos trazem consequências nefastas para a natureza (me vem à cabeça o lixo jogado no mar, tartarugas morrendo...). O mercado também desconsidera a situação em que as pessoas vivem. Alguém na miséria extrema aceitará trocar qualquer coisa por um prato de comida, inclusive sua dignidade.

INDIVIDUALIDADE

Em outro ensaio defini individualidade de uma maneira bem diferente do que estamos acostumados. Individualidade é qualquer unidade de processamento de informação. Uma pessoa pode ser considerada uma individualidade, mas também uma igreja, uma família e mesmo mesmo dentro de um corpo físico se revezam diversas individualidades (da mesma maneira que em um computador podem ter diversos programas). De acordo com esta definição cada mercado pode ser considerado uma individualidade. Entretanto esta individualidade (como qualquer outra) vive em um contexto e tem uma formação que o definem.

CONTEXTO

O contexto tem um papel importantíssimo na caracterização de um mercado, isto é, as propriedades de um mercado variam muito de acordo com a situação que seus integrantes estão submetidos. Aqui vou abordar algumas facetas do contexto para a formação de um mercado.

LEIS

Leis definem o que é mercadoria e quem são os participantes do mercado, quais aspectos estão sujeitos a litígio, como recorrer à justiça… Por exemplo, maconha está excluída do mercado por lei (o que é mercadoria), crianças não participam do mercado de álcool (quem é integrante) e um comprador de um carro usado não pode, após uma semana de uso, alegar que o carro tem um amassadinho e querer desfazer a compra (o que está sujeito a litígio).

CULTURA

As pessoas realizam práticas que não são previstas por lei e, às vezes, são até contrárias às leis. Maconha é ilegal, mas sua venda é realizada em todo o território nacional de maneira relativamente abrangente. Algumas vendas são feitas através de contratos escritos (como as de imóveis), outras são feitas informalmente (como a de um pãozinho). Em uma pizzaria você paga antes de consumir cada pedaço de pizza, em outra você come à vontade e na hora de pagar avisa quantos pedaços consumiu.

SITUAÇÃO DAS PESSOAS NO MERCADO

O que é considerado bom ou não em uma troca depende de como a pessoa está. Um comerciante pode vender a mercadoria a um preço menor do que pagou por ela (e levar um alto prejuízo) se achar que ela está prestes a sair de moda. Uma pessoa em extrema necessidade pode aceitar se desfazer de sua dignidade (fazendo coisas que acha erradas ou degradantes) por pouco dinheiro. Já uma pessoa com a renda e saúde garantidas fará sua escolha com uma perspectiva mais ampla. Este trabalho me dá prazer? É um desafio para mim? É a porta para eu conseguir atingir um sonho? O mercado livre é a melhor maneira para que as pessoas tomem escolhas livres, entretanto quem está na miséria não está livre em suas escolhas.

MERCADO TÃO LIVRE QUANTO POSSÍVEL

Defendo que a regra deva ser adotar mercados e práticas tão livres quanto possível. Por exemplo, defendo que todas as drogas devem ser legalizadas e que o mercado de trabalho seja desregulamentado. A proibição deve ser a exceção (ainda defendo a proibição de venda de bazuca na quadra). O mercado é a forma em que as próprias pessoas decidem como vão direcionar seus esforços - esta liberdade é um valor.

ASSEGURANDO A DIGNIDADE

Importante notar que nada no livre mercado garante que ele irá fornecer o mínimo para a vida digna de cada pessoa. Portanto defendo que todas as pessoas recebam do Estado um valor suficiente para uma vida digna, isto é, suficiente para morar bem, comer bem, pagar internet e ter um troquinho para comprar um computador (ou o que quer que a pessoa ache importante para sua vida). Sei que isto tem consequências no mercado de trabalho: atualmente a pessoa pobre presta serviços até o limite de sua capacidade, assim tais serviços são muito baratos para a classe média. Com renda universal serviços encarecerão, não porque as pessoas deixarão de trabalhar neles, mas porque não irão trabalhar até o limite de sua capacidade física.

QUAIS SERVIÇOS SOFRERÃO OS MAIORES REAJUSTES

Os serviços que sofrerão os maiores reajustes são aqueles prestados pelas pessoas de renda mais baixa. Serviços que mesmo alguém com pouca capacitação e poucos recursos conseguem prestar (tem baixa barreira de entrada). Por exemplo: diária de faxina, serviços em aplicativos. Também sofrerão reajuste serviços de quem está completamente marginalizado, por exemplo, a prostituição na rodoviária à dez reais, o tráfico de pequenas doses de entorpecentes.

QUEM SOFRERÁ O MAIOR IMPACTO

Quem sofrerá o maior impacto em relação à renda digna universal é, em primeiro lugar, as pessoas miseráveis. Elas terão a possibilidade de viver dignamente. Em segundo lugar o mercado que fornece bens de primeira necessidade. Subitamente alguns bens terão uma demanda aumentada (imagino que miojo deve encarecer). Em terceiro lugar quem receberá um impacto negativo intenso é quem tem uma renda suficientemente alta para que a renda universal não faça grande diferença para ela, mas que se vale do serviço de diversas pessoas pobres (motorista, cuidador, babá, diarista). Estas pessoas sofrerão muito com os aumentos nos custos de vida.

RECAPITULANDO

VALOR SUBJETIVO x VALOR OBJETIVO

A maneira mais simples de ver o valor é aceitar que cada pessoa tem suas próprias necessidades, sua religião, seu estilo… A partir disto cada pessoa atribui valor a cada mercadoria que consome. Quando ela atribui um valor mais alto do que o preço a que o produto está sendo vendido ela se dispõe a fazer uma compra. Da mesma maneira quem vende faz exatamente o mesmo cálculo, mas quando considera que o dinheiro que está sendo oferecido é maior do que o valor da mercadoria fará a venda. Esta maneira de ver o preço é extremamente simples. A maneira alternativa é atribuir um valor objetivo à cada uma das mercadorias (calculando o trabalho agregado em cada uma delas) e, após isto, forçar as pessoas a consumirem a um preço que reflita este agregado de trabalho. Repare, são maneiras opostas de ver a mercadoria: em uma cada pessoa decide por si mesma o que é importante para ela e o quanto quer pagar pelo produto (se valendo dos mecanismos do mercado); em outra um terceiro (o Estado) calcula o valor objetivo de cada produto (calculando quanto trabalho tem nele).

UMA TRANSAÇÃO COMERCIAL PODE IMPACTAR TERCEIROS

Uma transação comercial é um mecanismo que contempla seus participantes. Tanto quem vende como quem compra avalia que está melhor após a transação do que antes (caso contrário não faria a transação). Entretanto quem está fora da transação pode ser afetado (tanto positivamente como negativamente). Alguém no bairro comprar uma bazuca acarretará em um sentimento de falta de segurança para toda vizinhança.

MERCADO SE DÁ EM UM CONTEXTO

O mercado se dá entre as pessoas, mas não são apenas as pessoas. Ele se dá em um uma legislação, uma cultura e em circunstâncias que são anteriores à vida da maioria dos integrantes e em larga medida define o mercado. Neste contexto entra a legislação, a cultura, mas também a maneira como as pessoas vivem. O contexto em que as pessoas vivem é extremamente determinante para os mercados, quem vende está disposto a aceitar preços mais baixos conforme sua urgência por dinheiro. Então a miséria (por si só um problema) afeta os mercados favorecendo quem consome os serviços das pessoas miseráveis, como também afeta quem oferece os serviços (pois aceitarão serviços degradantes ou extenuantes demais).

CONCLUSÃO

Transações comerciais deixam as partes melhor do que estavam antes segundo sua própria avaliação (caso contrário não efetuariam a transação). Entretanto é importante notar que elas podem impactar terceiros - assunto que merece cuidado. Além disso a situação das pessoas impacta muito o mercado, quem está na miséria se sujeita a qualquer transação - mesmo que contrárias aos seus valores. A única coisa que o mercado livre garante é que quem está na transação toma uma decisão que ela mesma acha mais apropriada. Não resolve miséria, não resolve questões ambientais, não resolve concentração de poder… O livre mercado não é uma panaceia suficiente para enfrentar os problemas do mundo. É apenas uma maneira descentralizada em que decisões são tomadas por cada pessoa. Sendo, portanto, uma estratégia que contempla os desejos e valores pessoais. Por este motivo defendo o livre mercado, por ser melhor do que sua alternativa: um terceiro (o Estado), decidindo o que tem valor para cada um de nós. Importante frisar que sou a favor de mercados extremamente livres (por exemplo, com legalização das drogas). Mas que defendo o fim da miséria através de imposto negativo generoso (capaz de garantir vida digna a todas as pessoas). Com o imposto negativo os próprios direitos trabalhistas se tornariam não apenas desnecessários como também um impecilho à liberdade do mercado.